LEME,
Sebastião
*religioso; arceb. Olinda e Recife
1916-1921; arceb. Rio de Janeiro 1930-1942.
Sebastião Leme de Silveira Cintra nasceu em Espírito Santo do
Pinhal, hoje Pinhal (SP) no dia 20 de janeiro de 1882, filho do professor
Francisco Furquim Leme e de Ana Cândida da Silveira Cintra. Do lado paterno,
descendia de um ramo da família flamenga Lems, que, através da ilha da Madeira,
se transferiu para São Paulo no século XVI. As gerações mais próximas à sua
eram constituídas de pequenos proprietários rurais. A família de sua mãe era de
origem portuguesa, fixada no Brasil em meados do século XVIII e detentora de
razoável fortuna obtida com a mineração do ouro em Pitangui (MG).
Os pais de Sebastião Leme moravam em Mojimirim (SP), mas, nas
vésperas de seu nascimento, se dirigiram para Pinhal, onde sua avó materna
residia. Regressaram em seguida àquela cidade, mas no ano seguinte Francisco
Leme morreu vítima de tifo, o que acarretou o retorno da família para Pinhal,
onde sua mãe passou a viver modestamente. Em 1888, ela contraiu segundas
núpcias com Antônio Sales Nogueira, que veio a ser pai do único irmão de
Sebastião. Pouco depois desse casamento, o padrasto colocou-o para trabalhar em
um armarinho. No ano seguinte, contudo, sua mãe tornou a enviuvar, o que
agravou as dificuldades financeiras da família.
Sebastião Leme realizou os primeiros estudos com sua mãe, que
auxiliava também as obras sociais da paróquia local e atendia pessoalmente em
sua casa um grande número de necessitados. Em 1894, quando freqüentava o
Colégio Ávila, fez a primeira comunhão e mostrou-se inclinado ao sacerdócio,
sendo incentivado pela mãe e o vigário da cidade. Foi então enviado para a
capital do estado, onde ingressou no Seminário Menor Diocesano de São Paulo em
setembro do mesmo ano.
No seminário, Sebastião Leme destacou-se dos demais alunos, e
sua participação em uma demonstração de latim realizada em 1895 chamou a
atenção de dom Joaquim Arcoverde, então bispo de São Paulo, que decidiu
enviá-lo para concluir os estudos na Itália. Em 1º de setembro do ano seguinte,
logo após receber a tonsura, Sebastião Leme partiu para Roma em companhia do
padre Benedito Alves de Sousa, secretário particular de dom Arcoverde, e de
André Arcoverde, sobrinho do bispo. Na capital italiana, ficou hospedado no
colégio jesuíta Pio Latino-Americano, onde cursou humanidades ao mesmo tempo
que estudava filosofia na Universidade Gregoriana. Data dessa época o início de
sua amizade com Francisco de Melo e Sousa, que mais tarde se tornou monsenhor e
seu colaborador assíduo.
Pouco
tempo depois de sua chegada, Sebastião Leme foi nomeado “prefeito dos
filósofos” pela diretoria do colégio, o que contribuiu para o aumento do seu
prestígio. Em 1900, recebeu o título de doutor em filosofia, iniciando em
seguida o curso de teologia. Em maio de 1904, quando já era diácono, participou
da cerimônia de sagração de um novo bispo brasileiro, dom Duarte Leopoldo e Silva,
que posteriormente veio a ser seu superior em São Paulo.
Sebastião
Leme recebeu as ordens maiores em 28 de outubro de 1904, em cerimônia realizada
na capela do Colégio Pio Latino-Americano, e no dia seguinte celebrou sua
primeira missa, na basílica das catacumbas de São Sebastião, em Roma. Retornou
em seguida a São Paulo, sendo designado para auxiliar o cônego Virgílio Morato,
vigário de sua cidade natal.
Transferido em 1905 para a capital do estado, foi
segundo-coadjutor da paróquia de Santa Cecília, quando teve entre os seus
dirigidos os padres maristas e as religiosas do Orfanato Ana Rosa. Nessa
cidade, onde era grande o anticlericalismo nos meios intelectuais e políticos,
teve sua preocupação despertada para o trabalho de evangelização e obteve autorização
de seu superior, dom José de Camargo Barros, para organizar um jornal católico
voltado para a defesa da religião e do clero. Fundou então a Gazeta do Povo.
Deixou a paróquia ainda em 1905 ao ser nomeado professor de filosofia do
Seminário Episcopal de São Paulo, recém-remodelado por dom José. Em seguida,
ocupou também a cadeira de teologia deste estabelecimento.
Em
1908, o novo bispo da diocese, dom Duarte Leopoldo, conferiu ao padre Leme as
insígnias capitulares e o nomeou diretor do Boletim Eclesiástico. Nesse jornal,
sob o pseudônimo de Senex, escreveu diversos artigos para a seção de teologia
pastoral. Nomeado, em 1910, provigário-geral da diocese de São Paulo
(transformada poucos meses depois em arquidiocese), o cônego Leme se tornou
rapidamente a principal figura da Confederação Católica, organismo destinado a
coordenar todas as associações de ação católica no âmbito da diocese. Nessa
condição, promoveu ainda em 1910 grande manifestação pública contra a visita do
político anticlerical francês Georges Clemenceau à capital paulista, realizada
simultaneamente à Conferência dos Bispos Sulinos.
Bispo auxiliar do Rio de Janeiro
A
atuação do cônego Leme no provicariato geral de São Paulo e o êxito da
manifestação popular de apoio ao episcopado sulino levaram o cardeal Arcoverde
a convidá-lo para assumir o cargo de bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Contando
com apenas seis anos de sacerdócio, Sebastião Leme hesitou em aceitar a
sagração episcopal, que implicaria a interrupção do seu trabalho na capital paulista.
Após uma tentativa de recusa, aceitou o episcopal em dezembro de 1910, face à
insistência de dom Joaquim Arcoverde. Nos primeiros meses de 1911, ambos
seguiram para Roma, onde Sebastião Leme foi sagrado bispo de Ortósia no dia 4
de junho em cerimônia realizada na capela do Colégio Pio Latino-Americano.
Dom
Leme retornou ao Rio de Janeiro em novembro de 1911. Desde o início da sua
participação nessa arquidiocese, ficou evidenciada a diferença de personalidade
entre o novo bispo e o cardeal Arcoverde, tendo então se formado o quadro
inicial de uma crise que afloraria mais tarde. Segundo Laurita Pessoa Raja
Gabaglia, biógrafa de Sebastião Leme, ambos eram homens de autoridade e
divergiam radicalmente quanto à maneira de exercê-la. A convivência acentuou as
diferenças.
Ao assumir o bispado auxiliar, dom Leme enfatizou o
desenvolvimento da instrução religiosa da elite, pretendendo assim sanar, na
medida do possível, a ignorância religiosa, que considerava como a principal
deficiência do catolicismo brasileiro. Com esse fim, realizou diversas
pregações na Catedral Metropolitana durante as quaresmas de 1913 e 1914, e
incentivou as obras arquidiocesanas, especialmente a Obra das Vocações e a
Congregação da Doutrina Cristã. Nesse período, fez também diversas palestras em
colégios religiosos, conventos e ligas de piedade, lançando as bases do que
posteriormente se transformou na Ação Católica. Suas iniciativas, apoiadas
sobretudo pelos elementos jovens ligados à arquidiocese, não foram bem
recebidas por uma parte do clero e do laicato, que as consideravam, pelo menos,
prematuras.
Em 1913, dom Joaquim Arcoverde viajou para a Europa e dom
Leme assumiu provisoriamente a jurisdição plena sobre a arquidiocese, o que
provocou um agravamento das divergências internas à estrutura da Igreja na
região. Dom Leme passou a sofrer de insônia freqüente e teve sua saúde abalada,
retirando-se para São Paulo depois do retorno de dom Joaquim, no início de
1914. Permaneceu alguns meses na capital paulista à espera do chamado do cardeal,
que tentou, sem êxito, sua indicação para titular de outra diocese. Com a morte
do vigário-geral da arquidiocese do Rio, monsenhor João Pires Amorim, dom Leme
foi indicado para substituí-lo, retornando então à capital do país. Nos dois
anos seguintes acumulou as funções de bispo auxiliar e vigário-geral, exercendo
uma ação mais direta e contínua na coordenação do trabalho dos padres da
arquidiocese.
Na arquidiocese de Olinda e Recife
Por
indicação do cardeal Joaquim Arcoverde, dom Sebastião Leme foi nomeado pelo
Vaticano em 26 de abril de 1916 para a arquidiocese de Olinda (que só em 1918
passou a se chamar arquidiocese de Olinda e Recife), vaga com a morte de dom
Luís de Brito. Antes de assumir suas novas funções, ele se retirou para a
fazenda do irmão em Tambaú (SP), onde elaborou sua Carta pastoral de
inauguração, datada de 16 de junho, definindo sua linha de atuação. Para Thomas
Bruneau, esse documento representou o primeiro passo significativo para a
reorientação e mobilização da Igreja no Brasil.
Segundo
Ralph della Cava, dom Leme considerava que “a República havia levado ao poder
uma minoria descrente, deixando os crentes — que constituíam a maioria — sem
poder de decisão a respeito dos problemas nacionais. Para inverter essa
situação, era necessário mobilizar uma cruzada de militantes católicos, a fim
de reeducar a nação através dos seus ensinamentos e, fundamentalmente,
assegurar para a Igreja o reconhecimento jurídico de sua legítima posição”.
Nesse sentido, dom Leme propunha a adoção de algumas medidas básicas, como a
realização de obras de estímulo intelectual para os sacerdotes, o
desenvolvimento da doutrinação nos centros urbanos e da catequese das
populações rurais, a criação do ensino religioso facultativo e de escolas
superiores francamente católicas.
Dom
Sebastião Leme chegou à capital pernambucana em 15 de agosto de 1916 e dois
dias depois prestou seu juramento solene na igreja de Nossa Senhora do Carmo,
em Olinda. Nos primeiros meses de sua administração, concentrou seus esforços
na solução dos problemas financeiros da arquidiocese. O palácio arquiepiscopal
da Soledade estava em ruínas sem que houvesse verbas para reformá-lo, e as
obras de restauração da Catedral Metropolitana haviam sido paralisadas ainda no
começo. Dom Leme determinou então a realização de uma campanha de donativos em
todas as paróquias, ao mesmo tempo que procurava formas de equacionar
definitivamente o problema financeiro. Para tal, efetuou uma reforma
administrativa na arquidiocese e, apesar dos protestos de setores da sociedade
e do próprio clero, vendeu o palácio da Soledade para os jesuítas portugueses e
comprou em seguida uma nova sede, menor que a anterior.
Em
termos pastorais, a principal preocupação de dom Sebastião Leme foi com a
instrução religiosa, objeto de sua segunda carta à comunidade católica
pernambucana (1917). Para enfrentar esse problema, criou a congregação da
Doutrina Cristã (que, depois de enfrentar dificuldades iniciais, organizou 62
centros de catequese no estado) e firmou, em setembro de 1916, um acordo com o
governo para a introdução do ensino religioso nas escolas públicas estaduais.
Desenvolveu também o trabalho de catequese de adultos que resultou, mais tarde,
na criação do Curso Superior de Religião.
Em meados desse ano, dom Sebastião Leme foi entrevistado pelo
jornal A Província sobre a possível entrada do Brasil na Primeira Guerra
Mundial, declarando que o clero sentia as afrontas à nação do mesmo modo que o
povo e que o recente torpedeamento de um navio brasileiro havia eliminado as
possíveis divergências dentro da Igreja a esse respeito. Logo depois da
declaração de guerra à Alemanha pelo governo brasileiro, em outubro de 1917,
dom Sebastião Leme anteviu a possibilidade de os distúrbios populares atingirem
os membros do clero de nacionalidade alemã, o que de fato ocorreu. Após a
publicação de um manifesto ao povo, o próprio arcebispo se dirigiu à sede do
governo e ao quartel-general da polícia solicitando proteção oficial para os
padres estrangeiros e se responsabilizando por sua fidelidade aos interesses do
Brasil.
Em
abril de 1918, dom Leme determinou a formação de comissões encarregadas de
implementar a reorganização das circunscrições eclesiais do estado, que vinha
sendo preparada desde a primeira visita do arcebispo aos municípios do interior
em janeiro de 1917. Esses grupos cuidaram principalmente da criação do
patrimônio das novas dioceses, finalmente oficializadas em agosto de 1918, com
sede em Garanhuns e Nazaré. Ao mesmo tempo, a diocese de Floresta foi
transferida para Pesqueira. Nesse mês, dom Sebastião criou também a
Confederação Católica Pernambucana, voltada para transformar “os católicos em
apóstolos no meio de seus contemporâneos”. Essa entidade foi responsável pela
criação de várias comissões, como a da Santificação da Família em 1919 e a Obra
das Vocações Sacerdotais, de 1920.
No início de 1921, dom Leme publicou sua terceira carta
pastoral como arcebispo de Olinda e Recife, sobre a vida de São José.
Arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro
Em 24 de fevereiro de 1921, dom Sebastião Leme recebeu um
cabograma do núncio apostólico, monsenhor Henrique Gasparri, comunicando-lhe
que o papa Bento XV decidira nomeá-lo arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro em
virtude do agravamento do estado de saúde do cardeal Arcoverde, impedido de prosseguir
no exercício de suas funções. No mesmo dia, dom Leme telegrafou para o
representante do Vaticano, solicitando que essa decisão fosse reconsiderada. Ao
mesmo tempo, no Rio, seus antigos opositores também se mobilizaram para impedir
sua efetivação. Entretanto, a escolha do papa foi confirmada em fins de março
e, poucos dias depois, chegou a Recife o decreto pontifício que nomeava dom
Leme administrador efetivo da arquidiocese do Rio, com direito à sucessão.
Dom Leme tomou posse em 5 de agosto de 1921, após realizar
breve visita a dom Duarte Leopoldo, em São Paulo. Na primeira fase da sua
gestão, procurou neutralizar as possíveis oposições advindas do próprio clero e
multiplicar as atenções ao cardeal Arcoverde, chefe nominal da arquidiocese.
Começou também a empregar no Rio os mesmos processos de evangelização que
aplicara em Pernambuco, seguindo a linha definida em sua carta pastoral de
1916, que pregava a luta pelo reconhecimento jurídico da “legítima posição” da
Igreja, afetada desde a proclamação da República. Segundo Bruneau, essa posição
do novo arcebispo coadjutor coincidiu, durante o governo de Epitácio Pessoa
(1919-1922), com o início de uma política oficial de valorização das relações
do Estado com a Igreja.
Dom Leme reformou com rapidez o ensino de formação de
sacerdotes (então bastante debilitado, pois o seminário diocesano fora fechado
havia 16 anos) e deu novo impulso à Obra das Vocações Sacerdotais, instituindo
o Dia das Vocações e determinando a realização de pregações especiais voltadas
para despertar os católicos para o sacerdócio. Conferiu também grande
importância à organização dos leigos — inclusive intelectuais —, pretendendo
aumentar a difusão da doutrina católica na sociedade e a capacidade de pressão
da Igreja sobre o Estado. Em 1922, apoiou a iniciativa de Jackson de Figueiredo
que levou à criação do Centro Dom Vital, associação civil ligada à Igreja e
voltada para o estudo, a discussão e o apostolado da religião. Essa entidade se
tornou o principal centro intelectual do catolicismo brasileiro até 1941,
quando foi criada a Pontifícia Universidade Católica (PUC), também no Rio de
Janeiro.
Com a eleição de Artur Bernardes para a presidência da
República em março de 1922, as tensões políticas aumentaram em virtude da
oposição de setores militares à sua posse. No mês seguinte, representantes do
presidente Epitácio Pessoa — que retornava de Petrópolis para o Rio —
solicitaram a presença de dom Leme na estação de trem da Praia Formosa, para
receber o chefe da nação e, demonstrar seu apoio à autoridade civil, duramente
combatida pelas oposições. Em 5 de julho seguinte, eclodiu o primeiro levante
do ciclo de movimentos tenentistas da década de 1920, em protesto contra a
eleição de Artur Bernardes, o fechamento do Clube Militar e a prisão do marechal
Hermes da Fonseca. A revolta foi debelada no mesmo dia, tendo envolvido o forte
de Copacabana, a Escola Militar e efetivos da Vila Militar, no Rio de Janeiro,
além do contingente do Exército estacionado em Mato Grosso. Depois do controle
do movimento pelo governo, dom Sebastião Leme recebeu no palácio São Joaquim,
sede da arquidiocese, familiares de revoltosos, que pediram sua intervenção
junto ao presidente da República para que seus parentes fossem anistiados. O
arcebispo coadjutor se dirigiu então ao palácio do Catete, sede do governo, e
sugeriu a concessão da anistia como parte das comemorações pelo transcurso do
centenário da Independência, mas não foi atendido.
Em
setembro de 1922, a arquidiocese do Rio de Janeiro patrocinou a realização do
Congresso Eucarístico Nacional e, três meses depois, dom Leme fundou a
Confederação Católica, para coordenar melhor a ação dos leigos e das
associações católicas do Distrito Federal. A estrutura e as diretrizes
fundamentais da nova entidade foram definidas no livro Ação católica:
instruções para a organização e o funcionamento das comissões permanentes da
Confederação Católica do Rio de Janeiro, lançado em junho de 1923 pelo
arcebispo coadjutor. A partir de então, a Confederação Católica passou a apoiar
todas as iniciativas de dom Leme, como as festividades realizadas em 1924 para
comemorar os 50 anos da sagração sacerdotal de dom Arcoverde, a organização da
Semana do Catecismo em 1925 e as campanhas pela construção da estátua do Cristo
Redentor e de uma universidade católica.
Em 1925, o presidente Artur Bernardes propôs uma reforma
constitucional. Dom Sebastião Leme, apoiado por Jackson de Figueiredo e o
Centro Dom Vital, iniciou então uma campanha em favor da aprovação de duas
emendas: a obrigatoriedade da instrução religiosa nas escolas públicas e o
reconhecimento da condição privilegiada do catolicismo como “religião da
maioria”, equivalente à sua transformação em religião oficial do Brasil.
Entretanto, suas tentativas não obtiveram êxito, devido principalmente à
oposição do próprio presidente da República.
Em outubro de 1926, dom Sebastião Leme, que sempre teve a
saúde afetada pelo bócio (hipertireoidismo), sofreu violenta crise, tendo que
ser operado em abril do ano seguinte na Suíça. Em 1928, sua saúde voltou a se
deteriorar, sem impedir entretanto a continuidade do seu trabalho.
Em
sua atuação na década de 1920 à frente da arquidiocese do Rio de Janeiro, dom
Leme consolidou sua liderança sobre os demais membros da hierarquia
eclesiástica, contribuindo assim para reforçar a tendência ao crescimento do
peso relativo da região Centro-Sul frente ao Nordeste na ação nacional da
Igreja. Foi nessa década que se definiu a nova organização interna da
instituição, cujo centro de poder mais importante passou a ser, no início dos
anos 1930, a arquidiocese do Rio de Janeiro.
O cardinalato
Em
abril de 1930, dom Arcoverde, primeiro cardeal da América Latina, faleceu no
palácio São Joaquim. Embora a sucessão estivesse garantida a dom Leme, membros
da Igreja de vários países do continente alimentaram esperanças de que fosse
inaugurado um “sistema de rodízio”, com a indicação de um bispo da América
espanhola para preencher esse lugar. Entretanto, o papa Pio XI decidiu
confirmar rapidamente o direito de sucessão outorgado por seu antecessor a dom
Sebastião Leme e, sem nenhuma consulta ao governo brasileiro ou à Nunciatura
Apostólica, convocou o arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro a Roma. Em 2 de
julho seguinte, nessa capital, dom Leme foi elevado à condição de cardeal e, no
dia seguinte, realizou-se o consistório público em que recebeu o chapéu
cardinalício. Logo depois, teve início o consistório secreto para a definição
dos títulos dos novos cardeais, cabendo a dom Leme a designação de cardeal
presbítero do título dos santos Bonifácio e Aleixo.
A Revolução de 1930
Em 3 de outubro, às vésperas da partida de dom Leme para o
Brasil, teve início a Revolução de 1930, deflagrada a partir do Rio Grande do
Sul, Minas Gerais e Paraíba. Nas semanas seguintes, as ações militares se
irradiaram para todo o país, evoluindo favoravelmente às tropas sublevadas que
assumiram o controle de diversas capitais e iniciaram a marcha em direção ao
Rio de Janeiro. Os generais Augusto Tasso Fragoso e João de Deus Mena Barreto e
o almirante José Isaías de Noronha começaram então a organizar nessa cidade a
derrubada do presidente Washington Luís, conseguindo em seguida a adesão de
outros oficiais de alta patente.
Quando o navio que trazia dom Leme aportou no Rio, o cardeal
foi procurado por um emissário dos três chefes militares, que o colocou a par
do projeto em curso e pediu que utilizasse sua influência sobre o presidente
para ajudar na negociação de um acordo. Dom Leme respondeu que se recusava a
participar de qualquer movimento revolucionário, mas poderia colaborar na busca
de uma solução negociada entre as partes. Alguns dias depois, o cardeal voltou
a conversar com o mesmo oficial, insistindo para que os militares evitassem a
deflagração do golpe em troca de uma solução conciliatória a ser discutida com
o presidente. Mena Barreto, Tasso Fragoso e Isaías de Noronha concordaram, em
princípio, com essa iniciativa.
A primeira entrevista entre o cardeal e o presidente,
entretanto, foi inútil. Washington Luís evitou tratar da situação política do
país e conferiu um caráter meramente protocolar à visita, como se se tratasse
de um agradecimento pelas homenagens oficiais prestadas a dom Leme por ocasião
de sua elevação ao cardinalato. O cardeal limitou-se então a indagar se o
presidente contava com o apoio das tropas estacionadas na capital, recebendo
uma resposta positiva. Antes de se retirar do palácio do governo, contudo, pôde
comprovar pessoalmente que essa informação não era verdadeira, pois o
comandante da Região Militar, apesar de fiel à legalidade, confessou sua
certeza de que não contaria com o apoio da tropa para defender o governo.
Na manhã de 23 de outubro, o general ajudante-de-ordens do
presidente e o ministro das Relações Exteriores, Otávio Mangabeira, conversaram
em separado com o cardeal, conseguindo convencê-lo a expor para o presidente a
gravidade da situação. Washington Luís, entretanto, continuou considerando
infundadas as informações levadas por dom Leme, afirmando sua decisão de punir
todos os que desrespeitassem sua autoridade.
No
dia seguinte, os três chefes militares que lideravam a conspiração enviaram
outro emissário ao palácio São Joaquim, pedindo que o cardeal fosse portador de
uma mensagem dirigida ao presidente e assinada por quase todos os
oficiais-generais lotados no Rio de Janeiro. Depois de ler o documento, que
ameaçava o bombardeio do palácio Guanabara caso Washington Luís não renunciasse
até às nove horas do mesmo dia, dom Leme recusou-se a encaminhá-lo e, após a
saída do emissário, avistou-se com Otávio Mangabeira para informá-lo do
ultimato e oferecer asilo ao presidente no palácio São Joaquim.
No horário marcado, as fortalezas da cidade fizeram seus
primeiros disparos de artilharia, utilizando pólvora seca. Foi o suficiente
para provocar a deserção das poucas forças policiais que permaneciam fiéis ao
governo. Em seguida, a cidade começou a ser tomada por grupos de populares
favoráveis à revolução, que passaram a incendiar jornais situacionistas,
depredar edifícios e, em alguns casos, se encaminhar para as cercanias do
palácio Guanabara. Dom Leme alertou os generais para a necessidade da
manutenção da ordem pública e sugeriu a recondução de Belisário Távora ao cargo
de chefe de polícia do Distrito Federal, vago desde a saída de Coriolano de
Góis no início do ano. Os três chefes da revolta, que haviam formado uma junta
governativa provisória, aceitaram a sugestão.
Rapidamente, o palácio São Joaquim recebeu um grande número
de refugiados políticos. Washington Luís permaneceu isolado com o seu
ministério no palácio Guanabara durante todo o dia, sem renunciar, e só
consentiu em se retirar à tarde, na condição de prisioneiro. Tasso Fragoso
solicitou então o comparecimento de dom Leme ao palácio para ajudar a proteger
o presidente deposto, pois grande multidão hostil ao antigo regime se comprimia
nos portões.
Chegando ao Guanabara, o cardeal demonstrou aos chefes
militares que o palácio São Joaquim não possuía as condições de segurança
exigidas pelas circunstâncias para abrigar Washington Luís. Em seguida,
transmitiu ao ex-presidente a garantia de respeito à sua integridade oferecida
pela junta e decidiu acompanhá-lo no carro que o conduziu ao forte de
Copacabana, às 17 horas.
Atuação depois da Revolução de 1930
Depois da formação do Governo Provisório chefiado por Getúlio
Vargas (3/11/1930), dom Leme começou a preparar o movimento leigo para intervir
como porta-voz da maioria católica na organização do novo regime político
brasileiro. Ao mesmo tempo, procurou obter concessões do Estado para o
catolicismo e adotou, em nome da Igreja, uma posição de neutralidade em relação
aos partidos e movimentos políticos em formação, evitando inclusive qualquer
posicionamento sobre a Ação Integralista Brasileira (AIB), organização fascista
cuja doutrina valorizava a religião católica e ganhava adeptos nas fileiras da
Igreja.
As diversas entidades católicas criadas em torno do Centro
Dom Vital foram mantidas à margem de qualquer envolvimento político e
consideradas de utilidade pública, passando a receber subsídios do governo,
interessado no apoio da Igreja. Como parte de sua política de pressão sobre o
Estado e cooperação com ele, a arquidiocese do Rio de Janeiro organizou
demonstrações populares para comemorar a Semana de Nossa Senhora da Aparecida
(24 a 30 de maio de 1931) e, depois, a inauguração do monumento do Cristo
Redentor, realizada em 12 de outubro seguinte. Ainda em 1931, Vargas autorizou
a organização de sindicatos católicos e o reinício da instrução religiosa nos
cursos primário, secundário e normal, ao mesmo tempo que dom Leme vetava a
tentativa de criação de um partido católico, proposto por Heitor da Silva
Costa, membro do Centro Dom Vital. No ano seguinte, o cardeal impediu qualquer
atividade política ou manifestação pública dos membros dessa entidade que
simpatizavam com a Revolução Constitucionalista de São Paulo, deflagrada em 9
de julho com o apoio de dom Duarte Leopoldo e derrotada no início de outubro.
Ainda em 1932, dom Leme fundou o Instituto Católico de Estudos Superiores.
Depois da vitória sobre os constitucionalistas, o Governo
Provisório convocou, para março de 1933, eleições para a formação de uma
Assembléia Nacional Constituinte. Nessa ocasião, dom Leme organizou e assumiu a
direção da Liga Eleitoral Católica (LEC), associação civil de âmbito nacional
criada para apoiar os candidatos comprometidos com a doutrina social da Igreja,
independente de sua filiação partidária. O cardeal enviou cartas a todas as
dioceses do país, propondo a formação de juntas locais da LEC, que divulgou seu
programa às vésperas das eleições e recebeu apoio político e financeiro de
organizações católicas e da AIB. Dom Leme recusou-se a autorizar uma
aproximação muito estreita com os integralistas, para preservar o caráter
suprapartidário da LEC. No Ceará, contudo, a LEC conseguiu notável crescimento
e se transformou num dos principais partidos do Estado, aglutinando as forças
contrárias à interventoria e elegendo todos os seus candidatos à Constituinte.
Ainda em 1933, realizou-se o I Congresso Eucarístico Nacional, também
organizado pelo cardeal.
O movimento católico aglutinado em torno da LEC obteve
expressiva influência na composição da Assembléia que, em julho de 1934,
promulgou a nova Constituição brasileira e elegeu Getúlio Vargas para a
presidência da República. Ocorreu em seguida uma relativa desmobilização da
LEC. No mês seguinte, dom Leme, baseado na encíclica papal de 1922, submeteu à
apreciação do Vaticano uma proposta de estatutos para a formação de uma nova
entidade, chamada Ação Católica Brasileira (ACB), voltada para organizar a
participação dos leigos no apostolado da Igreja. Criada em 1935, a ACB
substituiu a antiga Confederação Católica no trabalho de coordenação das
associações católicas no Brasil.
No primeiro semestre de 1935, ocorreu a regulamentação do
ensino religioso, determinada pela Constituição de 1934, mas ainda contestada
pelos defensores do ensino leigo. O diretor do Departamento de Educação da
Prefeitura do Distrito Federal, Anísio Teixeira, posicionou-se radicalmente
contra o ensino confessional, tentando impedir sua aplicação. Nesse contexto, o
cardeal Leme, embora tradicionalmente contrário à participação do clero na
política partidária, aconselhou o cônego Olímpio de Melo — ex-vigário de Bangu
e membro do Partido Autonomista — a candidatar-se a vereador para liderar na
Câmara do Distrito Federal a campanha pela regulamentação prevista na Carta
Constitucional. Depois da eleição do cônego, dom Leme traçou as principais
linhas do plano de ação que resultou, em julho de 1935, na aprovação do projeto
apresentado pelo vereador Átila Soares, tornando obrigatório o ensino da
religião católica nas escolas municipais. Nesse período, Anísio Teixeira foi
alvo de violenta campanha promovida por grupos católicos liderados por Alceu
Amoroso Lima.
A implementação do ensino religioso no Distrito Federal,
entretanto, só ocorreu no ano seguinte, sob a direção de Francisco Campos,
depois que o cônego Olímpio de Melo assumiu a prefeitura da capital em
substituição a Pedro Ernesto Batista, preso sob acusação de envolvimento na
Revolta Comunista de novembro de 1935. Com o fim da campanha pelo ensino
religioso, dom Leme embarcou para Roma, pois, na condição de chefe de diocese,
era obrigado pelo direito canônico a apresentar-se regularmente ao Papa. No
Vaticano, o cardeal brasileiro tratou da criação de uma universidade católica
no Rio de Janeiro e da reunião do I Concílio Plenário. Tornou-se também
portador da Carta do santo padre Pio XI ao cardeal dom Sebastião Leme e ao
episcopado nacional sobre a Ação Católica Brasileira, datada de 25 de outubro
de 1935, onde eram confirmadas as diretrizes pontifícias sobre a organização do
laicato e sua aplicação no caso brasileiro.
Os anos de 1936 e 1937 foram marcados, no Brasil, pelo
acirramento da repressão política desencadeada pelo governo depois do fracasso
do levante comunista de 1935. Nesse contexto, a encíclica papal Divini
redemptoris, publicada em março de 1937 combatendo a doutrina marxista, obteve
grande repercussão e levou à preparação da Pastoral coletiva de 1937, redigida
sob a orientação do cardeal Leme e divulgada em setembro. Esse documento
situava a encíclica papal no momento político brasileiro e concluía “lembrando
que o perigo comunista impõe aos cristãos um dever estrito de
não-participação”. Nesse período, o cardeal já estava avisado de que o governo
impediria as eleições presidenciais marcadas para o ano seguinte.
Dom Leme não foi surpreendido pelo golpe chefiado por Vargas,
que implantou, em novembro de 1937, o Estado Novo. Pouco depois, o cardeal
alertou a hierarquia eclesiástica para que evitasse qualquer tipo de
manifestação capaz de afetar as relações entre a Igreja e o Estado e prejudicar
os direitos já conquistados pelos católicos. Por outro lado, Getúlio Vargas deu
continuidade à política de aprofundamento das relações com a Igreja, apesar de
a Constituição promulgada pelo novo regime ser menos clara do que a de 1934
quanto ao papel do catolicismo na sociedade e no Estado brasileiros.
Em 1938, dom Sebastião Leme fez nova viagem a Roma, onde
tratou da convocação do I Concílio Plenário Brasileiro e consultou um
endocrinologista sobre o agravamento de seu hipertireoidismo. No início do ano
seguinte, com a morte de Pio XI, retornou a Roma para participar da escolha do
seu sucessor, Pio XII.
Em suas viagens ao Vaticano, o cardeal Leme insistiu na
criação de uma universidade católica no Brasil, segundo ele o melhor caminho
para desenvolver a influência da doutrina da Igreja nos meios intelectuais. Em
fins de outubro de 1940, foi assinado o decreto federal que autorizava a abertura
das faculdades de Direito e Filosofia, cujos cursos foram instalados
oficialmente em março do ano seguinte e se tornaram o embrião da Pontifícia
Universidade Católica (PUC), fundada no Rio de Janeiro pouco tempo depois.
Em agosto de 1942, com a declaração de guerra feita pelo
Brasil aos países do Eixo, dom Sebastião Leme estabeleceu o plano geral da
Circular coletiva do episcopado sobre esse assunto, cuja redação encomendou ao
padre Leonel Franca, reitor da PUC. O documento foi divulgado entre o clero na
semana seguinte, definindo uma posição de solidariedade da Igreja com o governo
de Vargas e ressaltando a confiança na fidelidade dos religiosos ao Brasil.
Afirmava também que os bispos estariam “vigilantes em prevenir ou sanar, por
meios eclesiásticos, possíveis exceções individuais de deslealdade para com o
país”.
Em 17 de outubro de 1942, nas vésperas da publicação da
circular, dom Sebastião Leme faleceu no Rio de Janeiro.
Sobre o biografado, Alceu Amoroso Lima publicou O cardeal
Leme; um depoimento (1943), e Laurita Pessoa Raja Gabaglia publicou O cardeal
Leme (1882-1942) (1962).
Regina da Luz Moreira
FONTES: ARQ.
OSVALDO ARANHA; BRANDÃO, B. Movimento; BRUNEAU, T. Catolicismo; CARNEIRO, G.
História; CONFERÊNCIA NAC. BISPOS DO BRASIL; Correio do Povo (10/11/30);
CORRESP. SUP. TRIB. MILITAR; CRUZ, E. História do Pará; Encic. Barsa; Encic.
Mirador; Estado de S. Paulo; GARDEL, L. Armoiries; Grande encic. Delta; INST.
NAC. LIVRO. Índice; JARDIM, R. Abertura; Jornal do Brasil (18 e 21/10/42);
Jornal do Comércio, Rio (17 e 18/10/42); LEVINE, R. Vargas; MACEDO, R.
Efemérides; MELO, L. Dic.; SCHBERT, G. Província; SILVA, H. 1930; SILVA, H.
1931; TAVARES, J. Radicalização; TODARO, M. Pastors; Who’s who in Latin.