POLÍTICA
EXTERNA INDEPENDENTE
Em
decorrência da ascensão do fascismo na Europa e das conseqüentes ameaças de
outra guerra mundial, a segurança apareceu como novo elemento na doutrina das
reações internacionais interamericanas. Na Conferência Interamericana de 1936
em Buenos Aires, na de Lima em 1938 e, finalmente, na Conferência de Ministros
de Relações Exteriores de 1940 em Havana, ficou estabelecido o princípio
segundo o qual toda tentativa de um Estado não-americano contra a integridade
ou a inviolabilidade do território, a soberania ou a independência política de
um Estado americano, seria considerada como ato de agressão contra os demais Estados
do continente.
A guerra mundial e suas conseqüências — entre elas a guerra
fria — acarretariam precisões ulteriores a esse princípio. A Ata de Chapultepec
e o Pacto do Rio, de agosto de 1947, foram momentos importantes desse processo.
Este pacto deu nascimento ao Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e
estabeleceu uma relação direta entre segurança e democracia: “Que a paz se
funde na justiça e na ordem moral e repouse, em conseqüência, no reconhecimento
e na proteção internacional dos direitos e das liberdades da pessoa humana, no
bem-estar indispensável dos povos e na realidade da democracia, para a
realização internacional da justiça e da segurança.”
Durante
a IX Conferência Interamericana em Bogotá (30 de março a 2 de maio de 1948),
criou-se a Organização dos Estados Americanos (OEA). Mais tarde, surgiram os
acordos militares com os Estados Unidos, sendo que o Brasil assinou o seu em
1953, período de delicada situação política interna. Durante a X Conferência
Interamericana de Caracas (1954), os Estados Unidos reclamaram prioridade para
a questão da “proteção comum das repúblicas americanas contra o comunismo” e
foi aprovada a conhecida Declaração de defesa contra o comunismo. Foi nesse
contexto e no período de governo de Juscelino Kubitschek que surgiram os
primeiros elementos doutrinários da política externa independente, incluídos na
fracassada Operação Pan-Americana (1958). Foi nessa época que Kubitschek
pronunciou a seguinte frase: “Se a política de nossos aliados implica prejuízos
à nossa segurança, é de nosso dever estar em desacordo... agir sempre como país
independente.” Também foi dele a seguinte formulação, mais tarde repetida por
Jânio Quadros: “Nós somos um país de formação cristã, e queremos viver livres
de tutelas, sob o regime que nós escolhemos, o da liberdade e da democracia.”
A
questão da política externa independente ocupou lugar de destaque durante a
campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 1960. Repetidamente
utilizada por Jânio Quadros, seus princípios gerais apareciam na mensagem ao
Congresso Nacional de 1961. Podem ser assim resumidos: a política exterior é um
instrumento da política de desenvolvimento e fator de projeção do Brasil na
cena mundial. O Brasil participa da corrente histórica cristã, evolui em torno
dos ideais democráticos e como tal é membro do mundo livre. A partir de uma
noção mais clara das possibilidades e responsabilidades, o governo deverá
assumir uma posição internacional mais afirmativa e independente. A posição
ideológica do Brasil é ocidental, mas deverá estar condicionada ao seu caráter
nacional e a seus legítimos interesses.
Precisava-se a posição brasileira diante da ONU, da Europa,
do mundo afro-asiático e insistia-se na importância de uma política
anticolonialista, no estilo de Quadros: “Não aceitamos nenhuma forma ou
modalidade de colonialismo ou imperialismo.” Destacava-se a necessidade de
ampliar o comércio com os países socialistas, medida necessária ao aumento das
exportações, mas que não deveria ser concebida para “fins ilegítimos”. A
posição relativa à política continental estava mediatizada pela situação em
Cuba. Jânio Quadros afirmava o princípio da autodeterminação para todo país
latino-americano, preservado de toda intervenção estrangeira em assuntos
internos. Em artigo publicado na revista Foreign Affairs pouco antes de sua
renúncia, Quadros foi mais incisivo: defendeu a soberania cubana com
intransigência, aceitando todas as implicações, pois afirmava que se tratava de
fato histórico que não podia ser regulado a posteriori.
A execução desses princípios introduziu mudanças no estilo da
política exterior brasileira. A política anticolonialista levou a certos
conflitos com o regime de Salazar, embora não se tenha adotado nenhuma medida
suscitando ameaça de rompimento dos “tradicionais laços de amizade entre Brasil
e Portugal”. Adotou-se uma política de presença na África, apoiou-se “a luta
heróica do povo argelino” contra a França. Fez-se uma ofensiva em direção aos
países não-alinhados. Diante da oposição interna crescente dos radicais de
direita e dos conservadores, Afonso Arinos de Melo Franco — na época ministro
das Relações Exteriores — daria os seguintes esclarecimentos na Câmara dos
Deputados: “Somos um país ligado por compromissos com a democracia, com a
liberdade, somos um país fiel a nossas tradições jurídicas... Em minha opinião,
devemos equilibrar a luta pela autodeterminação dos povos com a defesa do
regime democrático, porque não podemos aceitar, na América, o comunismo
internacional. Isto está claro em todos os tratados dos quais somos
signatários: isto está imposto obrigatoriamente em todos os atos nos quais
participamos.”
Apesar do significado limitado, o fato é que algumas mudanças
na política exterior iriam encontrar uma intransigência enorme dos Estados
Unidos, sobretudo em relação ao caso cubano, e contribuiriam para a polarização
das forças políticas internas. Quadros recebeu pressões e críticas permanentes
da direita e dos conservadores, na imprensa, rádio, televisão, no Congresso
Nacional. Eis como Carlos Lacerda se expressou em 6 de junho de 1961 diante das
câmeras de televisão: “Neste momento o Brasil apóia uma das mais sanguinárias,
uma das mais vergonhosas, uma das mais sujas ditaduras do mundo, pois neste
momento é a nação que fortifica a tirania de Fidel Castro no
continente.” Já anteriormente, Afonso Arinos havia feito o seguinte
esclarecimento sobre a política exterior do governo. “O governo Jânio Quadros
está rigorosamente seguindo a linha tradicional do Brasil, isto é, linha de
independência em face de quaisquer influências que comprometam nossa soberania;
linha de não-intervenção em face das disputas que se levantam no continente, e
linha de mediação, para aplacar essas disputas e trabalhar pela paz.
Independência, não-intervenção, mediação, esta é a política nacional desde a
independência.”
Todos os esclarecimentos não puderam evitar as pressões
conservadoras, que atribuíam um “caráter ineludivelmente esquerdista” à ação da
chancelaria brasileira. A condecoração de “Che” Guevara com a ordem do Cruzeiro
do Sul parece ter sido a gota d’água para o aguçamento da crise política
brasileira. Jânio Quadros renunciou, pensando poder voltar com plenos poderes,
e daí por diante a crise de poder só seria resolvida em 1964.
O curto período do regime parlamentarista introduziu algumas
mudanças talvez mais de estilo. Francisco de San Tiago Dantas, novo ministro
das Relações Exteriores, obteve no início um certo apoio para a continuidade da
política exterior. Eis uma frase ilustrativa, de editorial de O Estado de S.
Paulo: “Retirar o tom agressivo dos pronunciamentos oficiais e aquela ponta de
provocação em relação aos Estados Unidos... evitando comprometê-la com qualquer
dose de demagogia.” No entanto, algumas observações seriam feitas por San Tiago
Dantas: “A nova política externa brasileira só tem sentido e coerência se for
considerada parte integrante e peça essencial de um grande esquema de reformas
de estruturas sociais e econômicas.” A política exterior deveria continuar a
serviço da expansão econômica do Brasil, que em novembro de 1961 reatou as
relações diplomáticas com a União Soviética. As pressões contra San Tiago
Dantas cresceram porém através da chamada Ação Democrática Parlamentar.
Em
agosto de 1962, com o novo gabinete Hermes Lima, Afonso Arinos reassumiu o
cargo de ministro das Relações Exteriores. A posição relativa a Cuba sofreu
alterações durante a conhecida crise dos foguetes. Na OEA, o Brasil defendeu a
neutralização de Cuba sob os auspícios das Nações Unidas. Mesmo assim, a
política exterior continuou a ser alvo de violentos ataques da direita
conservadora. Editorial de O Jornal (26/10/1962) ilustra esse ponto: “A
política externa ‘independente’ é uma política de traição ao Brasil, que põe no
mais sério risco que jamais correram, os objetivos nacionais permanentes de
nossa pátria... Somos a imensa maioria do Brasil e não podemos consentir que
uma minoria ínfima leve a cabo o seu intento de destruir a nossa pátria, por
ignorância, má-fé e vangloria. É chegado o momento de pôr fim a essa
terrível impostura.”
Assim, tal como em outras questões, o debate sobre o caráter
da política externa independente se inseria no contexto da polarização das
forças sociais naquele período. No fundo, a questão não era tanto a política
exterior. O problema central já era a derrubada do governo João Goulart, que
encontrava frontal resistência dos grandes grupos econômicos e dos setores
sociais conservadores.
Se determinados aspectos da política externa independente
estavam ligados às necessidades da nova fase de desenvolvimento do capitalismo
brasileiro — e por isso permaneceram — outros se ligavam às perspectivas
democráticas e populares. O apoio aos aspectos progressistas da política
exterior independente por parte dos movimentos populares foi nítido desde a
campanha eleitoral de 1960. Daí ela ter-se tornado também uma dimensão
importante na polarização das forças políticas na época. Daí também o caráter
às vezes ambíguo e contraditório da política externa independente. O novo
regime, após 1964, retomou para a política externa brasileira a linha de apoio
decidido à política internacional norte-americana, adaptando-a aos princípios
básicos da doutrina da Escola Superior de Guerra. As novas realidades da
economia e da política brasileira contemporânea fizeram emergir novas questões
para a política externa do país.
Brás José de Araújo colaboração especial
FONTES: ARAÚJO, B.
Politique; FRANCO, A. Escalada.