REVOLUÇÃO
DE 1964
Movimento político-militar deflagrado em 31 de março de 1964
com o objetivo de depor o governo do presidente João Goulart. Sua vitória
acarretou profundas modificações na organização política do país, bem como na
vida econômica e social. Todos os cinco presidentes militares que se sucederam
desde então declararam-se herdeiros e continuadores da Revolução de 1964.
Revolução ou golpe?
As
interpretações simplificadas sobre a natureza do movimento de 31 de março de
1964, que derrubou o governo constitucional do presidente João Goulart,
dificultaram o entendimento do processo que deu origem ao mais longo colapso
democrático sofrido pela República brasileira. O movimento que culminou com a
deposição de Goulart, manipulado semanticamente, tem sido exaltado como
revolução ou condenado como golpe de Estado. Mas, a exemplo de todas as
caracterizações ou definições resumidas, estas são também de pouca utilidade
quando se pretende analisar e compreender as causas e as conseqüências do
episódio. Somente o entendimento além das conceituações simplistas
possibilitará esclarecimentos adicionais e mais satisfatórios do que os obtidos
tanto pelos que consideram a queda de Goulart como resultado de uma ruptura
política nos moldes revolucionários, quanto pelos que a reduzem ao simples
resultado de um golpe de força militar.
Revolução ou golpe de Estado? Ambos são movimentos com
características distintas e inadequadas — por ampliação no primeiro caso e por
simplificação no segundo — para explicar os acontecimentos anteriores e
posteriores à derrubada de Jango em 1964. O conceito de revolução com os
contornos modernos e mais precisos que recebeu a partir da teoria marxista,
supõe a ação revolucionária como um instrumento de transformação nas relações
políticas, sociais e culturais, no ordenamento jurídico-institucional e na
estrutura econômica. Historicamente, no plano da ação política, as revoluções
têm-se dado com o emprego da violência e alteração de domínio de classe no
aparelho de Estado.
O
golpe de Estado, sem as motivações ideológicas de uma revolução, limita-se a um
movimento das elites políticas e visa à substituição de autoridades, para
restabelecer a hegemonia de alianças políticas mais fortes entre a própria
classe dominante. Como regra, não altera os marcos constitucionais e nem opera
mudanças substanciais nos mecanismos jurídicos, políticos, econômicos ou
sociais. No golpe de Estado é escassa ou inexistente a participação popular, é
breve a duração da luta política e, normalmente, é reduzido o nível de
violência.
O
processo ocorrido no Brasil em 1964, diverso destes dois modelos, trouxe
características próprias, como, por exemplo, a alteração no papel de “poder
moderador” exercido até então pelos militares na política brasileira. Seus
elementos básicos de julgamento — a face política e o modelo econômico-social —
o definem como um regime militar autoritário, centralizador e burocratizante,
mas de conseqüências econômicas modernizadoras, que, às expensas de forte
compressão salarial e grande concentração de renda e capital, promoveram um
tipo de desenvolvimento intimamente vinculado aos investimentos estrangeiros.
Analisado pela superfície da crise político-institucional,
1964 identificou-se como um movimento político-militar conservador, em oposição
às “reformas de base” nacional-populistas e à participação política de setores
populares, tradicionalmente excluídos do pacto de poder. Enquanto expressão de
interesses de classes — com expressiva mobilização dos grupos dirigentes e
respaldo das classes médias — caracterizou-se pela rearticulação política do
empresariado nacional, ligado ao capitalismo internacional, correspondendo
internamente ao extrato moderno da burguesia industrial. De importância maior
que um simples acidente no processo político brasileiro, o movimento de 31 de
março de 1964 ficou, pela sua natureza, tão distante de uma revolução quanto de
um golpe de Estado.
“Modernizadores” e “tradicionalistas” na disputa do
poder
As
raízes estruturais da crise institucional que culminou com a deposição de João
Goulart estão plantadas solidamente no fenômeno já identificado como “auge do
processo de substituição de importações”. Tratava-se, como analisou com
precisão o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, de recompor “os mecanismos de
acumulação e de recolocar esta última num patamar mais alto capaz de atender ao
avanço verificado no desenvolvimento das forças produtivas”. Portanto,
subjacente aos embates políticos — condicionando-os sem determiná-los — estava
a rearticulação de grupos sociais nacionais (intérpretes do capitalismo
internacional, aos quais se vinculavam direta ou indiretamente), em busca de
uma nova base de alianças capaz de interromper e alterar sensivelmente o modelo
de desenvolvimento econômico-social sustentado por Goulart. Para isto foi
preciso forçar a ruptura constitucional e, posteriormente, estruturar um
Executivo forte e repressivo capaz de desmontar as organizações sociais,
culturais e políticas que traduziam a demanda dos sindicatos, grupos de
esquerda e setores nacionalistas civis e militares. Desmobilizados estes
agentes, implementaram-se as políticas de “arrocho salarial” e de concentração
de renda e capital.
No
jogo político formal, estas forças sociais, cujos interesses prevaleceram após
março de 1964, estavam representadas pelos industriais e setores financeiros,
agindo através de entidades como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais
(IPÊS) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), ou de organizações
classistas como o Conselho Superior das Classes Produtoras (Conclap), todas
entidades e organizações criadas praticamente — não por mero acaso — entre o
final da década de 1950 e o início da década de 1960. A estes setores, que
representavam a face “modernizadora” das camadas dirigentes, juntaram-se os
militares do núcleo doutrinário, orientados pelo binômio “segurança e
desenvolvimento”, conceito ideológico básico da Escola Superior de Guerra
(ESG), chamada no próprio vocabulário da caserna de “Sorbonne” brasileira. Os
“esguianos” integrados a esta vertente modernizante das classes conservadoras —
entre os quais se destacavam os generais Golberi do Couto e Silva, Ernesto
Geisel, Antônio Carlos Murici e Osvaldo Cordeiro de Farias — perceberam, em 1961,
que o fracasso de suas ações explicava-se, fundamentalmente, pelo isolamento
social.
Mas as contradições também dividiam o movimento de oposição a
João Goulart. Não houve, como pode parecer numa análise superficial, um
movimento homogêneo. O propósito consensual de deposição do presidente encobria
o conflito básico que o desunia. Setores das classes produtoras, não integrados
às necessidades de acumulação, refletiam a ponta “atrasada” da indústria e os
interesses latifundiários. Esses setores movimentaram-se pragmaticamente
inspirados por razões imediatistas, como, por exemplo, o fantasma da
“comunização”, ou então para conter mudanças que pudessem afetar diretamente a
base das alianças políticas que articulavam, como a revisão da estrutura
agrária concentradora de terras e da renda agrícola.
Atuando
neste conjunto de forças “tradicionalistas”, no interior do processo
conspiratório, estavam os grupos partidários — o Partido Social Democrático
(PSD), a União Democrática Nacional (UDN), entre outros — e, destacadamente,
governadores estaduais influentes como José de Magalhães Pinto, de Minas
Gerais, Carlos Lacerda, da Guanabara, e Ademar de Barros, de São Paulo. Esta
aliança se completava com o apoio de generais como Olímpio Mourão Filho,
Justino Alves Bastos, Amauri Kruel e Artur da Costa e Silva, que controlavam ou
influenciavam as principais unidades militares. Estes oficiais da “linha dura”
paradoxalmente rompiam a normalidade constitucional ainda no pressuposto da
mediação dos conflitos políticos. É importante notar a identidade dos
comunicados expedidos no dia 31 de março pelo governador Magalhães Pinto e
pelos generais Mourão Filho e Amauri Kruel. Em todos eles a justificativa para
a sublevação se resumia a dois princípios — a luta “contra o comunismo” e a
defesa das “garantias constitucionais”: “Nossa atitude, neste momento
histórico, não representa senão... a restauração da ordem constitucional
comprometida nesta hora” (manifesto do governador Magalhães Pinto); Jango
deveria “ser afastado do poder de que abusava para que, de acordo com a lei, se
opere a sua sucessão” (proclamação do general Mourão Filho à nação e às forças
armadas); “O II Exército... manter-se-á fiel à Constituição e tudo fará no
sentido da manutenção dos poderes constituídos, da ordem e da tranqüilidade.
Sua luta será contra os comunistas e o seu objetivo será o de romper o cerco do
comunismo, que ora compromete e dissolve a autoridade do governo da República”
(declaração do general Amauri Kruel, comandante do II Exército).
Os
fatos posteriores à deposição de Jango indicam que estas manifestações não eram
resultado de simples retórica. Os civis, Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e
Ademar de Barros, romperam com seus “aliados” de conspiração tão logo o general
“modernizador” Humberto Castelo Branco assumiu o governo. Magalhães voltaria a
se recompor com o “poder revolucionário” no governo do general
“tradicionalista” Costa e Silva. Carlos Lacerda e Ademar de Barros, punidos,
tiveram seus direitos políticos suspensos. Os militares, Mourão Filho e Amauri
Kruel, também se incompatibilizaram com o “primeiro governo da revolução”.
Mourão Filho recebeu funções subalternas e aposentou-se como ministro do
Superior Tribunal Militar, enquanto Kruel tornou-se militante do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição. Embora a força das armas dos
conspiradores estivesse sob controle dos “tradicionalistas”, eles não tinham a
representatividade de classe dos “modernizadores”, integrados com os setores
que detinham a hegemonia dos meios de produção. Por isto, os “tradicionalistas”
deram o golpe mas os “modernizadores” ficaram com o poder.
O ensaio golpista de 1961
A
reflexão sobre as origens do movimento de 31 de março de 1964 pode
transformar-se em um infindável processo de “escavação histórica”. A viagem
retrospectiva, habitualmente longa e inconclusa, remontaria à Revolução de 1930
ou, então, em passado mais recente, às crises políticas da década de 1950. Mas
o ponto de partida imediato da conspiração foi, sem dúvida, a renúncia do
presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961. No entreato de 12 dias que
separou a renúncia de Jânio e a posse de Jango estão presentes os atores e os
principais indicadores das lutas sociais e políticas que seriam travadas no
transcurso do governo Goulart.
A renúncia
de Jânio Quadros, denunciada como uma típica manobra “bonapartista civil”,
deixou claro que os anseios do renunciante eram, efetivamente, os de voltar ao
poder por aclamação popular com respaldo das forças armadas. O presidente Jânio
Quadros fez coincidir a data de sua renúncia com a viagem que o vice-presidente
João Goulart fazia à União Soviética e à República Popular da China, em missão
comercial. Esse fato seria considerado um agravante pelos ministros militares
Odílio Denis, da Guerra, Sílvio Heck, da Marinha, e Gabriel Grün Moss, da
Aeronáutica, que tentaram impor um veto à posse de Goulart. Mas o ciclo
golpista não se completaria daquela vez. A mobilização popular que Jânio
Quadros esperava para a sua volta triunfal ao governo ocorreu de fato, mas para
assegurar a normalidade constitucional com a posse do vice-presidente.
No
Congresso Nacional, com poucas deserções, formou-se uma trincheira em defesa da
Constituição. Fundiram-se os interesses partidários. Além do Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), que João Goulart presidia, o PSD, a UDN e outros
partidos de menor representação parlamentar vincularam-se à campanha pela
legalidade. O PSD, partido majoritário no Congresso, falava pela voz de seu
maior líder, o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Com um olho na Constituição
e o outro nas eleições presidenciais de 1965, que pretendia disputar, Juscelino
lembra que não eram só “os partidários e amigos” de Goulart que se batiam pela
sua posse mas, também, seus próprios adversários, que não hesitavam em “opinar
pela obediência à lei”. A UDN, tradicionalmente aliada aos golpes militares,
mesmo frustrada com a experiência eleitoral vitoriosa que a renúncia jogava por
terra, tinha a maioria de seus parlamentares unida, naquele momento, à vontade
popular.
A 2 de setembro, cinco dias antes da posse de Jango, o
Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) divulgou o
resultado de uma consulta feita no então estado da Guanabara. A opinião do
carioca, que refletia o quadro geral do país, indicava: contra a posse 9%; a
favor da posse 91%. Para o deputado udenista Adauto Lúcio Cardoso, integrante
da facção mais influente do partido — a “Banda de Música”, organizada na
campanha contra Vargas —, os ministros militares eram “réus delitos da violação
da Constituição da República”. Escaldados no insucesso das crises
político-militares da década de 1950, alguns militares, assim como os
“bacharéis” da UDN, tinham aprendido que o espírito das leis, quando somado à
vontade popular, cria uma solidariedade social insuperável pela força.
Papéis destacados na campanha da legalidade tiveram ainda a
União Nacional dos Estudantes (UNE), sindicatos, federações de trabalhadores e,
particularmente, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Em transmissões
ininterruptas pela “‘Rede da Legalidade” — uma cadeia radiofônica que alcançava
todos os pontos do país — Brizola ajudou a disseminar a defesa do princípio
constitucional e o caráter antidemocrático do veto imposto à posse de João
Goulart.
A
unidade militar também foi quebrada. O general José Machado Lopes,
comandante do III Exército, no Rio Grande do Sul, rebelou-se contra a decisão
da cúpula militar. A cisão do general Machado Lopes levou a maioria da
oficialidade a apoiar a observância do preceito constitucional, que significava
dar posse ao vice-presidente, independente de simpatias políticas. A iminência
de um choque armado abriu caminho para a conciliação. O deputado Pascoal
Ranieri Mazzilli, do PSD, presidente da Câmara dos Deputados e no exercício
interino da presidência da República, alinhavou nos bastidores — em comum
acordo com os ministros militares — a solução política para sair da crise: a
Emenda Constitucional nº 4, que instituía o parlamentarismo no país. A solução
foi adotada sob protestos. Traduzindo o sentimento de frustração do Congresso,
o ex-governador do Paraná, Bento Munhoz da Rocha, adversário declarado de
Goulart, reconhecia os “direitos políticos inalienáveis” do vice-presidente e
justificava seu apoio à emenda parlamentarista como a “única solução de
emergência capaz de evitar que o país fosse sacudido pela guerra civil”.
O
novo sistema de governo restringia os poderes do presidente, mas parecia conter
o ânimo dos ministros militares. No Manifesto à nação divulgado antes da Emenda
Constitucional nº 4, assinado pelos ministros Denis, Heck e Grün Moss, eles
explicavam sua decisão de se opor à posse de Goulart como o “cumprimento do
dever constitucional” em virtude da “absoluta inconveniência, na atual
situação, do regresso ao país do vice-presidente”.
A invocação do “dever constitucional” revelava a importância
do sentimento de legalidade que permeava a sociedade civil e as forças armadas.
O veto militar à investidura do vice-presidente feria os termos do artigo 79 da
Constituição Federal de 1946. O manifesto militar sugeria restrições ao “poder
pessoal” do presidente, antecipando-se desta forma às medidas políticas
encontradas com a emenda parlamentarista. O manifesto tentava reverter o apoio
a Jango com fortes insinuações político-ideológicas: “Na presidência da
República, em regime que atribui ampla autoridade e poder pessoal ao chefe do
governo, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida alguma, no mais
evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos,
na anarquia, na luta civil. As próprias forças armadas, infiltradas e
domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido em outros países, em
simples milícias comunistas.”
A
“fundamentação” destas justificativas surgia na referência à viagem oficial
empreendida por João Goulart à URSS e à China, o que, para os ministros
militares, denotava a “incontida admiração” do vice-presidente “pelos regimes
desses países”. O caráter ideológico das acusações empurrava as lutas políticas
para a divisão classista. Jango era o adversário que, no exercício do cargo de
ministro do Trabalho, em 1954, “demonstrara bem às claras suas tendências
ideológicas, incentivando e mesmo provocando agitações sucessivas e freqüentes
nos meios sindicais... a infiltração que, por essa época, se processou no
organismo daquele ministério, até em postos-chave da sua administração”.
Era
o segundo confronto entre Goulart e o setor político-militar conservador. O
relógio do tempo tentava recuar a história de 1961 a 1954, quando, pela primeira
vez, os mesmos atores colidiram em defesa de seus interesses, agravando a crise
que levou Getúlio Vargas ao suicídio. Goulart, convocado pelo presidente Vargas
para o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, depois de enfrentar com
sucesso movimentos grevistas, propôs um aumento de 100% no salário mínimo, que
estava “congelado” havia alguns anos. A proposta, acatada por Vargas, provocou
a reação da classe empresarial e dos militares. Forçado a deixar o ministério,
em fevereiro de 1954 Goulart escreveu longa e reveladora carta pessoal ao
presidente. O documento, pouco conhecido, é peça importante para se conhecer o
pensamento de Goulart e para decifrar contradições que seriam agravadas quando,
sete anos depois, assumiu a chefia do governo: “Há um capitalismo honesto,
amigo do progresso, de sentimento sadiamente nacionalista, que sempre mereceu o
meu aplauso e o meu apoio. Há outro, entretanto, que jamais deixará de contar
com a minha formal repulsa. Refiro-me ao capitalismo desumano, absorvente de forma
e essência, caracteristicamente antibrasileiro, que gera trustes e cria
privilégios e que, não tendo pátria, não hesita em explorar e tripudiar sobre a
miséria do povo.”
A
carta de Goulart, escrita na crise de 1954, cotejada com o Manifesto à nação
dos ministros militares que em 1961 o acusavam de incentivar greves e a luta de
classes, pode ser interpretada como uma resposta antecipada não só àquelas
acusações como, também, às que seriam repetidas entre 1963 e 1964, durante a
campanha de desestabilização política do seu governo: “Fui acusado de fomentar
greves, de promover agitações nos meios operários, de articular a luta de
classes, passando como implacável inimigo do capitalismo. Tão injusta quanto as
outras, porém, é esta última sensação.”
Muitas
destas incriminações das quais Jango se defendia constavam igualmente do
Manifesto dos coronéis, divulgado pouco antes de Goulart ser afastado do
Ministério do Trabalho. O aumento do salário mínimo proposto por Goulart
tornava os ganhos mensais dos trabalhadores civis iguais ou superiores ao soldo
dos militares subalternos. A repercussão dessa proposta no meio militar
revelaria o surgimento de um grupo de oficiais, inspiradores ou signatários do
manifesto, com uma concepção mais doutrinária da conduta militar no processo
político. Esse grupo, composto de veteranos oficiais como Cordeiro de Farias e
Ademar de Queirós ou novatos como Golberi do Couto e Silva, Orlando e Ernesto
Geisel, Antônio Carlos Murici, entre outros, era o mesmo que havia formado o
núcleo organizador da Escola Superior de Guerra e que, dez anos depois,
assomaria ao poder como condottieri do movimento de 31 de março de 1964.
Desiludidos
com o fracasso do movimento golpista de 1961, os integrantes deste grupo
militar (os “modernizadores”) não se aventurariam mais a participar do jogo
político a reboque de lideranças carismáticas personalistas como Jânio Quadros.
Relembrando a penetração do janismo nos quartéis, o marechal Cordeiro de Farias
diria depois que “se pudesse haver urnas em que só votassem oficiais do
Exército, Jânio teria sido vitorioso com 80% dos votos”. O impacto ocorrido com
a renúncia e o fracasso do golpe contra a posse de Goulart levariam estes
militares a rever posições. O general Antônio Carlos Murici, que estaria na
vanguarda militar das tropas de Minas rebeladas pelo general Mourão Filho
contra Goulart, explicou a principal “lição” aprendida por eles e que os levou
da derrota de 1961 à vitória de 1964. Segundo o general Murici, “o sentimento
de legalidade profundamente arraigado nas forças armadas” ensinou que nenhum
movimento podia eclodir com sucesso se não tivesse “uma base legal” e o “apoio
do povo”.
O exemplo mais notório desta percepção ocorreu com o general
Golberi do Couto e Silva. Em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros, ele deu
baixa no serviço ativo do Exército retirando-se de cena, discretamente, para
tornar-se um dos “cérebros” na organização do Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais, centro de irradiação da pregação doutrinária contra as “reformas de
base” e de articulação dos setores políticos, militares e empresariais no
movimento contra Goulart.
Os quadros políticos também iriam rever seus papéis. A UDN,
espelho eleitoral da classe média, desempenharia no Congresso funções
integradas na estratégia doutrinária contra Goulart. Formada na luta contra a
ditadura de Vargas no Estado Novo, quando chegou a congregar setores de
“esquerda”, a UDN passou a responder ao insucesso das urnas — imposto pela
aliança PSD-PTB —, com artifícios antidemocráticos. Ora rondava os quartéis,
ora usava as fórmulas jurídicas emanadas da engenhosidade do seu núcleo de
bacharéis. Afonso Arinos, um dos mais ilustres representantes dos bacharéis
udenistas, admitiria o “espírito golpista” que dominava o partido em
autocrítica feita alguns anos depois de ter-se retirado da militância
partidária: “Fui induzido pela chefia civil e militar do meu partido a tomar
atitudes com as quais eu não concordava. A tese da maioria absoluta que
levantamos na vitória de JK mostra a inconformidade com as soluções
democráticas.”
Estes
ensaios golpistas da década de 1950, malsucedidos, repetidos mais uma vez em
1961, possibilitaram aos udenistas estabelecer relações mais freqüentes com os
“chefes militares” do partido e também com o empresariado “modernizador”, que
tentou pela última vez com Jânio Quadros (a quem deu sustentação financeira
para a campanha presidencial) estabelecer a hegemonia do processo político pela
via eleitoral. Estes laços de identidade entre políticos, militares e
empresários se estreitariam no combate ao programa de “reformas de base” de
Goulart e se uniriam na tomada do poder manu militari em março de 1964.
Duas propostas para o Brasil: reformas de base ou
modernização conservadora
Por trás destas crises políticas da década de 1950, que se
repetiram no início da década de 1960 com a renúncia de Jânio Quadros e a posse
de Goulart, revelava-se o esgotamento do modelo econômico e o processo de
transformação e desenvolvimento do capitalismo brasileiro, que, como economia
periférica, refletia as transformações do capitalismo internacional. Em agosto
de 1961, quando Jango assumiu o governo, os sintomas visíveis desta crise
formavam uma moldura inquietante para a sua administração e criavam um clima
propício para a insatisfação social. O Brasil já não conseguia as grandes taxas
de desenvolvimento e a inflação crônica entrava em elevação aguda com tendência
a atingir e superar a marca dos 100% anuais. Havia déficit do tesouro e
desequilíbrio no balanço de pagamentos. A dívida externa aproximava-se dos
três bilhões de dólares. Neste quadro conjuntural negativo, tanto Goulart
quanto seus adversários perceberam a necessidade de mudanças, detectando a
falência do modelo econômico.
Sob a égide do parlamentarismo, que interrompia 70 anos de
funcionamento do regime presidencialista, João Goulart tomou posse no dia 7 de
setembro de 1961, data representativa da independência política do Brasil.
Poucas semanas depois da posse, falando perante o II Congresso de Assembléias
Legislativas, o presidente apontava o caminho que adotaria para superar a crise
econômico-financeira: “Mobilizar todas as forças (do país) no sentido de
acelerar as reformas.”
Reformas também estavam no plano dos setores mais modernos do
empresariado brasileiro. Antônio Carlos do Amaral Osório, um dos mais ativos
representantes do patronato de oposição a Goulart, membro da American Chamber
of Commerce, escreveria para O processo revolucionário brasileiro (publicado em
1969 pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República)
que, na década de 1960, “somente uma revolução poderia enfrentar a tarefa
múltipla de modernizar o Estado brasileiro... modificando aspectos das
estruturas econômicas e sociais”.
Também nas escolas de formulação da doutrina militar, a
necessidade de transformações era admitida como inevitável. Segundo o general
Antônio Carlos Murici, na ESG chegou-se à conclusão de que “para o bem-estar do
povo brasileiro, era necessário modificar a estrutura socioeconômica do
Brasil”.
Para nenhum grupo social havia mais dúvidas sobre as origens
da crise que o país atravessava. Tratava-se, portanto, de um confronto entre
dois projetos. Isto significava que, se o governo e seus aliados não
conseguissem fazer as “reformas de base”, as classes conservadoras as fariam.
Só que a seu modo.
As
duas propostas radicalizaram o conflito entre governo e oposição, provocando,
quiçá pela primeira vez no Brasil, um momento de estratificação ideológica do
debate político. Para resolver os impasses estruturais da crise, o governo
apresentou o programa de “reformas de base” de caráter inteiramente reformista.
Medidas como a mobilização sindical, a redistribuição da renda, a reforma
agrária, a Lei de Remessa de Lucros e o congelamento de aluguéis criaram uma
grande “frente” de oposição, deixando o governo com o apoio frágil (porque
desorganizado) dos sindicatos de trabalhadores e de grupos minoritários nas
forças armadas e outros setores profissionais.
A
execução das inovações pretendidas, como a reforma agrária, implicaria
alterações na Constituição. Elaborada após o período ditatorial do Estado Novo,
a Constituição de 1946 tinha um caráter anti-Executivo. Por isso primava pelas
garantias das liberdades públicas formais. Mas o seu conceito de democracia se
esgotava na definição política, já que as medidas de alcance social inexistiam
ou, quando estavam presentes, eram direitos sem efetividade prática, conquistas
meramente figurativas.
Nas
relações internacionais, o país, com Goulart, trilharia caminhos sugeridos,
ainda que timidamente, nos sete meses da administração de Jânio Quadros. O
Brasil assumiu posição em favor da “autodeterminação dos povos e contra a
intervenção nos assuntos internos de cada país”, libertando as ações do
Itamarati da influência direta dos Estados Unidos.
De
um modo geral, contra estas iniciativas políticas internas e externas
reuniram-se os adversários do governo: o empresariado, os militares
conservadores, setores da Igreja Católica (já em meio ao cisma teológico que
dividiu os religiosos em “progressistas” e “tradicionalistas”), as classes
médias urbanas e o patronato rural. O cenário que estes grupos montavam para o
Brasil era totalmente distinto do pretendido pelo governo de Goulart. No
pós-1964, para desmobilizar os sindicatos e grupos de pressão de esquerda, iria
se criar um forte aparelho coercitivo, dirigido por um Executivo centralizador
que se sobrepôs ao Legislativo e ao Judiciário, excluindo suas decisões da
fiscalização da sociedade. A política externa retomaria, por seu lado, ao leito
do alinhamento automático com os Estados Unidos.
Reação conservadora: da oposição ostensiva à
conspiração subterrânea
O desdobramento do processo político desempenhou um papel
ativo no resultado do conflito entre o governo de João Goulart e a oposição. O
primeiro gabinete parlamentarista, moderado e pluripartidário, levava em conta
a hegemonia do PSD na aliança com o PTB, que dava sustentação parlamentar ao
governo. O primeiro-ministro Tancredo Neves, do PSD, tinha em seu gabinete
apenas um representante do PTR, Francisco de San Tiago Dantas, ministro das
Relações Exteriores, um do Partido Democrata Cristão (PDC), Franco Montoro,
ministro do Trabalho, além de integrantes da UDN. O ministro da Fazenda, Válter
Moreira Sales, era insuspeito aos olhos dos empresários brasileiros e da
comunidade financeira internacional.
Mas
esta composição moderada descontentou o “esquerdismo” na base de apoio do
governo e não trouxe a confiança dos setores de direita mais radicais. Nas
forças armadas, os oficiais “tradicionalistas”, identificados com a “linha
dura”, não interromperam seus projetos de conspiração. Para o ex-ministro da
Guerra Odílio Denis, já então na reserva e elevado ao posto de marechal, João
Goulart estava definitivamente “incompatibilizado com o regime instituído na
Constituição de 1946” porque se “aliara aos comunistas”. Principal articulador
do veto militar à posse de Goulart, o marechal Denis tentava arrancar do
próprio regime parlamentarista o argumento para um novo veto, sustentando que a
Emenda Constitucional nº 4 “implicava a extinção do mandato de João Goulart,
eleito vice-presidente pelo regime presidencial que não mais vigorava”.
Espremido
entre o radicalismo de “esquerda” e de “direita” e com o seu raio de ação
limitado pelo regime parlamentarista, o governo tinha como única perspectiva de
longevidade manter inalterada sua base política, firmada no acordo PSD-PTB. Mas
a natureza da crise e os métodos pretendidos pelo governo para combatê-la
exigiam medidas que romperiam esta aliança. Incluía-se aí, como exemplo mais
expressivo e controvertido, a reorganização do sistema fundiário, cujos
interesses estavam guarnecidos pelo PSD. Entre os aliados do governo foi
natural, também, que as Ligas Camponesas — organizando os trabalhadores do
campo — vissem com desconfiança a ação oficial no setor em virtude do acordo
com o PSD dos “coronéis” latifundiários.
O vaivém dos acontecimentos políticos provocou a divisão da
“esquerda” e uma férrea união da “direita”. Mas a trajetória do comportamento
da oposição a Goulart mostra que houve, pelos menos, três fases distintas e
sucessivas em seu governo.
A primeira fase, que se estende da posse de Goulart ao fim do
gabinete Tancredo Neves, caracteriza-se como de oposição ostensiva, porém
legalista. Não obstante a existência de facções radicais (movidas por
interesses pessoais ou pela rudimentar propaganda anticomunista), a oposição
politicamente mais conseqüente — a vanguarda empresarial, política e militar
aglutinada pelo IPÊS — procurava conter o governo no Congresso ou pela disputa
eleitoral.
Nesta
fase parlamentarista a presença do premier Tancredo Neves garantia, aos olhos
da oposição, que o governo se conteria nos limites da Constituição, muito
embora seus adversários reagissem fortemente a todas as decisões que
contrariavam interesses estabelecidos. Mesmo “amarrado” pela aliança do PTB com
o PSD, o governo estabeleceu parâmetros mais amplos para as suas ações. Entre
outras medidas, reatou relações diplomáticas com a União Soviética, rompidas
desde 1947, decretou a caducidade da concessão de exploração de jazidas
minerais em poder da Hanna Minning Corporation e incentivou a criação do
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), indiferente às decisões restritivas da
Justiça Trabalhista. No âmbito das relações exteriores, o Brasil rompeu os elos
da política de “alinhamento automático” na Conferência de Punta del Este ao se
abster de votar a proposta norte-americana de expulsão de Cuba da Organização
dos Estados Americanos (OEA) proposta pelos Estados Unidos, que acabou
vencedora com 14 votos favoráveis ao afastamento cubano da organização.
O gabinete Tancredo Neves se dissolveu em junho de 1962,
pouco depois de Goulart anunciar, pela primeira vez, que pretendia alterar a
Constituição para fazer a reforma agrária. O governo justificava a
necessidade da alteração constitucional em virtude de o artigo 141 determinar
que as desapropriações, mesmo tendo caráter social, exigiam indenização “prévia
e em dinheiro”. Sem esta modificação, considerou Goulart, o projeto de reforma
agrária se transformaria, antes de tudo, num grande negócio para os
especuladores de terras rurais. Defensor da estrutura da propriedade fundiária,
o PSD rompeu a aliança com o PTB. No Congresso houve um reordenamento de forças
e a multiplicidade partidária reduziu-se, nas votações mais importantes, a dois
grandes blocos: a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), de apoio às reformas,
e a Ação Democrática Parlamentar (ADP), de oposição a elas.
Para os adversários do governo, a dissolução do gabinete
Tancredo Neves marcou uma segunda fase de ação que só terminaria com a
realização do plebiscito. Neste momento as oposições se mobilizaram para as
eleições de outubro de 1962 e para a campanha em defesa do regime
parlamentarista que ia a julgamento popular em janeiro de 1963, motivadas ainda
mais por outras decisões do governo, como o estabelecimento do monopólio da
importação do petróleo e seus derivados e a criação da Superintendência da
Política Agrária (Supra). Os interesses empresariais se aglutinaram de maneira
mais transparente em virtude do trabalho de articulação e propaganda do IPÊS.
Um esforço monumental foi feito para derrotar o governo eleitoralmente. O
empresariado nacional e internacional com interesses no Brasil injetou através
do IBAD uma grande soma de dinheiro na campanha eleitoral. Este apoio
financeiro a candidatos indicados pelo IBAD, somente em dólares, segundo
cálculos do então embaixador americano Lincoln Gordon, “pode ter chegado a
cinco milhões”.
O
resultado não foi plenamente satisfatório. A UDN obteve o terceiro lugar em
número de votos e o PTB conseguiu o segundo, com um aumento sensível da bancada
ideológica de “esquerda”, enquanto o PSD permanecia como partido majoritário no
Congresso. A composição de forças, de qualquer forma, prendia o presidente
Goulart e suas decisões a um novo acordo com o PSD. Não era difícil de se
prever que o bloco do PSD numericamente mais expressivo se aliaria contra as
reformas. Para continuar neutralizando as ações do governo no Congresso restava
à oposição manter o regime parlamentarista.
As contradições políticas da oposição facilitariam, porém, a
vitória de Goulart, empenhado em restabelecer o presidencialismo e seus plenos
poderes como presidente. As eleições presidenciais, previstas para 1965, seriam
um fator favorável ao governo na medida em que as ambições dos
“presidenciáveis” da UDN e do PSD os deixariam indiferentes à sorte do
parlamentarismo (como aconteceu com Carlos Lacerda) ou, então, francamente a
favor da restauração do presidencialismo, a exemplo de Magalhães Pinto e do
ex-presidente Juscelino Kubitschek.
O
resultado do plebiscito (9.457.448 votos pelo presidencialismo e apenas
2.073.582 a favor do parlamentarismo) se, por um lado, devolveu a Goulart os
poderes que lhe foram tirados para assumir o governo, por outro, determinou uma
opção decisiva para seus adversários: a conspiração. Uniram-se os setores
radicais “tradicionalistas” que já vinham conspirando há longo tempo e os
“modernizadores”, que deram um novo rumo à campanha político-ideológica contra
o governo. A partir deste momento, buscou-se a aprovação da opinião pública
nacional — a classe média, notadamente — e da opinião internacional, para a
tomada do poder com um golpe de força.
O
desenvolvimento progressivo deste processo, na oposição, foi observado por
Jorge Oscar de Melo Flores, ligado profissionalmente ao Chase Manhattan Bank, à
época, diretor do IPÊS, e presidente do Sindicato dos Bancos: “Os líderes
empresariais, normalmente divididos por interesses contraditórios... uniram-se
ante o perigo comum e tomaram uma posição que... com a evolução dos
acontecimentos, passou por fases sucessivas cada vez mais radicalizadas, até
atingir o estágio revolucionário.”
O “estágio revolucionário” envolveu a decisão militar. Os
marechais Odílio Denis e Cordeiro de Farias, em correntes diferentes da
conspiração, fixaram no restabelecimento do presidencialismo o momento decisivo
da trama golpista: “Com a queda do parlamentarismo... era preciso agir pela
força para derrubar o governo” (Odílio Denis); “Creio que podemos situar o início
da conspiração, como atividade política relativamente organizada, no momento em
que Jango recuperou todos os poderes, após o plebiscito que restaurou o
presidencialismo” (Cordeiro de Farias).
Mas
os militares não deixaram os quartéis — sob o risco de repetir o fiasco de 1961
— se não houvesse um sentimento social de oposição a Jango, para o qual
contribuiu a alta taxa de inflação, capitalizada pelos seus adversários. Entre
o plebiscito de janeiro de 1963 — que ratificou o apoio a Goulart — e o golpe
de 31 de março de 1964 operou-se uma transformação radical na opinião pública
graças a um bem-sucedido plano de agitação e propaganda.
O
Congresso transformou-se na caixa de ressonância de todo o plano cujo objetivo
principal era atrair a simpatia do maior número possível dos grupos sociais. O
deputado Olavo Bilac Pinto, da UDN, numa série de importantes discursos,
denunciava a suposta “guerra revolucionária” no Brasil. Apoiado em estudos
militares, o parlamentar afirmava que a “guerra revolucionária” no Brasil estava
em sua terceira e última fase: a tomada do poder pelas armas. O clero
conservador (tendo à frente o cardeal dom Jaime de Barros Câmara, do Rio)
apoiava a campanha contra o governo afirmando combater “a ameaça comunista”.
Grupos femininos, como a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), promoviam
manifestações antigovernistas incentivadas por organismos classistas patronais.
Os quartéis eram ‘bombardeados” com prospectos denunciando a mobilização de
militares subalternos (sargentos e marinheiros) como parte do esquema de
Goulart para transformar as forças armadas em “milícias comunistas”. Os
empresários faziam freqüentes ameaças de lockout e havia denúncias sucessivas
de que o governo pretendia fechar o Congresso e implantar uma ditadura
“anarcocomunista” ou uma “república sindicalista”.
A
ação do governo promovendo intensa mobilização dos setores subalternos, que
ameaçava alterar as relações sociais no campo (com a mobilização das ligas
camponesas pela reforma agrária) e as relações hierárquicas nas forças armadas
(a exemplo dos movimentos dos sargentos e marinheiros) e que vinha disciplinar
o capital estrangeiro (com a Lei da Remessa de Lucros), tornou-se o arsenal
onde os conspiradores buscavam sua munição.
Frente a tamanha campanha e à grande articulação de forças
contrárias, o governo sucumbiu. João Goulart não teve êxito na difícil e
perigosa tarefa de introduzir inovações que alterariam o equilíbrio político,
social e econômico, de predominância conservadora. Ele teve contra si não só
aquelas forças bem alojadas no contexto do pacto social que vigorava, como
também o fato de não ter construído as novas bases de sustentação do governo
entre as forças que talvez viessem se beneficiar com as transformações com que
acenava.
O IPÊS
Criado
em 1961, ainda no governo de Jânio Quadros, por um grupo de empresários
representantes da extração moderna da classe dirigente brasileira, o Instituto
de Pesquisas e Estudos Sociais (IPÊS) tornou-se o laboratório de formulação de
um programa político e econômico com o objetivo de rearticular os mecanismos de
acumulação, em bases modernas, capaz de promover a ascensão do capitalismo
brasileiro a um estágio mais ajustado às suas próprias necessidades de
desenvolvimento. Modelou-se ali um programa de reformas, conservador mas
suficientemente ousado para sugerir, inclusive, a adoção de uma reforma
agrária.
Estas propostas, embora avançadas e contrárias aos interesses
imediatos de grupos “tradicionalistas” (como, por exemplo, a oligarquia
latifundiária), consolidou a aliança “modernizadora” firmada entre setores
empresariais, políticos e militares, responsável pela preparação e, em boa
parte, pelo sucesso do levante de 31 de março de 1964.
O avanço de forças sociais — sindicatos, grupos de esquerda e
setores nacionalistas das forças armadas — , com um programa distinto e cujos
interesses refletiam-se nas reformas de base do governo de Goulart, ampliou e
transformou a proposta inicial do IPÊS. Por trás das atividades técnicas e
aparentemente neutras de uma entidade voltada para objetivos essencialmente
“educacionais e cívicos”, passou a prevalecer a luta política e a propaganda
contra as reformas estruturais incentivadas por Jango, de cunho nacionalista e
de tendência social mais avançada.
Em
sua fase “defensiva”, a campanha do IPÊS promovia “os valores” da livre
iniciativa e dava suporte financeiro a candidatos comprometidos politicamente
com os seus propósitos. Mas o fracasso nas eleições de outubro de 1962 e o
desdobramento do processo político forçaram uma ação “ofensiva”. A campanha foi
enraizada num segmento social já abalado pela crise econômica. A classe média,
agitada pelo “fantasma” do comunismo associado aos objetivos reformistas do
governo, sintonizou-se com a propaganda ideológica do IPÊS.
Em fins de 1963, o IPÊS já contava com mais de quinhentos
membros, havia-se expandido por outros estados, além do Rio e São Paulo, e
organizado o recrutamento de novos filiados. Cada integrante de um núcleo
original de 50 membros foi encarregado de trazer outros cinco, e, assim,
sucessivamente.
As atividades ideológicas e de organização do IPÊS cresceram
muito além do meio empresarial no qual teve origem. Seus dirigentes e
associados trabalharam incessantemente no Congresso, nas forças armadas, nos
sindicatos de trabalhadores, no movimento estudantil, na Igreja e no movimento
camponês. Registrado como “agremiação apartidária”, o IPÊS atuava nestes
múltiplos setores associado a siglas como o IBAD, a Camde, o Grupo de Ação
Patriótica (GAP), a União Cívica Feminina (UCF) e o Movimento Sindical
Democrático (MSD). No Congresso patrocinou a formação da Ação Democrática
Parlamentar (ADP), bloco interpartidário que congregou os políticos
antijanguistas.
Este
intenso trabalho de propaganda, aliciamento e persuasão da opinião pública
consolidou uma ampla frente contra o governo. A deflagração do golpe encontrou
o “terreno” da sociedade preparado para apoiá-lo. O IPÊS tornou-se, na
constatação de René Armand Dreyfuss, autor de minucioso trabalho sobre a
organização, funcionamento e ação desta entidade, “o verdadeiro partido da
burguesia”. Ou ainda, na fase da conspiração, “o seu estado-maior para a ação
ideológica, política e militar”.
Quais
eram os mecanismos que faziam funcionar esta poderosa organização? A
estruturação interna do IPÊS estava assentada na ação de cinco grupos, cada um
deles encarregado de retransmitir as determinações de um conselho orientador,
um comitê diretor e um comitê executivo. O mais importante destes “braços
executivos” do IPÊS era o “grupo de levantamento de conjuntura” (GLC) chefiado
pelo general Golberi do Couto e Silva. A função principal do GLC era a de
registrar os acontecimentos políticos em todas as áreas e setores, fazendo
avaliações e previsões de seus reflexos. Cabia também ao GLC indicar os rumos
da ação do IPÊS sugerindo mudanças, alternativas e ações que pudessem
influenciar o processo político. O general Golberi e seus comandados eram
encarregados da ligação dos empresários com os militares e da montagem de um
“banco de informações”. Foi a partir do armazenamento destes dados que, após
1964, montou-se o arquivo do Serviço Nacional de Informações (SNI), que Golberi
criou e dirigiu.
O “grupo de assessoria parlamentar”(GAP) chamado
no jargão ipesiano de “escritório de Brasília” era o canal por onde corriam os
meios de influência do IPÊS no Congresso Nacional. O chefe do GAP era o
banqueiro Jorge Oscar de Melo Flores, que, através da estruturação do bloco
político de oposição, a Ação Democrática Parlamentar, estabeleceu um controle
de enorme influência nas decisões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
A estratégia do GAP consistia em bloquear as propostas governamentais no
Legislativo para forçar João Goulart e seus aliados a hostilizar o Congresso e,
com isto, perder o apoio que ainda mantinham dos setores mais liberais da
sociedade e das forças armadas.
O
“grupo de opinião pública” (GOP) era incumbido de disseminar os objetivos e as
atividades do instituto, organizando palestras, seminários e, fundamentalmente,
municiando de informações a imprensa escrita, falada e televisionada. O “grupo
de publicações/editorial” (GPE) tinha por tarefa a distribuição do material
impresso e visual com a mensagem certa e adaptada aos grupos sociais e às
diversas regiões do país. Somente em 1963, ano da mais intensa atividade dos
grupos de oposição a Goulart, o GPE editou 280 mil exemplares de livros e dois
milhões e quinhentos mil panfletos. Finalmente, o quinteto de ação e
doutrinação do IPÊS se completava com o “grupo de estudo e doutrina” (GED), que
funcionava como um centro de pesquisa, suprindo o GLC e o GPE com material para
seu trabalho.
Foi
preciso, obviamente, muito dinheiro para movimentar uma máquina de propaganda
tão dispendiosa. Os recursos internos vinham muitas vezes através de mecanismos
simples, como a criação de agências de propaganda que emitiam faturas para as
empresas colaboradoras em nome de serviços que não eram prestados. O apoio
externo, segundo dados compilados dos arquivos do IPÊS, veio de quase trezentas
empresas norte-americanas e de mais de uma centena de empresas de origens
diversas.
O duplo papel dos EUA: padre Peyton e “Brother Sam”
Toda a política norte-americana para a América Latina, no
início da década de 1960, foi sublinhada pelos acontecimentos em Cuba. Fidel
Castro declarou o caráter revolucionário do seu governo e estreitou laços
políticos com a União Soviética. A partir daí, no julgamento do Departamento de
Estado, pairou a ameaça de cubanização da América Latina. Outros episódios
políticos ocorridos no continente, em nada porém semelhantes ao processo
cubano, fizeram os Estados Unidos aquecerem a “guerra fria” com a União
Soviética no tabuleiro da diplomacia latino-americana.
Basicamente
em função disto, e como pólo para atração de aliados, foi lançado o programa
Aliança para o Progresso, uma proposta assistencialista justificada pela
“degradação social” na América Latina. Na ótica do presidente John Kennedy,
deveriam ser incentivadas as políticas de reformas como antídoto ao “veneno”
das revoluções. O “fantasma” de sierra Maestra foi, também, uma advertência ao
Congresso norte-americano — dominado por republicanos — que ameaçava cortar
parte substancial das verbas de assistência financeira no orçamento elaborado
pelo governo democrata de Kennedy. Mas, além da pressão dos congressistas,
Kennedy enfrentava a reação empresarial, cujos interesses estavam ameaçados ou
eram afetados pelas nacionalizações de empresas norte-americanas no exterior, a
exemplo do que ocorreu no Rio Grande do Sul em fevereiro de 1962, quando o
governador Leonel Brizola encampou uma subsidiária da International Telephone
and Telegraph. No dia seguinte a esta decisão, o presidente da ITT enviou
telegrama urgente e confidencial à Casa Branca, solicitando providências
pessoais de Kennedy e traçando paralelos entre o que ele chamou de “tomada
irresponsável” das propriedades estrangeiras no Brasil e o processo
revolucionário cubano.
Neste
quadro, não houve novidade no fato de os Estados Unidos tentarem — e
conseguirem — influenciar o que acontecia no Brasil. A participação
norte-americana no movimento contra o governo Goulart ocorreu não só através da
desestabilização, (o estrangulamento econômico com o respaldo da propaganda,
visando enfraquecer politicamente o governo) como na deposição do presidente.
Os exemplos mais notórios foram a campanha religiosa anticomunista do padre
Patrick Peyton e a operação naval “Brother Sam”, que daria sustentação militar
aos revoltosos em caso de necessidade. Mas a ação diplomática, a influência
econômica, o suporte financeiro para os adversários de Goulart e, por fim, as
tarefas destinadas aos navios da operação “Brother Sam” só teriam sua extensão
e profundidade inteiramente conhecidas após a liberação de documentos oficiais
do governo de Washington, ainda mantidos em sigilo. A pesquisadora
norte-americana Phyllis R. Parker, que em 1976 decifrou documentos importantes
sobre as atividades dos Estados Unidos durante o governo de Goulart, registrou
que algumas das partes mais delicadas da correspondência entre o governo dos
EUA e sua embaixada no Brasil ainda se encontravam inacessíveis. Mesmo assim,
pelo que se conhece da documentação e pelos depoimentos dos mais importantes
atores políticos daquele processo, já é possível remontar as atividades
norte-americanas contra Jango.
A
posse de João Goulart foi recebida em Washington com extrema frieza. O
Departamento de Estado, por exemplo, deu ao novo presidente brasileiro apenas o
“benefício da dúvida” conforme a avaliação de um memorando encaminhado ao
presidente Kennedy. O teor deste documento indica o grau de dificuldade que
Goulart encontrou para obter recursos externos, fundamentais não só para
desenvolver o seu programa de governo como também para saldar compromissos com
a dívida externa, superior a dois bilhões de dólares na ocasião. Era um sinal
patente de que, malgrado a simpatia recíproca entre Goulart e Kennedy, as
relações com o Brasil oscilariam entre a política liberalizante do presidente e
os interesses dos grupos internos de pressão nos EUA.
A economia brasileira, extremamente integrada e dependente da
norte-americana, favoreceu um controle parcial das ações mais substanciais do
governo. Só isto explica o fato de Goulart ter postergado, por mais de um ano,
a assinatura da Lei de Remessa de Lucros, aprovada pelo Congresso brasileiro.
O
poder e o interesse dos grupos empresariais norte-americanos no Brasil estão
coligidos num relatório do Bureau of Intelligence and Research, do Departamento
de Estado, elaborado em 1963. Das 55 principais empresas que operavam no
Brasil, 31 eram multinacionais e 24 nacionais. Destas, mais da metade era
associada a interesses estrangeiros. Dos 3,5 bilhões de dólares investidos no
Brasil naquele período, cerca de 1/3 era americano.
A administração de Kennedy, ao que tudo indica, preferiu
acreditar no sucesso da ação diplomática, na eficácia da propaganda e no
poderio dos dólares. Para executar estas tarefas, Washington destacou um novo
embaixador. A escolha recaiu sobre o scholar Lincoln Gordon, um professor de
Harvard que trabalhou na elaboração da Aliança para o Progresso. Gordon,
indicado semanas antes da renúncia de Jânio (quando o presidente já esboçava o
perfil de uma política externa mais independente), só assumiu o posto após a
crise da posse. O novo embaixador fez pressão contínua contra o desenvolvimento
da “política externa independente” concretizada por Goulart. Durante suas
audiências no palácio do Planalto, Gordon insistia contra a presença de
elementos “esquerdistas” e “comunistas” em postos-chave da administração
brasileira e sempre ouvia como resposta as sérias restrições de Goulart à
participação dos EUA na desestabilização de governos latino-americanos.
Um
ano depois da chegada de Gordon, outro personagem importante se incorporaria à
embaixada: o adido militar, coronel Vernon Walters. A presença de Walters,
lingüista brilhante, intérprete do comando norte-americano junto aos oficiais
brasileiros na Segunda Guerra Mundial, estimulou a hipótese levantada por
setores da esquerda brasileira, da ingerência direta de Washington no golpe contra
Goulart. Um diálogo entre o embaixador e o seu novo adido militar, revelado por
Walters, desvenda parte da atuação destes dois homens, que depois, se tornaram
dirigentes da Central Intelligence Agency (CIA): “Quero saber o que está
acontecendo; quero poder influenciar as atividades do país e não quero
surpresas”, instruiu o embaixador. Posteriormente, Walters recordaria: “Ele
nunca teve surpresas.”
Os laços em torno das restrições econômico-financeiras também
não foram afrouxados. Mesmo os empréstimos negociados e aprovados antes da
posse de Goulart só foram liberados parcialmente. Assim ocorreu com uma ajuda
de 338 milhões de dólares, aprovada em maio de 1961 e da qual só 40 milhões de
dólares chegaram ao Brasil.
A hostilidade da comunidade empresarial aumentou
sensivelmente em setembro de 1962, quando o Congresso brasileiro aprovou a Lei
de Remessa de Lucros, que Goulart sancionaria somente em janeiro de 1964. Entre
outras medidas disciplinadoras do capital estrangeiro, a nova lei restringia a
remessa de lucros das empresas multinacionais no país a 10% do capital
registrado.
Por duas vezes encontraram-se os presidentes Goulart e
Kennedy, para discutir uma pauta carregada de desencontros políticos.
A sintonia dos entendimentos conseguidos nas negociações perdia-se no
conflito de interesses dos dois países. O insucesso de Kennedy em conter os
avanços de Goulart acirrava a pressão do Congresso norte-americano sobre o seu
governo. Numa reação ostensiva contra o prolongamento das negociações sobre o
valor a ser pago pelo Brasil com a nacionalização da ITT, os congressistas
aprovaram a emenda Hickenlooper. A partir de então, o governo norte-americano
estava obrigado a suspender planos de ajuda a qualquer governo que expropriasse
empresas de capital norte-americano sem indenização integral do valor da
propriedade num prazo máximo de seis meses.
A aproximação das eleições brasileiras, em outubro de 1962,
levou a participação norte-americana nos assuntos internos do Brasil a alcançar
um outro patamar. Kennedy alertou seu staff para a importância “crucial” das
eleições no desdobramento do processo político brasileiro. Kennedy percebeu, a
exemplo dos adversários internos de Jango, que era preciso estancar o
crescimento das esquerdas no Congresso. Para influenciar no resultado eleitoral
abriu-se, através do IBAD, um conduto para milhões de dólares despejados na
campanha dos candidatos conservadores. Segundo o ex-agente da CIA, Philip Agee,
os fundos provenientes de fontes estrangeiras foram utilizados na campanha de
oito candidatos aos governos dos 11 estados onde houve eleições, em apoio a 15
candidatos ao Senado, a 250 candidatos à Câmara e a mais de quinhentos
candidatos às assembléias legislativas.
O resultado eleitoral não compensou o esforço financeiro. A
bancada “da esquerda” aumentou sua presença e influência no Legislativo. Além
disto, a “enxurrada de dólares” originou a criação de uma comissão parlamentar
de inquérito. Apuradas as atividades do IBAD, descobriu-se que o dinheiro para
a campanha dos adversários de Goulart entrava no país pelo Royal Bank of
Canada, Bank of Boston e First National City Bank.
Nos Estados Unidos, os grupos mais conservadores e atuantes
aumentavam a pressão sobre o governo. Duas semanas após as eleições
brasileiras, os assessores de Kennedy foram alvejados por um artigo de grande
repercussão, publicado no jornal Maryland Monitor. Sem meias palavras, o jornal
insinuava uma intervenção direta no Brasil, argumentando que “logo chegará o
momento em que teremos de perguntar a nós mesmos se é do nosso próprio
interesse que Goulart continue a cambalear até o fim de seu mandato, em 1965...
ou se nossos interesses seriam mais bem servidos se Goulart fosse aposentado do
governo antes da data marcada”.
A
morte de Kennedy ajudaria a definir o rumo a tomar. Antes disto, porém, o
Departamento de Estado insistiu num processo mais sofisticado. Foi enviado ao
Brasil o padre Peyton, pároco de Hollywood. Para fazer a intensa mobilização
dos católicos, ele lançou a Cruzada do Rosário em Família, semente da campanha
contra o governo organizada posteriormente por senhoras da classe média. As
pregações do padre Peyton frutificaram, por exemplo, na ação das mulheres
mineiras que, de rosário nas mãos, impediram um comício de Leonel Brizola em
Belo Horizonte. Ou então na resposta dada, em São Paulo, ao Comício da Central
promovido pelo governo, no Rio. Uma multidão calculada em quinhentas mil
pessoas saiu em passeata pelas principais ruas da capital paulista, na
manifestação chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de grande
impacto entre as camadas médias da sociedade.
Enquanto o coronel Vernon Walters contatava diretamente os
círculos da conspiração militar, mantendo a Casa Branca inteiramente informada
dos preparativos para a derrubada de Goulart, o embaixador Lincoln Gordon
desenvolvia uma diplomacia paralela, estabelecendo “linha direta” entre as
agências financeiras e o governo dos Estados Unidos, de um lado, e os governos
estaduais de oposição, de outro. Gordon considerava a atuação de governadores
como Carlos Lacerda e Ademar de Barros “ilhas de sanidade administrativa” no
Brasil. Com este bypass, os recursos financeiros negados a Goulart chegavam aos
cofres de seus adversários.
O assassinato de John Kennedy e a ascensão do vice-presidente
Lyndon Johnson aceleraram a diplomacia norte-americana para um velho desvio
político, seguido pelos Estados Unidos na América Latina. Era, enfim, a opção
ao dilema “reformas ou revolução” antevisto por Kennedy. A política traçada
pelo novo secretário assistente de Estado para Negócios Interamericanos, Thomas
Mann, batizada de “doutrina Mann”, foi explicada num artigo do New York Times
do início de março de 1964: “Os Estados Unidos não mais procurariam punir as
juntas militares por derrubarem regimes democráticos.” Como um “castelo de
cartas”, os governos eleitos democraticamente foram caindo e dando lugar a
ditaduras militares direitistas.
Se
alguma dúvida restava quanto à simpatia dos EUA pelos adversários de Goulart,
ela foi desfeita quando os historiadores, em 1976, tiveram acesso a uma parte
da correspondência trocada entre a embaixada norte-americana e os gabinetes
mais importantes de Washington. Cifrado sob o código “Brother Sam”, um grande
número de telex explicava uma operação naval que, oficialmente, tinha duas
finalidades: uma demonstração “simbólica” de poderio bélico e, em segundo
lugar, a garantia da retirada dos cidadãos norte-americanos do país, caso suas
vidas fossem ameaçadas pelo conflito. Esta força-tarefa deslocada para a costa
brasileira, capitaneada pelo porta-aviões Forrestal, estava preparada, também,
“para executar quaisquer outras tarefas que lhe fossem designadas”. Contando
com o apoio de destróieres equipados com mísseis teleguiados, petroleiros,
navios de munições e de mantimentos, não se pode excluir a possibilidade de uma
intervenção armada dos fuzileiros navais se houvesse conflito militar entre as
forças fiéis ao governo e as tropas rebeladas. Esta operação naval “preventiva”
estimula a hipótese de desembarque dos marines no Brasil. A oportunidade não
surgiu porém, porque o governo de João Goulart não reagiu militarmente contra
seus adversários internos.
As forças armadas — a nova doutrina e a conjuntura
militar
Até a eclosão do movimento de março de 1964, o papel exercido
pelos militares brasileiros era o de “poder moderador”, uma alternativa
republicana à função similar desempenhada pelo imperador ao tempo da monarquia.
Admitidas como árbitros dos conflitos político-partidários, as forças armadas
intervinham no processo e retornavam em seguida às suas funções profissionais,
deixando para os grupos civis o restabelecimento da normalidade constitucional
que se havia rompido. Enquanto instituição profissional, os militares estavam
imbuídos de um espírito de guardiães da Constituição, a favor da qual supunham
agir — respaldados num consentimento social implícito — ante qualquer ameaça
que julgassem danosa à sociedade e à ordem legal.
Em um estudo encomendado pelo Departamento de Estado
norte-americano, na década de 1970, sobre os militares brasileiros, o
historiador Alfred Stepan, da Universidade de Yale, elaborou um esboço dos
princípios que pareciam nortear este comportamento de tutoria dos militares.
Analisando o fenômeno a partir do ponto de vista interno da instituição, ele
concluiu que duas atitudes reforçavam o conceito clássico do papel exercido
pelas forças armadas: a confiança na habilidade dos civis para governar e,
paralelamente, a pouca confiança na sua própria aptidão política.
O
que os teria levado, em 1964, a superar estes limites de ação política para
exercer o controle efetivo do aparelho de Estado? Fundamentalmente esta
resposta pode ser encontrada na “doutrina política nacional de segurança e
desenvolvimento” elaborada na Escola Superior de Guerra, em trabalho conjunto
com as elites políticas e econômicas. Criada em 1948 por um grupo de militares
que freqüentou os war colleges nos Estados Unidos, a ESG adaptou o modelo
norte-americano a um novo figurino. O regulamento da ESG, em 1963, explicava
que seu programa de estudos se propunha a “preparar civis e militares para
desempenhar funções executivas ou de assessoria, especialmente nos órgãos de
segurança nacional”.
A
elasticidade do conceito de “segurança nacional” franqueava o acesso a todos os
escalões da administração, e os novos quadros militares, confiantes na sua
capacidade de decisão e desempenho de funções executivas, introduziram uma
“moderna” concepção para “racionalizar a ação política do Estado”. O traço
peculiar desta doutrina “esguiana” era a fusão do desenvolvimento ao conceito
de segurança “ao ponto de ser impossível tratá-los, no nível político, como
fenômenos independentes”. A teoria, reduzida na prática aos dois termos
“segurança e desenvolvimento”, corporificou-se na Constituição federal e
ramificou-se nas leis e decretos-leis e outras decisões legais, em vigor a
partir de 31 de março de 1964.
Se
este conceito foi básico na alteração do papel das forças armadas, restava aos
militares superar, na prática, a tradição democrática que reservava aos civis o
exercício do poder. Esta grande mudança se deu num espaço de tempo
relativamente curto. Mais precisamente, entre a decisão legalista da maioria de
acatar a posse de Goulart em 1961 e a reação, também majoritária, visando à sua
deposição em 1964.
A
situação conjuntural favoreceu a formação de um sentimento oposicionista nos
meios militares. Embora os oficiais “tradicionalistas” radicais tivessem
continuado o proselitismo contra Goulart mesmo depois do fiasco do golpe de
agosto de 1961, quatro episódios tiveram conseqüência direta para atiçar o
ânimo insurrecional nos quartéis: o atrito entre o deputado Leonel Brizola e o
general Antônio Carlos Murici, a Revolta dos Sargentos, a Rebelião dos
Marinheiros e a reunião no Automóvel Clube.
Os
efeitos destes acontecimentos na área militar eram duplos. De um lado aguçavam
as contradições entre a oficialidade nacionalista e os subalternos (os dois
setores governistas no meio militar) em torno da questão disciplinar. De outro,
facilitavam o proselitismo dos conspiradores junto à indecisa massa de
oficiais, oscilantes entre a fidelidade constitucional ao presidente e o
respeito aos princípios do regulamento disciplinar colocado em xeque por estes
episódios. A renitente pregação dos conspiradores passou a ter conseqüências a
partir da formação destas “crises militares” que abalavam as estruturas mais
caras ao funcionamento da corporação. Este esprit de corps manifestou-se
claramente por ocasião do entrevero Brizola-Murici, em maio de 1963. Num discurso
de extrema violência, feito no Rio Grande do Norte, Brizola acusou o general
Murici (comandante da Infantaria Divisionária da 7ª Divisão de Infantaria de
Natal) de “golpista” e “gorila”. A reação militar caiu como uma luva nos planos
da conspiração. Oficiais de todo o país telegrafaram ao Ministério da Guerra
hipotecando solidariedade a Murici. As manifestações de desagravo indicavam os
nomes, comandos e postos de potenciais aliados contra o governo.
A
cadeia de acontecimentos que minou o apoio militar ao governo teria seqüência
em setembro daquele mesmo ano com a Revolta dos Sargentos, ocorrida em
Brasília. Cerca de quinhentos sargentos sublevaram-se e ocuparam os principais
centros administrativos da capital, em protesto contra a decisão do Supremo Tribunal
Federal de negar o direito à diplomação aos sargentos eleitos para a Câmara dos
Deputados em outubro de 1962. Em poucas horas o movimento estava dominado, mas
seus reflexos foram danosos para Goulart. O próprio comandante do II Exército,
general Peri Bevilacqua (oficial constitucionalista que apoiou decisivamente a
posse de Goulart e a realização do plebiscito) atribuiu ao Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), ao Pacto de Unidade e Ação (PUA) e ao Fórum Sindical de
Debates a responsabilidade pela insurreição dos sargentos. O general Bevilacqua
tachou a cúpula do movimento sindical de “aglomerados de malfeitores
sindicais”.
A Rebelião dos Marinheiros e o comparecimento de Goulart à
reunião no Automóvel Clube, no Rio, onde se comemorava o aniversário de criação
da Associação de Subtenentes e Sargentos da Polícia, deram os retoques finais
da crise.
Reunidos
no dia 25 de março de 1964 no Sindicato dos Metalúrgicos carioca, os
marinheiros exigiam a suspensão das penas disciplinares impostas aos diretores
da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, entidade que
funcionava à revelia do regulamento da Marinha. O ministro Sílvio Mota, que
ordenara a prisão dos dirigentes da associação, foi demitido e substituído pelo
almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues. A resposta do almirantado foi
francamente hostil ao governo. Reunido no Clube Naval, um grupo de almirantes
hasteou a bandeira nacional a meio pau. O Clube Militar se solidarizou. A
decisão do novo ministro — anistiando os marinheiros — provocou a coesão
militar contra João Goulart. Mais de duzentos oficiais da Marinha — entre os
quais 20 almirantes — lançaram um manifesto responsabilizando o governo pelo
que consideravam um golpe profundo na disciplina militar, e buscando a
solidariedade das outras armas: “O grave acontecimento que ora envolve a
Marinha, ferindo-a na sua estrutura, abalando a disciplina, não pode ser
situado apenas no setor naval. É um acontecimento de repercussão nas forças
armadas e a ele o Exército e a Aeronáutica não podem ficar indiferentes.”
Mas
o último estopim ia ser aceso pela cerimônia no Automóvel Clube, quando os
subtenentes e sargentos da PM convidaram Goulart para presidir a solenidade de
aniversário da associação que integravam. Desaconselhado por uns, aconselhado
por outros, Goulart decidiu, à última hora, comparecer à solenidade realizada
na noite do dia 30 de março de 1964. Os oficiais esperavam ouvir do presidente
palavras de repreensão aos subalternos. Jango, no entanto, solidarizou-se com
as reivindicações e o movimento dos policiais. O discurso presidencial rompeu o
fio da legalidade que continha a reação da maioria da oficialidade.
É bem verdade, no entanto, que o sentimento de legalidade dos
militares, mesmo antes destes acontecimentos, estava solapado por dois
importantes documentos que circulavam pelos quartéis.
Um deles, o Leex (Lealdade ao Exército), era apócrifo. O
outro, era a circular reservada, enviada a 20 de março a todos os generais e
oficiais do Estado-Maior do Exército, assinada pelo general Humberto de Alencar
Castelo Branco, chefe do órgão.
O
Leex procurava coordenar “os anseios e esforços” de vastas áreas das forças
armadas para evitar “ações e manifestações parciais e isoladas”. O documento
jogava habilmente sobre a indecisão dos oficiais o fantasma do “regime cubano”
e, com isto, tentava restringir o conceito de legalidade e obediência
constitucional ao presidente da República, chefe supremo das forças armadas,
“dentro dos limites da lei”. Na segunda parte, um questionário procurava
recolher informações sobre “o ambiente militar” e as possibilidades de apoio em
cada unidade, com perguntas incitadoras como esta: “Estão convencidos de que
certos setores do governo alimentam o propósito de subverter as instituições
sociais e políticas para implantar no Brasil um regime de feição comunista?
Caso positivo, estariam dispostos a reagir? Em que circunstâncias, sob que
condições?”
A circular do general Castelo Branco, resguardada pela
aparência profissional e imparcial do chefe do Estado-Maior do Exército,
analisava o cenário político e as questões em pauta, como a convocação de uma
constituinte e as reformas de base, à luz da conduta militar. A exemplo do
Leex, estabelecia como parâmetros do profissionalismo das forças armadas os
“limites da lei”: “Os quadros das forças armadas têm tido um comportamento,
além de legal, de elevada compreensão face a dificuldades e desvios próprios do
estágio atual da evolução do Brasil. E mantido, como é de seu dever, fiel à
vida profissional, a sua destinação, e com continuado respeito a seus chefes e
à autoridade do presidente da República... É preciso aí perseverar, sempre
dentro dos limites da lei.”
Escrita após o comício do dia 13 de março da Central do
Brasil, a Circular Reservada de Castelo Branco foi conjugada a uma intensa
campanha pública de que o governo preparava um golpe e que Jango pretendia
continuar na presidência. O documento mostra a cautela com que agiam os
militares “modernizadores” e a forma lenta, porém continuada, com que
exploravam, contra Jango, o espírito legalista, conservador, hierarquizado e
disciplinar dos militares, abalado, naquele momento, por uma inusitada “divisão
vertical” (os choques provocados pela organização de sargentos e marinheiros)
em oposição à “divisão horizontal” (conflitos no quadro de oficiais) que
tradicionalmente ocorria.
A supremacia militar dos rebeldes
O incontrastável domínio da situação política exercido pelos
adversários de Goulart desvinculou o destino do governo federal do resultado de
uma batalha militar. Mesmo assim, na hipótese de um confronto entre as tropas
rebeldes e o dispositivo militar legalista, a balança penderia contra o
governo. O presidente João Goulart, além de contar com o apoio de um número
reduzido de governadores, não controlava mais a cadeia do comando das forças
armadas. Um panorama sucinto desta correlação de forças mostra as razões do
sucesso da operação militar golpista — que permitiu o controle da situação em
pouco mais de 24 horas — e, por outro lado, explica a decisão do presidente de
impedir qualquer reação ao movimento desfechado contra ele.
Guanabara
— O governo dispunha de uma situação excepcionalmente favorável, que destoava
do resto do país. A maioria dos comandantes de tropa, no I Exército, era fiel a
Goulart. A Vila Militar, por exemplo, unidade de maior poder de fogo do país,
estava controlada por oficiais legalistas. O dispositivo militar do governo
contava com a poderosa Base Aérea de Santa Cruz e, ainda, com o Corpo de
Fuzileiros Navais. Sobre a Guanabara, portanto, os rebeldes concentraram as
atenções. A estratégia golpista era a de fazer o movimento eclodir em outro
estado e marchar contra a ex-capital do país, onde, supunha-se, haveria forte
resistência das tropas fiéis a Goulart. Os golpistas somavam, por outro lado, a
influência política do governador Carlos Lacerda e a importância militar de
dois “estados-maiores revolucionários”, que distinguiam com bastante nitidez os
grupos “modernizadores” (o estado-maior de Castelo Branco, integrado por oficiais
como Golberi do Couto e Silva, Ademar de Queirós e Ernesto Geisel) e
“tradicionalistas” (o estado-maior chefiado por Costa e Silva, onde colaboravam
os generais Siseno Sarmento e Muniz de Aragão, entre outros).
Minas Gerais — O ponto mais provável da rebelião contra
Goulart era este estado, onde havia uma sólida aliança entre os políticos,
liderados pelo governador Magalhães Pinto, e os militares, comandados pelo
general Mourão Filho, chefe da 4ª Região Militar. Para Minas, às vésperas do
movimento, deslocou-se o marechal Odílio Denis, um oficial também
“tradicionalista”, cujo papel no aliciamento de oficiais indecisos foi um
trunfo importante para os golpistas. O governador Magalhães Pinto tinha adotado
previamente duas medidas importantes, na expectativa de um conflito prolongado.
Formou um secretariado em “nível ministerial”, com projeção internacional, que
faria, se necessário, os contatos diplomáticos para o reconhecimento do “estado
de beligerância” no Brasil. Belo Horizonte seria a capital do país rebelado
contra o poder central. Paralelamente, o governador ampliou o efetivo da
Polícia Militar, que chegou a ter dez mil homens bem armados e eficientemente
adestrados por Dan Mitrione, um expert da CIA, posteriormente executado no
Uruguai pelo movimento guerrilheiro dos Tupamaros.
São
Paulo — A maioria dos oficiais do II Exército estava unida à conspiração e aos
líderes civis de oposição a Jango, liderados pelo governador Ademar de Barros.
Em São Paulo o general Cordeiro de Farias encarregou-se de fazer a ligação
entre civis e militares. Mas o resultado de todo o trabalho de conspiração
dependia da definição do Comandante do II Exército, general Amauri Kruel. Kruel
definiu-se somente no dia 31 (depois de um dramático telefonema ao presidente
Goulart, quando exigiu, sem sucesso, a demissão de alguns ministros e o
fechamento do CGT em troca de sua fidelidade ao governo), tornando
incontestável a supremacia militar dos rebeldes.
Rio
Grande do Sul — O III Exército estava dividido e os cálculos militares indicavam
possibilidades de luta intensa, devido principalmente à influência do
ex-governador do estado Leonel Brizola. O então governador Ildo Meneghetti era
inteiramente contrário a Goulart e uma de suas primeiras providências, ao
estourar o movimento, foi deixar Porto Alegre e transferir a sede do governo
para o interior do estado. A ação militar “golpista” teve como chefes
principais os generais Poppe de Figueiredo, da 3ª Divisão de Infantaria, em
Santa Maria; o general Adalberto Pereira dos Santos, que assumiu o comando
militar em Cruz Alta; o general Joaquim Camarinha, comandante da 2ª Divisão de
Cavalaria, em Uruguaiana, e o general Hugo Garrastazu, comandante da 3ª Divisão
de Cavalaria, em Bajé. A capital do estado, Porto Alegre, seria o último ponto
de parada do presidente Goulart antes de deixar o Brasil.
Norte/Nordeste
— Havia uma nítida divisão entre as forças civis, lideradas pelo governador
Miguel Arrais, e as forças militares do IV Exército, sob o comando do general
Justino Alves Bastos, oficial de inteira confiança dos conspiradores.
Esperava-se forte resistência civil em virtude da ação das ligas camponesas,
criadas e orientadas pelo deputado Francisco Julião, aliado do governo. Na
previsão dos adversários do governo, qualquer reação legalista seria esmagada
no máximo em três semanas. A partir daí, as tropas do IV Exército poderiam
descer em direção à Guanabara para apoiar a frente mineira do general Mourão
Filho.
Brasília/Centro-Oeste
— O Comando Militar do Planalto estava a cargo do general Nicolau Fico, um
oficial leal ao presidente. Sua base de comando, no entanto, foi minada pela
ação de um “comando paralelo” chefiado pelo general Rafael de Sousa Aguiar.
Fora da capital, a situação em toda a região Centro-Oeste estava sob controle
de oficiais rebeldes, aliados aos governos estaduais. As operações militares
foram desfechadas pelo coronel Carlos de Meira Matos, do 16º Batalhão de
Caçadores, em Cuiabá.
A ação militar
O
sucesso da reação militar desencadeada a 31 de março de 1964, por decisão
individual do general Olímpio Mourão Filho, consumou-se 48 horas depois,
coroado pelo êxito de um “golpe” de interpretação aplicado pelo presidente do
Congresso Nacional, senador Auro de Moura Andrade. No dia 1º de abril o
presidente Goulart deixou o Rio de Janeiro e retornou a Brasília. Na noite
deste mesmo dia, saiu da capital e voou para Porto Alegre, deixando para o
chefe do Gabinete Civil, Darci Ribeiro, a tarefa de comunicar oficialmente ao
Congresso que permanecia em território brasileiro. A comunicação oficial, lida
em sessão tumultuada, foi ignorada pelo senador Moura Andrade, que declarou a
vacância da presidência da República, investindo no cargo, no mesmo ato, o
presidente da Câmara, deputado Pascoal Ranieri Mazzilli. Esta medida facilitou
a decisão dos Estados Unidos de reconhecer a existência de um novo governo no
Brasil. Estas duas decisões caíram como uma “ducha fria” sobre o ímpeto de
resistência do governo. Uma avaliação da importância desse momento foi feita
posteriormente por Leonel Brizola, que, reunido com o presidente e alguns
generais, no dia 2 de abril, em Porto Alegre, planejava esboçar resistência: “A
certa altura (da reunião) chegou na sala um auxiliar do presidente, com uma
comunicação que havia captado pelo rádio, segundo a qual o governo dos Estados
Unidos havia reconhecido o governo que se estabelecera em Brasília... o
presidente não queria assumir a responsabilidade de desencadear uma guerra
civil... àquela altura o presidente João Goulart agiu corretamente.”
A
arrancada militar do general Mourão Filho, dois dias antes desta reunião, foi
definida como uma “manobra intempestiva” pelos comandantes militares da
conspiração, no Rio de Janeiro. Conforme registro do general Antônio Carlos
Murici, a ação organizada contra o governo federal deveria ser desfechada
alguns dias depois, mais precisamente entre 2 e 8 de abril. Curiosamente, uma
superstição do general Carlos Luís Guedes, comandante da 4ª Divisão de
Infantaria, em Belo Horizonte, tornou-se o fator “sobrenatural” do sucesso da
operação militar, considerando-se que a surpresa da decisão facilitou o
deslocamento de tropas para pontos estratégicos, sem enfrentar nenhuma
resistência. Segundo o general Guedes, a ação deveria ser desfechada antes do
dia 2 ou depois do dia 8, porque “tudo o que começa em quarto minguante não dá
certo”.
O
general Mourão Filho definiu o dia, mas por razões diferentes. Depois de uma
noite em claro, ele reuniu seu “estado-maior revolucionário” às três horas da
madrugada do dia 31 e determinou o início das operações para as seis horas da
manhã. O voluntarismo do general Mourão, que pode parecer, a princípio, decisão
tomada por um oficial da mais alta patente militar que nada mais tinha a perder
(deixaria o serviço ativo do Exército 30 dias depois do movimento), está enquadrado
no “conflito” entre oficiais “tradicionalistas” e “modernizadores”. Embora o
“tradicionalista” Mourão Filho conspirasse ostensivamente contra João Goulart
desde 1962, era visto com reservas pelos “modernizadores”, temerosos de que uma
ação precipitada pusesse a perder os planos de conspiração que desenvolvia e
dos quais o general Mourão Filho estava alheio. Em seu diário, o general Mourão
Filho registrou um elucidativo diálogo travado com o deputado cearense Armando
Falcão, pouco depois de ordenar a reação contra o governo: “O senhor está
articulado com alguém?”, perguntou Falcão. “Com a minha consciência. Quem
quiser que me siga”, respondeu o general.
Os
planos do general Mourão eram simples e foram desenvolvidos em três etapas: a)
operação silêncio (que implicava o controle dos serviços de comunicação, das
emissoras de rádio e televisão, para dissimular as etapas seguintes), b)
operação gaiola (prisão dos principais líderes políticos e sindicais que
pudessem provocar uma reação dentro do estado de Minas) e c) operação Popeye
(deslocamento de tropas em direção ao Rio de Janeiro e Brasília).
Na vanguarda das tropas mineiras o general Mourão Filho jogou
o Destacamento Tiradentes, com aproximadamente três mil homens comandados pelo
general Murici, marchando sobre o Rio. Rumo a Brasília partiu o coronel
Dióscoro Vale, com o 12º Regimento de Infantaria e o apoio de três batalhões da
Polícia Militar.
No aspecto defensivo as tropas de Mourão Filho tinham uma
missão: barrar a progressão de qualquer força militar legalista (vinda do Rio
ou São Paulo) contra Minas ou Espírito Santo. O porto de Vitória, capital
capixaba, funcionaria como um “pulmão” para o reabastecimento de suprimentos e
gasolina para as tropas rebeladas.
No
front, às cinco horas da tarde do dia 31, quando o Destacamento Tiradentes
assegurou o controle do tráfego pela ponte do rio Paraibuna, na divisa de Minas
com o estado do Rio, o general Mourão Filho divulgou uma proclamação contra o
governo e anunciou a rebelião militar.
Ainda
naquela noite foi criada a expectativa de um primeiro combate. Uma companhia do
1º Batalhão de Caçadores, de Petrópolis, fiel ao governo federal, deslocou-se
para Paraibuna. Antes do combate, no entanto, surgiram as conversões.
Prevaleceu o proselitismo do general Murici e a companhia aderiu à conspiração.
Mais tarde, com um simples telefonema, o marechal Denis conseguiu a adesão de
um combat team do 1º Regimento de Infantaria, sob o comando do coronel Raimundo
Ferreira. Em todo o país oficiais e soldados debandaram para a conspiração,
minando irremediavelmente a sustentação militar do governo.
Em
São Paulo, nas últimas horas do dia 31, o governador Ademar de Barros anunciou
a sua incorporação ao movimento contra Goulart. Em seguida o general Amauri
Kruel comandante do II Exército, divulgou nota oficial aderindo ao golpe. A 2ª
Divisão de Infantaria, comandada pelo general Aluísio Miranda Mendes,
deslocou-se pela BR-2 rumo à Guanabara. Mas surgiram problemas no II Exército.
O general Euriale de Jesus Zerbini, comandante em Capuava, ameaçava barrar a
marcha das tropas de Kruel. Mas não teve sucesso. As grandes unidades
submeteram-se ao comando de Kruel.
Em oposição estratégica no teatro de operações militares, a
Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende, ficou com os golpistas. Sob a
comando do general Emílio Garrastazu Médici, oficiais e cadetes cavaram
trincheiras ao longo da rodovia Rio-São Paulo e asseguraram o controle da
região.
Em
Brasília e em toda a região Centro-Oeste oficiais e praças confraternizam-se
com a conspiração e não encontraram resistência do governo. Na capital, bastou
a formalização da troca de comando entre o general Fico, legalista, e o general
Sousa Aguiar, rebelde. O deslocamento de tropas motorizadas de Cuiabá com
destino a Brasília se deu sem qualquer obstáculo. Na manhã do dia 2 de abril a
cidade já estava ocupada pelas guarnições do coronel Meira Matos.
No
Norte e Nordeste do país, os golpistas cumpriram uma única missão ofensiva: a
prisão dos governadores e políticos ligados ao governo federal. Assim aconteceu
com os governadores Miguel Arrais, de Pernambuco, e João de Seixas Dória, de
Sergipe. As previsões de luta devido à intensa mobilização camponesa não se confirmaram.
O general Justino Alves Bastos, comandante do IV Exército e senhor da situação,
fez apenas algumas poucas substituições de oficiais em comando de tropa e
determinou, de imediato, que as guarnições da 6º Região Militar (Bahia)
marchassem em direção ao sul do estado para reforçar e dar cobertura ao avanço
dos soldados da 4ª Região Militar (Minas) e do II Exército (São Paulo).
Na
arca do II Exército, Rio Grande do Sul, os conspiradores esperavam encontrar
grandes dificuldades.Temiam, sobretudo, a repetição do “fenômeno de 1961”,
quando o então governador Leonel Brizola comandou a “campanha da legalidade”
que assegurou a posse de João Goulart. O general Ladário Pereira Teles,
comandante do III Exército, determinou que suas tropas entrassem em “prontidão
rigorosa”. Tudo parecia indicar que um núcleo de oficiais legalistas comandaria
a reação contra os rebeldes. O governador Ildo Meneghetti, afinado com a
conspiração, refugiou-se em Passo Fundo. Aos poucos, porém, o esquema militar
favorável ao governo federal foi se esfacelando. O general Poppe de Figueiredo,
da 3ª Divisão de Infantaria, sediada em Santa Maria, aderiu aos golpistas,
seguido pelos comandantes das guarnições de Uruguaiana e Bajé. Surgiram algumas
escaramuças militares sem maior importância. No dia 3, guarnecido por forte
escolta militar, o governador Meneghetti reassumiu suas funções em Porto
Alegre. O presidente Goulart, o ex-governador Brizola e alguns oficiais fiéis
ao governo federal já tinham deixado a capital do estado. Jango refugiou-se no
interior e, em seguida, partiu para o exílio no Uruguai.
O
momento de maior tensão com probabilidade de luta aconteceu na “frente
mineira”. Do Rio, o general Cunha Melo marchou em direção a Paraibuna com um
grupamento tático superior em forças ao Destacamento Tiradentes, do general
Murici. Os grupos de vanguarda das tropas legalistas do general Cunha Melo,
entretanto, aderiram aos revoltosos. Disposto mesmo assim a enfrentar os
inimigos, o general Cunha Melo preparou seus soldados. Antes do choque armado,
porém, a situação seria mais uma vez definida na mesa de negociações. O general
Armando de Morais Âncora que assumira o Ministério da Guerra em substituição ao
general Jair Dantas Ribeiro (hospitalizado dias antes em virtude de uma crise
renal), encontrou-se em Resende com o general Amauri Kruel. Na reunião, o
general Âncora definiu o fim da resistência. As forças do governo já não tinham
condições de evitar o golpe. A deposição do presidente João Goulart estava
consumada.
Maurício Diascolaboração especial
FONTES: AGEE, P.
Dentro; AGUIAR. H. Revolução; ARQ. JOÃO GOULART; BANDEIRA, L. Governo;
BENEVIDES, M. UDN; Brasil; CARDOSO, F. Dependência; CARDOSO, F. Modelo;
Coojornal (2/81); CORREIA, M. 1964; DENIS, O. Ciclo; DINES, A. Idos; DREIFUSS,
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Desenvolvimento 1961; GOULART, J. Desenvolvimento 1962; IstoÉ (19/4/78); MOURÃO
FILHO, O. Memórias; MURICI, A. Motivos; OLIVEIRA, F. Forças; PARKER, P. 1964;
PINTO, O. Guerra; Senhor (26/5/82); SILVA, H. 1964; SKIDMORE, T. Brasil; Veja
(9/2/72 e 9/3/77); VÍTOR, M. Cinco.