JULIÃO,
Francisco
*dep. fed. PE 1963-1964.
Francisco Julião Arruda de Paula nasceu no engenho de Boa Esperança, de propriedade de seu
avô, no município de Bom Jardim (PE), em 16 de fevereiro de 1915. Seus pais,
Adauto Barbosa de Paula e Maria Lídia Arruda de Paula, eram integrantes de
famílias tradicionais de Pernambuco.
Julião passou a infância nas propriedades da família ao lado
de seus sete irmãos. Aos 13 anos de idade foi enviado para estudar em Recife,
onde concluiu o curso secundário no Instituto Carneiro Leão em 1933. Diante das
dificuldades financeiras enfrentadas pelos pais, cujos engenhos encontravam-se
decadentes, passou a lecionar em uma escola primária da cidade de Olinda (PE).
Matriculou-se em seguida na Faculdade de Direito de Recife, bacharelando-se em
dezembro de 1939. Embora não tenha participado ativamente da política
acadêmica, Julião foi fortemente influenciado pelo debate desenvolvido na
universidade, importante centro de oposição ao Estado Novo e à interventoria de
Agamenon Magalhães no estado, implantados em fins de 1937. Segundo seu
depoimento ao semanário O Pasquim, quando deixou a faculdade já possuía
idéias marxistas e considerava fundamental a participação dos camponeses na
transformação da sociedade brasileira. Pouco depois da sua formatura, passou um
dia detido no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).
Em 1940, montou um escritório de advocacia em Recife e
iniciou suas atividades como defensor de camponeses, constatando a enorme
distância que separava “a lei codificada e a que realmente se aplicava no
campo”. No ano seguinte, já defendia causas camponesas em vários municípios de
Pernambuco, especialmente Vitória de Santo Antão, Bom Jardim, Limoeiro e
Jaboatão, situados na região norte da Zona da Mata, onde havia grande número de
arrendatários e pequenos proprietários rurais. Julião afirmava que a “grande
revolução em curso se limitava a tirar o camponês da porta do delegado para a
porta do juiz”, e sua atuação mais freqüente dizia respeito ao combate às
prestações de trabalho (o chamado cambão) e aos aumentos arbitrários do
foro pago pelos trabalhadores aos donos das terras, além da defesa dos
moradores ameaçados de expulsão pelos grandes proprietários. Na região sul da
Zona da Mata, onde se concentravam as maiores usinas de açúcar do estado e
predominavam os trabalhadores assalariados, a atuação de Julião foi bem mais
restrita, limitando-se a poucos processos. Um dos mais significativos ocorreu
no município de Amaraji, onde defendeu grande número de trabalhadores ameaçados
de expulsão das terras onde moravam há mais de 40 anos, recém-compradas pela
usina Santa Teresinha.
Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do país, Julião
ingressou no Partido Republicano (PR), fundado em agosto de 1945, e concorreu,
sem êxito, a uma cadeira na Assembléia Nacional Constituinte no pleito de 2 de
dezembro. Nessa campanha, apoiou o candidato da União Democrática Nacional
(UDN), brigadeiro Eduardo Gomes, na disputa pela presidência da República,
vencida pelo general Eurico Gaspar Dutra com o apoio da coligação dos partidos
Social Democrático (PSD) e Trabalhista Brasileiro (PTB).
Nessa época, além das atividades partidárias e do trabalho
com os camponeses, Julião exercia a advocacia em seu escritório de Recife,
especializado em questões de família, tornando-se conhecido como defensor dos
direitos das mulheres. Apesar do crescimento de seu prestígio como advogado no
meio rural, a eficácia de sua atuação era pequena, pois a legislação vigente
não favorecia a defesa do camponês, que “acabava sempre perdendo as questões”.
Diante disso, começou a amadurecer a idéia de organizar e unir os lavradores,
buscando modificar sua forma de atuação, até aí restrita ao terreno da
assistência jurídica. Seu primeiro passo foi escrever uma série de documentos,
iniciada em 1946 com a Carta aos foreiros de Pernambuco, que teve grande
circulação. Ao mesmo tempo, começou a incentivar a presença de camponeses nas
audiências e julgamentos dos processos como meio de desenvolver iniciativas
coletivas e formas embrionárias de organização. Graças a essa orientação, nos
anos seguintes muitas demandas judiciais mobilizaram grupos de mais de cem
camponeses que se dirigiam às cidades para prestar solidariedade ao companheiro
diretamente ligado à questão.
Em 1947, o PR lançou Eurico de Sousa Leão para concorrer ao
governo de Pernambuco, diminuindo assim as possibilidades de êxito do candidato
udenista Manuel Neto Campelo, principal oponente do pessedista Alexandre
Barbosa Lima Sobrinho, vencedor do pleito. Considerando que seu partido havia
cometido grave erro ao contribuir indiretamente para a vitória de um
representante do PSD, Julião desligou-se do PR, aderindo pouco depois ao
Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Em 1951, Julião publicou seu primeiro livro, Cachaça,
que recebeu elogioso prefácio de Gilberto Freire. O título se referia à prática
de certos latifundiários de pagar seus trabalhadores com aquela bebida. Logo
depois, terminou de escrever sua primeira novela, Irmão Juazeiro,
publicada em 1961, que trata do conflito entre um camponês e um latifundiário
no interior de Pernambuco.
A formação das ligas camponesas
A
presença de Julião conferiu dinamismo à seção pernambucana do PSB. Em 1954 foi
o primeiro parlamentar eleito por essa legenda no estado, ao conquistar uma
cadeira na Assembléia Legislativa. No ano seguinte foi convidado a assumir a
defesa jurídica dos membros da Sociedade Agrícola e Pecuária de Pernambuco
(SAPP), primeira associação camponesa do estado, organizada pelos moradores do
engenho Galiléia, situado no município de Vitória de Santo Antão. Galiléia era
um engenho de fogo morto, isto é, não produzia mais açúcar, e seu proprietário,
Oscar de Arruda Beltrão, havia dividido as terras em pequenos sítios,
arrendados às 140 famílias que ali trabalhavam. Os arrendatários organizaram
então a SAPP na forma de cooperativa, com a finalidade de desenvolver a
produção comercial de verduras e iniciar um programa assistencial. Julião
passou a visitar o engenho regularmente e tomou a sociedade como base para seu
trabalho de organização dos camponeses em outras áreas. Nos anos seguintes, o
tipo de associação adotada no engenho da Galiléia se multiplicou no estado de
Pernambuco.
O proprietário do engenho e presidente honorário da SAPP
discordou dos rumos do movimento, renunciou ao seu cargo e procurou, sem êxito,
terminar com a cooperativa e expulsar os camponeses. Em 1955 Julião deu início
a um processo na justiça com a finalidade de desapropriar as terras do engenho
e garantir sua posse pelos moradores, deflagrando uma luta jurídica e política
que só foi resolvida quatro anos depois, durante o governo de Cid Sampaio.
As associações camponesas formadas depois da SAPP ficaram
conhecidas como Ligas Camponesas, expressão utilizada inicialmente pelo
Diário de Pernambuco para sugerir a existência de uma ligação desse
movimento com as organizações rurais de mesmo nome, criadas pelo Partido
Comunista Brasileiro — então Partido Comunista do Brasil (PCB) — em 1945 e
extintas em 1947, quando o PCB foi colocado na ilegalidade. Segundo Julião, a
fase inicial de organização das ligas foi marcada por uma intensa repressão do
governo estadual, chefiado pelo general Osvaldo Cordeiro de Farias, e pela
violência utilizada por capatazes das grandes propriedades. Apesar disso, o
movimento cresceu rapidamente, mobilizando lavradores de toda região norte da
Zona da Mata.
Em agosto de 1955, representantes das ligas participaram do
Congresso pela Salvação do Nordeste, organizado pela Prefeitura de Recife
durante a gestão de Pelópidas Silveira. Os 3.600 delegados presentes,
representando industriais, comerciantes, sindicatos e grupos profissionais,
aprovaram uma declaração de apoio à reforma agrária e de combate às estruturas
fundiárias vigentes. Durante o encontro, ocorreu também o I Congresso de
Camponeses de Pernambuco, presidido por José dos Prazeres, líder da comunidade
da Galiléia. Julião foi escolhido presidente de honra do conclave e organizou
em seguida uma concentração de mais de três mil camponeses na Assembléia
Legislativa, onde o sociólogo Josué de Castro, autor de Geografia da fome e
Geopolítica da fome, fez uma palestra sobre a reforma agrária. Julião já
defendia a necessidade de uma mudança radical no sistema de propriedade da
terra e de produção agrícola no Nordeste, questões que sensibilizavam de
maneira crescente setores da opinião pública e autoridades de diversos níveis.
Em
fins de 1956, Julião foi preso em Galiléia por um oficial da polícia e levado a
Recife, onde foi solto por interferência de um coronel do Exército que servia
como auxiliar do governador. Em seguida, protestou de forma veemente contra sua
prisão na Assembléia Legislativa, cujos membros nomearam uma comissão para
investigar o caso. Na semana seguinte, Julião retornou ao engenho acompanhado
de outros dois deputados, ocasião em que todos foram cercados e ameaçados por
jagunços.
Julião julgava importante a presença maciça de camponeses nas
cidades em certas ocasiões, para que seus problemas obtivessem maior
repercussão. Depois das primeiras experiências nesse sentido ainda no interior,
organizou no dia 1º de maio de 1957 a ida de seiscentos lavradores — entre eles
as principais lideranças das ligas — a Recife. Em 13 de maio do ano seguinte
reuniu na mesma cidade mais de três mil camponeses para comemorarem a abolição
da escravatura. Nesse período, publicou a Cartilha do camponês, o ABC
do camponês, a Carta de alforria do camponês e outros documentos,
escritos em linguagem simples, narrando as experiências desenvolvidas pelas
ligas nas diversas regiões. Ainda em 1957, foi um dos 40 deputados nordestinos
que, acompanhados por industriais e comerciantes, viajaram à Europa Ocidental,
Tchecoslováquia e União Soviética.
No ano seguinte, Julião foi reeleito com expressiva votação
para mais um mandato na Assembléia Legislativa de Pernambuco, na legenda do
PSB. Ao mesmo tempo, ocorreu uma importante mudança na situação política do
estado, com a vitória de Cid Sampaio sobre Jarbas Maranhão, obtida por larga
margem, na disputa pelo governo pernambucano. Foi a primeira derrota sofrida
por um candidato pessedista para esse cargo desde o fim do Estado Novo. Todas
as forças reformistas e de esquerda apoiaram Cid Sampaio, lançado pelas
oposições reunidas, coligação da UDN, PSB, PTB e os partidos Trabalhista
Nacional (PTN) e Social Progressista (PSP). Julião participou ativamente da
campanha vitoriosa.
Em 1959, pouco depois da posse de Cid Sampaio, Julião venceu
o processo judicial que garantiu a posse das terras do engenho da Galiléia para
seus moradores, baseando-se em uma lei recém-promulgada que determinava a
desapropriação da propriedade com pagamento de indenização ao antigo dono.
Segundo ele, esse resultado teve um grande valor político para o movimento
camponês, pois foi sua primeira conquista efetiva de largo alcance. Cid
Sampaio criou em seguida o departamento de terras e colonização, ligado à
Secretaria de Agricultura e encarregado de comprar terras para estabelecer
cooperativas de camponeses. Ao mesmo tempo, tentou transferir para outras áreas
os lavradores mais ativos da liga da Galiléia. Considerando que o movimento
estava ameaçado de perder sua autonomia frente ao governo do estado, Julião
rompeu sua aliança com o governador e conseguiu impedir a efetivação dessa
medida.
As ligas camponesas começaram a obter repercussão nacional e
a despertar o interesse da imprensa. O jornal O Estado de S. Paulo encomendou
a Julião uma série de artigos sobre o tema, enquanto os jornalistas Heráclio
Sales e Antônio Calado fizeram com ele entrevistas publicadas, respectivamente,
pelo Jornal do Brasil e o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro,
então Distrito Federal.
O movimento ultrapassou efetivamente as fronteiras de
Pernambuco a partir de 1959 com a fundação da primeira Liga Camponesa
paraibana, localizada em Sapé, área de transição entre a zona de produção de
açúcar e o Agreste. Organizada pelo pastor protestante João Pedro Teixeira,
antigo colaborador de Julião, ela experimentou enorme crescimento entre os
arrendatários e pequenos proprietários rurais da região, chegando a contar com
dez mil associados dois anos depois de sua fundação. Em 1960, foram organizados
comitês regionais das ligas camponesas em dez estados do país.
Julião apoiou a candidatura do marechal Henrique Teixeira
Lott, lançada pela coligação PSD-PTB, para a presidência da República no pleito
realizado em outubro de 1960, vencido por Jânio Quadros, apoiado pela UDN.
Durante a campanha, organizou uma concentração de camponeses na capital
pernambucana em apoio ao marechal, mas aceitou o convite para viajar a Cuba junto
com Jânio. Essa foi a primeira de uma série de viagens que fez a esse país,
tornando-se um grande admirador da revolução cubana.
Em outubro e novembro de 1960, o jornal The New York Times
publicou uma série de artigos sobre as Ligas, apresentando Julião como
líder do campesinato brasileiro, apontando a gravidade da situação econômica e
social do Nordeste e denunciando o trabalho dos marxistas na região. Desde
então, Pernambuco foi visitado por jornalistas, escritores e políticos dos
Estados Unidos, cuja embaixada no Brasil, segundo Joseph Page, considerava as
“forças radicais” do Nordeste como séria ameaça. Segundo Julião, o impacto
causado pela revolução cubana foi utilizado pelos norte-americanos para criar
uma “mitologia em torno das ligas”, que deu ao movimento “uma dimensão que ele
não tinha”.
As relações de Julião com o PCB
No
início de 1961, Julião encontrou no Rio de Janeiro o líder comunista Luís
Carlos Prestes para discutir a possibilidade de união das forças do PCB com as
ligas camponesas e a formação de um movimento unificado de âmbito nacional no
meio rural. Prestes propôs a fusão das ligas com a União dos Lavra-dores e
Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), fundada pelo PCB em 1954 e cujas
bases principais de atuação estavam em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Segundo Joseph Page, Julião foi convidado para assumir a liderança do
movimento unificado, mas não aceitou esse projeto, convencido de que o PCB
exerceria o controle de fato sobre a nova entidade.
Ainda em 1961 Julião fez nova viagem a Cuba junto com mais de
cem líderes camponeses para participar das comemorações do 1º de maio. A
conjuntura nacional nesse período foi marcada pela queda na taxa de crescimento
econômico obtida na segunda metade da década de 1950 e o acirramento da crise
política e social. A renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto desse ano,
agravou as tensões, pois os ministros militares vetaram a posse do seu
substituto legal, o vice-presidente João Goulart, que estava comprometido com
as propostas reformistas defendidas por partidos de esquerda e o movimento
sindical. Para superar o impasse e garantir a preservação da legalidade, o
Congresso adotou o regime parlamentarista, sob o qual Goulart assumiu a
presidência em setembro. Com sua posse, o programa de reformas de base ganhou
grande impulso.
Em novembro realizou-se em Belo Horizonte o I Congresso de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, que contou com a
presença de 1.600 delegados de todos os estados, representando as diferentes
correntes defensoras de reformas na estrutura agrária, como o PTB, o PCB, as
ligas camponesas, setores da Igreja e o movimento estudantil. O presidente João
Goulart foi um dos promotores do encontro, cujos debates foram polarizados em
torno de duas proposições fundamentais.
Através dos seus delegados da ULTAB, o PCB defendia um
programa baseado na melhoria das condições de vida dos trabalhadores agrícolas,
enquanto as ligas, representadas por cerca de seiscentos delegados e tendo
Julião como seu principal porta-voz, advogavam uma reforma agrária radical.
Essa bandeira teve grande repercussão entre os participantes do congresso, mas
foi duramente criticada pelos membros do PCB, que assim se afastaram ainda mais
de Julião e de outros líderes das ligas. A declaração final do encontro
englobava os dois níveis de reivindicações, defendendo a “radical transformação
da estrutura agrária do país” e a “aplicação da parte da legislação trabalhista
já existente que se estende aos trabalhadores agrícolas”, além da “elaboração
de um estatuto que vise uma legislação adequada aos trabalhadores rurais”.
No início de 1962, Julião aceitou uma oferta de Fidel Castro
e enviou seus quatro filhos para estudarem em Cuba, livrando-os assim das
ameaças de seqüestro que haviam recebido em Pernambuco.
O declínio das ligas
A
força das ligas começou a decrescer em 1962, ao mesmo tempo que se acelerava o
processo de enquadramento institucional do movimento camponês, patrocinado pelo
governo federal. A extensão ao campo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
e do direito de organização sindical, embora estabelecidos desde 1944, só então
começou a se efetivar.
Julião
acompanhou com sérias reservas o movimento de sindicalização rural patrocinado
pelo governo no Nordeste. Para ele, o objetivo dessa campanha era estabelecer o
controle do Ministério do Trabalho sobre a massa camponesa. Temia formação do
peleguismo no interior desses sindicatos e defendia uma sindicalização
autêntica autônoma e independente. Distanciou-se, então, do presidente João
Goulart, considerando moderado o projeto de reforma agrária do governo. Baseado
em medidas fiscais e na democratização das relações entre camponeses e
proprietários rurais, esse projeto, segundo Julião, iria “a médio prazo atender
aos objetivos da própria oligarquia nacional e aos interesses do imperialismo”.
Apesar dessas restrições, Julião chegou a tomar parte na
fundação dos primeiros sindicatos rurais de Pernambuco — como os de Jaboatão,
Palmares, Cabo e Gameleira —, mas o conjunto das ligas camponesas,
crescentemente radicalizado, se manteve à margem dessas iniciativas oficiais.
Adotando posição oposta, o PCB e a Igreja obtiveram grande penetração no
movimento sindical rural em formação no estado. Os comunistas chegaram a
controlar sindicatos muito poderosos na região sul da Zona da Mata, dominada
pelos assalariados das grandes usinas de açúcar, enquanto a Igreja expandiu sua
influência na região norte dessa área através da atuação dos padres Crespo e
Melo à frente do Serviço de Organização Rural de Pernambuco (SORP).
Na
Paraíba, a influência de Julião diminuiu dentro das próprias ligas depois do
assassinato, em março de 1962, de seu companheiro Pedro Teixeira, a mando de
proprietários de terras. Julião protestou vigorosamente contra o atentado e
enviou carta ao ministro da Guerra, marechal João de Segadas Viana, denunciando
que os latifundiários paraibanos estavam estocando armas. Pouco tempo depois,
um agrônomo ligado ao PCB, Francisco de Assis Lemos de Sousa, se fortaleceu na
liderança do movimento e foi eleito, em meados do ano, presidente da Federação
das Ligas Camponesas da Paraíba. Para tal, recebeu o apoio de João Goulart, interessado
em combater a influência de Julião. Desde então o PCB estendeu sua hegemonia ao
movimento camponês paraibano.
Em
7 de outubro de 1962, Julião foi eleito deputado federal por Pernambuco com 16
mil votos, apoiado pela coligação do PSB com o Partido Social Trabalhista
(PST). Durante a campanha, seu nome foi duramente combatido pelo presidente
Goulart, o PTB e a Igreja, que chegou a ameaçar seus eleitores de excomunhão.
Ao mesmo tempo, seus correligionários imprimiram à campanha uma forte
radicalização política, muitas vezes combatida pelo próprio candidato. O nome
lançado pelo PTB com o objetivo de concorrer no mesmo eleitorado de Julião teve
apenas 2.500 votos, apesar da grande ajuda que recebeu do governo federal.
Nas eleições para o governo do estado, realizadas no mesmo
dia, Julião apoiou a candidatura de Miguel Arrais, então prefeito de Recife e
candidato do PST. Arrais teve a apoiá-lo todas as forças nacionalistas e de
esquerda em Pernambuco, e derrotou nas urnas João Cleofas, lançado pelo PR e a UDN.
A vitória de Arrais ocorreu no momento em que aumentava em todo o país a
polarização entre as forças que defendiam reformas de cunho social e as
tendências conservadoras que reagiam a elas e enfatizavam a necessidade de
contenção das reivindicações trabalhistas.
No início de 1963 Julião recomendou a seus seguidores que se
abstivessem de votar no plebiscito convocado por João Goulart para definir a
permanência do regime parlamentarista ou a volta do presidencialismo.
Justificou sua posição alegando que o resultado da consulta não teria nenhum
efeito sobre a situação do campesinato. Essa atitude contribuiu para seu
isolamento dentro da esquerda, que apoiou em bloco o retorno ao
presidencialismo, vitorioso por larga margem.
As ligas contavam, então, com cerca de 80 mil associados em
todo o Nordeste, enquanto, só em Pernambuco o número de trabalhadores agrícolas
sindicalizados chegava a 250 mil. Para Julião, as duas formas de organização
poderiam coexistir, pois “o sindicato estava bem melhor aparelhado para garantir
a aplicação da legislação trabalhista aos assalariados rurais” e as ligas,
“associadas à problemática dos arrendatários e pequenos proprietários rurais,
defendiam a posse da terra aos camponeses”. Entretanto, segundo diria muitos
anos depois, o processo de radicalização vivido pelas ligas, que começaram a
patrocinar ocupações de terras e chegaram a organizar dispositivos
guerrilheiros em Goiás, Bahia e Maranhão, contribuiu para o seu isolamento. Em
1979, Julião declarou ter sido sempre contrário às propostas que conduziam o
movimento camponês à revolução armada e se opôs sistematicamente às ocupações
de terras realizadas em Pernambuco em 1962 e 1963. Ressaltou que as ligas eram
um movimento e não um partido, comportando no seu interior diversas correntes,
como agrupamentos trotskistas e membros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB),
fundado em 1962 a partir de uma dissidência do PCB.
Em novembro de 1963 foi deflagrada em Pernambuco a primeira
greve dos trabalhadores rurais, que durou quatro dias e chegou a paralisar a
vida econômica do estado, reivindicando a imediata aplicação das leis
trabalhistas no campo. Apoiados por Arrais, sindicatos, ligas e partidos de
esquerda, os grevistas obtiveram todas as suas reivindicações, inclusive um
aumento salarial de 80%.
Prisão, exílio e retorno ao país
O
agravamento das tensões políticas e sociais em todo o país levou setores da
oposição e autoridades militares a assumirem uma posição de ruptura com o
governo federal, que resultou no movimento político-militar vitorioso iniciado
em 31 de março de 1964. Nesse dia, Julião estava em Brasília participando das
sessões ordinárias da Câmara dos Deputados. Aí permaneceu até 7 de abril junto
com um grupo de parlamentares, protestando contra a deposição de Goulart.
Retirado da Câmara — que estava cercada por tropas —, e escondido no carro do
deputado udenista Adauto Lúcio Cardoso, Julião partiu nessa noite para Belo
Horizonte disfarçado de migrante nordestino.
Em 9 de abril foi editado o Ato Institucional nº 1 que, entre
outras medidas, abriu o processo de punições extralegais de adversários do novo
regime, e no dia seguinte foi divulgada a primeira lista de cassações de
direitos políticos. Julião foi um dos atingidos. Apesar de procurado pela polícia,
conseguiu chegar à capital mineira, onde permaneceu durante três dias e
escreveu um manifesto contra o movimento militar, publicado pelo escritor
uruguaio Eduardo Galeano na revista Marcha, de Montevidéu. Retornou em
seguida a Brasília, onde passou a viver numa pequena casa situada a alguns
quilômetros da cidade em companhia de dois trabalhadores. Passou a aguardar ali
a chegada de um mensageiro que lhe traria dinheiro para viajar rumo à região do
Araguaia (PA). Entretanto, no dia 3 de junho o local foi invadido por uma
patrulha da polícia. Julião tentou manter seu disfarce de candango, mas
um dos policiais o reconheceu, afirmando: “A mão é de camponês, mas o pé é de
deputado.”
Julião foi conduzido ao Batalhão de Guardas em Brasília, onde
permaneceu 20 dias. Entregue à tutela do IV Exército, com sede em Recife, foi
colocado durante 40 dias em cela solitária do 2º Batalhão de Guardas, sendo
transferido em setembro seguinte para um alojamento na sede do Corpo de
Bombeiros da capital pernambucana, ficando em companhia de Miguel Arrais. Nesse
local, Julião escreveu Até quarta, Isabela, que, sob a forma de uma
carta à sua filha recém-nascida, foi publicado antes de sua libertação.
Em 21 de abril de 1965, Arrais foi libertado graças a um habeas-corpus
concedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e em 27 de setembro desse
ano, através do mesmo mecanismo, Julião também deixou a prisão. Seu advogado
foi Heráclito Fontoura Sobral Pinto. O novo presidente da República, marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco, interessou-se pessoalmente pelo caso e
viajou ao Nordeste para negociar a libertação com oficiais do IV Exército.
Segundo Julião, como resultado desses entendimentos, a ordem do STF foi
cumprida, mas ele recebeu um prazo de 24 horas para sair de Pernambuco, sob
pena de ser novamente detido.
Julião
embarcou então para o Rio de Janeiro, onde procurou as embaixadas da Iugoslávia
e do Chile, que lhe negaram asilo político. Só conseguiu deixar o país em 28 de
dezembro de 1965, com destino ao México, depois de negociações empreendidas
pelo jornalista Antônio Calado. Logo após sua viagem, Julião recebeu um convite
de Fidel Castro para viver em Cuba, mas optou por permanecer no México,
instalando-se com a família na cidade de Cuernavaca. No exílio, proferiu conferências,
ministrou cursos, redigiu artigos regulares para os jornais Siempre e
El Dia, e escreveu o livro Cambão: a cara oculta do Brasil.
De 15 a 17 de junho de 1979, Julião participou do Encontro
dos Trabalhistas do Brasil com os Trabalhistas no Exílio, realizado em Lisboa
sob a liderança do ex-governador gaúcho Leonel Brizola, onde foi discutida a
formulação de um programa partidário capaz de orientar a convocação de uma
assembléia nacional constituinte, e declarou que “a penetração violenta do
capital monopolista no Brasil contribuiu para que o campo sofresse um abalo
sísmico. O camponês que eu deixei no Brasil foi triturado, foi transformado num
assalariado. Hoje, o fenômeno do bóia-fria merece a primazia de todo lutador
social”.
No dia 28 de agosto de 1979, o presidente João Batista
Figueiredo sancionou a anistia, que permitiu a volta ao Brasil de quase todos
os exilados. Em 26 de outubro, Julião desembarcou no Rio de Janeiro e em 7 de
novembro chegou a Pernambuco, reafirmando sua adesão ao PTB. Entretanto, dois
grupos passaram a disputar a posse dessa sigla, um liderado por Brizola e outro
pela ex-deputada Ivete Vargas, que obteve o registro provisório para a sua
organização no Tribunal Superior Eleitoral em 12 de maio de 1980. A agremiação liderada por Brizola e apoiada por Julião passou então a se chamar Partido
Democrático Trabalhista (PDT), obtendo pouco depois o registro provisório no
mesmo tribunal.
Em setembro de 1985, sendo integrante da executiva nacional
do PDT, esteve em São Paulo para participar da campanha eleitoral do seu
correligionário, o empresário Ademar de Barros Filho, candidato à prefeitura
paulistana. Questionado sobre a presença de um empresário num partido
socialista, defendeu o candidato alegando que ele representava o capital
nacional. Nessa ocasião, sustentou a união das forças políticas de esquerda num
único partido que funcionasse como um amplo leque de alianças que comportasse
diversas correntes políticas.
No pleito de novembro de 1986, concorreu a uma vaga de
deputado constituinte por Pernambuco, na legenda do PDT. O início da sua
campanha eleitoral contou com o apoio do Partido dos Trabalhadores (PT) e do
PSB que, apesar de estar coligado formalmente com o Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), era contrário à candidatura de Antônio Farias,
egresso do Partido Democrático Social (PDS). Esse apoio foi erodindo a medida
que Julião participava de comícios do Partido da Frente Liberal (PFL), ao lado
de usineiros, seus adversários na década de 1960. Os problemas da sua
candidatura aumentaram com o acordo — chamado Pacto da Galiléia — feito com o
usineiro José Múcio que, caso fosse eleito governador de Pernambuco, se
encarregaria de distribuir 10% de suas terras na Zona da Mata aos camponeses.
Julião também apoiou a candidatura do pefelista Roberto Magalhães ao Senado.
Com esta aproximação ao PFL, Anatólio e Anatilde, filhos de Julião e dirigentes
regionais do PDT, desligaram-se desse partido e ingressaram no PMDB, em
protesto contra a atitude do pai.
Eleitoralmente derrotado, afirmou ter dado “um golpe de
misericórdia no próprio mito”. Em dezembro de 1986, viajou para o México para
escrever o livro Os últimos soldados de Zapata, encomendado por uma
editora mexicana. Não mais retornou ao Brasil.
Em 1995, foi homenageado pela Câmara de Vereadores do Rio de
Janeiro por ocasião da comemoração dos seus 80 anos.
Morreu no México no dia 10 de julho de 1999.
Julião teve quatro filhos com Alexina Arruda de Paula, de
quem se separou em 1963. Contraiu segundas núpcias com Regina de Castro,
com que teve uma filha, e de seu terceiro casamento teve mais um filho.
Publicou as seguintes obras: Cachaça (1951), Irmão
Juazeiro (1961), O que são as ligas camponesas? (1962), Até
quarta, Isabela (1965) e Cambão: a cara oculta do Brasil
(1968). Sobre o biografado, Anthony Leeds escreveu Brazil and the
myth of Francisco Julião (1964).
Vilma
Keller
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