BOSSA
NOVA DA UDN
A facção da União Democrática Nacional (UDN) caracterizada
pela divergência com a linha tradicional do partido em face das propostas de
reformas políticas no início da década de 1960 tornou-se conhecida pela
denominação de “Bossa Nova”, por analogia ao conhecido movimento da música
popular brasileira.
As primeiras articulações datam do último ano do governo
Kubitschek, quando o grupo se auto-intitulava “movimento renovador” e se
identificava pela estreita vinculação com a candidatura do governador paulista
Jânio Quadros às eleições presidenciais de outubro de 1960. Os objetivos do
“movimento” foram expostos pela primeira vez ao diretório nacional da UDN,
então presidido por José de Magalhães Pinto, em fevereiro de 1960, por Clóvis
Ferro Costa (PA) e José Sarney (MA), que advogaram “a adoção de nova tática
política para corresponder aos anseios populares”. A confiança generalizada na
vitória do partido nas eleições de outubro contribuiu para diminuir a veemência
da oposição udenista ao governo que findava, apesar do tradicional radicalismo
da “Banda de Música”. Nesse primeiro momento o apoio à candidatura de Jânio
Quadros tornou-se o denominador comum entre os grupos que viriam a formar a
“Bossa Nova” e a “Banda de Música”: ambos renunciaram à tradição das “derrotas
gloriosas” do partido e contribuíram para o esvaziamento da candidatura
udenista de Juraci Magalhães.
Na
convenção nacional da UDN realizada em Recife em abril de 1961, o grupo surgiu
ostensivamente, já com a denominação “Bossa Nova”, e se apresentou como
defensor de uma linha de “centro-esquerda”, inspirada no “programa de
desenvolvimento com justiça social da doutrina social da Igreja”. Em termos
políticos, isso significava o apoio às propostas reformistas do então
presidente Jânio Quadros, consideradas “nacionalistas” e de “interesse
popular”, entre as quais se incluíam a Lei Antitruste e de Remessa de Lucros, a
defesa das riquezas minerais, o combate à inflação, a reforma da Lei do Imposto
de Renda e a extinção das ações ao portador. Nessa convenção foi eleito
presidente do partido um membro da “Banda de Música”, o deputado paulista
Herbert Levy, e Carlos Lacerda, eleito governador da Guanabara, investiu
violentamente contra o programa da “Bossa Nova”, alertando para os “inegáveis
riscos do nacionalismo” e os perigos do “comunismo disfarçado”.
A
“Bossa Nova” passou a enfrentar, na cúpula partidária e no Congresso, a
oposição tenaz da “Banda de Música”, que acusava os dissidentes de
“filocomunistas”. Nesse sentido, os udenistas “tradicionais” procuravam
identificar a “Bossa Nova” com os chamados “chapas-brancas”, acusando a ambos
de adesismo e oportunismo, ou melhor, qualificando a “Bossa Nova” de “versão
moderna da chapa-branca com tendências esquerdistas”. Uma distinção se impõe: a
“Bossa Nova” tinha uma posição política definida e seus membros se
identificavam com ela, auto-intitulando-se “bossa-novistas”. Os udenistas
“chapas-brancas”, em geral políticos das regiões Norte e Nordeste, extremamente
dependentes do governo federal, jamais defendiam posições por “princípios”, mas
por “nomeações e verbas”, pois daí dependia seu poder estadual ou municipal.
Além disso, é óbvio que, sendo “chapa-branca” uma designação pejorativa (alusão
ao “governismo” dos parlamentares), ninguém assumia tal denominação. Os
“chapas-brancas”, por outro lado, tinham uma íntima associação com a “Banda de
Música”, a qual estimulavam, pois de sua atuação radical dependia o valor do
“adesismo”: quanto mais violento fosse o ataque da UDN ao governo, mais
rendimentos eleitorais os “chapas-brancas” poderiam auferir nos seus estados,
nas suas bases municipais, através do apoio ao governo.
Os principais inspiradores da “Bossa-Nova” foram José
Aparecido de Oliveira (MG), José Sarney (MA), Clóvis Ferro Costa (PA) e João
Seixas Dória (SE). Acompanharam as posições da “Bossa Nova”, entre outros, o
senador João Agripino — que anteriormente pertencera à “Banda de Música”, mas
se destacara na defesa de teses nacionalistas, opondo-se ao grupo lacerdista —
e os seguintes deputados: Adail Barreto (CE), Adolfo de Oliveira (PA), Arnaldo Nogueira (GB), Celso Passos (MG), Djalma Marinho (RN), Edilson Távora (CE), Édison
Garcia (MT), Francelino Pereira (MG), Heitor Cavalcanti (PI), José Carlos
Guerra (PE), José Meira (PE), Simão da Cunha (MG), Wilson Falcão (BA) e Wilson
Martins (MT). “Chapas-brancas” notórios como Virgílio Távora (CE), Leandro
Maciel (SE), José Cândido Ferraz (PI) ou Antônio Carlos Magalhães (BA) podiam,
eventualmente, apoiar propostas da “Bossa Nova”, mas não tinham interesse em
efetivar filiação a grupo algum.
Após a renúncia de Jânio Quadros, a “Bossa Nova” manteve sua
posição reformista e sua tática de aproximação com o governo federal. Membros
da “Bossa Nova” ingressaram na Frente Parlamentar Nacionalista (que contava com
28,6% de udenistas) em aliança com a Ala Moça do PSD (Partido Social
Democrático), o “Grupo Compacto” do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) e a
ala progressista do PDC (Partido Democrata Cristão) para reforçar o apoio às
reformas de base propostas pelo governo João Goulart. O momento decisivo da atuação
dissidente da “Bossa Nova” ocorreu durante a convenção nacional do partido,
realizada em Curitiba em abril de 1963, quando se evidenciou a ruptura com os
udenistas tradicionais, ou seja, os “bacharéis” da “Banda de Música”, os
radicais lacerdistas e os vinculados à Ação Democrática Parlamentar. O grupo da
“Bossa Nova”, nessa ocasião fortalecido pelo apoio dos governadores udenistas
Magalhães Pinto (MG), Petrônio Portela (PI) e Seixas Dória (SE), apresentou uma
moção em defesa das reformas agrária, bancária, tributária e urbana,
manifestou-se favorável à política externa independente e ao Plano Trienal do
governo, e defendeu a consolidação de Brasília, a democratização do ensino, o
monopólio estatal do petróleo e a Eletrobrás. A discussão em torno da reforma
agrária tornou-se o divisor de águas: a “Bossa Nova” defendia a reforma agrária
com emenda à Constituição, aceitando, inclusive, a tese do PTB de “arrendamento
compulsório” (“estamos com a reforma constitucional. Não haverá reforma agrária
séria e autêntica sem a reforma da Constituição”, dizia o manifesto da “Bossa
Nova”), enquanto para os conservadores e para os lacerdistas “a Constituição é
intocável”. Este ponto de vista prevaleceu na convenção, o que, no dizer de um
udenista histórico, “prova o caudalismo reacionário do partido” (Afonso Arinos,
A Escalada).
Outra grande questão que opôs a “Bossa Nova” e a “Banda de
Música”, já em meados de 1964, foi a discussão em torno da aprovação do projeto
do governo de alteração da Lei de Remessa de Lucros. Pela primeira vez a UDN,
através de seu presidente Bilac Pinto, pediu “questão fechada” em favor do
projeto. A “Bossa Nova” se opôs, optando pela demissão da Comissão de Economia
dos deputados “bossa-novistas” José Carlos Guerra (PE) e Simão da Cunha (MG).
As clivagens no interior do partido se aprofundaram com as
perspectivas de eleições presidenciais em 1965. A “Bossa Nova” manteve-se coesa, articulando as candidaturas de Magalhães Pinto para presidente
e Seixas Dória para vice. A “Banda de Música” ficou dividida, pois se o
“candidato natural” era Carlos Lacerda, ilustres membros do grupo, como Aliomar
Baleeiro e Bilac Pinto, não escondiam suas reservas frente às pretensões
lacerdistas. Carlos Lacerda, no entanto, viu seu nome homologado pela convenção
nacional do partido, realizada em São Paulo em novembro de 1964, e seu
candidato Ernâni Sátiro derrotou Aliomar Baleeiro na disputa pela presidência
do partido na convenção de Niterói, em abril de 1965. A extinção dos partidos e o prolongamento do mandato do presidente Castelo Branco por força do
Ato Institucional nº 2, de outubro de 1965, não apenas liquidaram com a
candidatura de Lacerda, como também dissolveram as principais razões para as
divergências entre os grupos rivais “Bossa Nova” e “Banda de Música”. Membros
dos dois grupos participaram, indistintamente, dos movimentos de oposição ou de
apoio ao novo regime, e dos dois lados houve cassações de mandatos parlamentares.
Antigos adversários uniram-se na Frente Ampla (Carlos Lacerda e José Aparecido)
ou na direção da Aliança Renovadora Nacional (Arena).
Ao contrário da “Banda de Música”, cujo espírito
essencialmente bacharelesco e oposicionista parece ter encarnado uma certa
“tradição udenista”, a “Bossa Nova” permaneceu, aos olhos dos estudiosos dos
partidos brasileiros, como um exemplo típico da ambigüidade nas composições
partidárias, quando os critérios de políticas regionais prevalecem sobre o que
seria o programa ou a “ideologia” do partido.
Dos principais líderes da “Bossa Nova”, José Aparecido, Ferro
Costa e Seixas Dória tiveram seus direitos políticos suspensos por dez anos.
José Sarney, Magalhães Pinto e Petrônio Portela ingressaram na Arena e
mantiveram-se estreitamente vinculados aos governos militares pós-1964.
Maria Vitória Benevides
colaboração especial
FONTES: BENEVIDES, M. UDN; FRANCO,
A. Escalada; PICALUGA, I. Partidos; SOARES, O.
UDN.