AGÊNCIA
BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA (Abin)
Após
a desativação do Serviço Nacional de Informações (SNI) pelo governo Collor em
1990, os serviços de informação foram alocados na Secretaria de Assuntos
Estratégicos (SAE) de modo a desmilitarizar a função. A mudança do conceito de
informação para o de inteligência reafirmava também o propósito de livrar a
atividade do setor do estigma causado pela ação do SNI e dos órgãos a ele
vinculados nas décadas anteriores. Assim, a Agência Brasileira de Inteligência
(Abin) foi instituída em 1999 pelo governo Fernando Henrique Cardoso como órgão
central do Sistema Brasileiro de Inteligência, com a função de planejar,
executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência e
contra-inteligência e executar a Política Nacional de Inteligência de mais alto
nível do governo, integrando os trabalhos dos demais órgãos setoriais do gênero
em todo o país.
CRIAÇÃO
Em
janeiro de 1995, através da medida provisória nº. 813 o Poder Executivo foi
autorizado a criar a Abin como órgão de assessoria direta da Presidência da
República. A mesma medida provisória manteve a Subsecretaria de Inteligência
(SSI) subordinada à Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), porém
supervisionada pelo Secretário Geral da Presidência da República, então ocupada
por José Eduardo Jorge. O objetivo por trás dessas mudanças era iniciar o
processo de criação de um novo órgão de inteligência para o país. Inicialmente,
o encarregado de coordenar e implementar o projeto foi o general Fernando Cardoso,
ex-chefe do Centro de Informações do Exército, nomeado Assessor Especial do
presidente da República e subordinado ao chefe da Secretaria Geral. Porém, em
março de 1996, o general Fernando Cardoso deixou a função após desentendimentos
com José Eduardo Jorge; suas responsabilidades foram transferidas para o
general Alberto Mendes Cardoso, ministro-chefe da Casa Militar e que, a partir
de então, acumulou também a chefia da SSI, agora vinculada à Casa Militar.
A
ordem dada pelo presidente da República, segundo o general Alberto Cardoso, foi
a de criar um órgão de inteligência do Estado brasileiro e não do governo, com
a finalidade de produzir conhecimentos para o processo decisório do chefe do
Executivo; o futuro órgão, chamado de Agência Brasileira de Inteligência, seria
o centro do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) também a ser criado.
Diferentemente do antigo SNI, as informações coletadas pela Abin seriam usadas
na condução das políticas governamentais e não para análises políticas e partidárias.
O general Alberto Cardoso também disse que a Abin e seus agentes não
realizariam operações de caráter policial e que a atividade de inteligência
exigia rigoroso compromisso ético e moral tanto dos seus profissionais como das
autoridades que utilizam os seus produtos. Nesse momento inicial, houve a
preocupação de apresentar publicamente o projeto da Abin, através de
conferências no Congresso, nas universidades e associações da sociedade civil e
na imprensa, tarefa essa que coube principalmente ao general Alberto Cardoso.
Em
setembro de 1997, o Executivo enviou ao Congresso o projeto de lei nº. 3651,
que instituía o Sisbin e criava a Abin. Dentre as emendas apresentadas ao
relator do projeto na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional
(Creden) da Câmara, deputado José Aníbal, do Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB-SP), estava o substitutivo elaborado pelo deputado José
Genoíno, do Partido dos Trabalhadores (PT-SP), cujas propostas envolviam a
ampliação do controle exercido pelo Legislativo sobre as atividades da Abin
através de uma comissão parlamentar mista e da co-gestão do Congresso sobre a
Política Nacional de Inteligência a ser definida pelo presidente da República;
o relator aceitou parcialmente as propostas desse substitutivo. No Senado, a
única emenda aceita foi a do senador Romeu Tuma, do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB-SP), relator do projeto na Comissão de Relações Exteriores e
Defesa Nacional (CRE). Por essa emenda, se definia que a comissão mista de
controle sobre a Abin seria composta pelos líderes da maioria e da minoria da
Câmara e do Senado e pelos presidentes da Creden e da CRE. Finalmente, após
retornar para a Câmara em virtude da última alteração, o projeto foi aprovado e
deu origem à lei nº. 9883, sancionada pelo presidente da República em 7 de
dezembro de 1999, já no seu segundo mandato. A SSI foi extinta.
Baseando-se na definição feita pelo deputado José
Genoíno em seu substitutivo, o conceito de inteligência apresentado no texto da
lei nº. 9.883 dizia que “entende-se como inteligência a atividade que objetiva
a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território
nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o
processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança
da sociedade e do Estado”. Por sua vez, definiu-se a contra-inteligência como
“a atividade que objetiva neutralizar a inteligência adversa”. Segundo a
crítica de Antunes, essa conceituação pecou pela falta de precisão, visto que
não foram explícitos quais são os “fatos e situações” passíveis de influenciar
o processo decisório nem quais são os interesses da sociedade que devem ser
resguardados.
ESTRUTURA
A
lei também instituiu o Sisbin, cuja responsabilidade seria integrar as ações de
planejamento e execução das atividades de inteligência do país, de modo a
fornecer subsídios ao presidente da República nos assuntos de “interesse
nacional”. O Sisbin foi ainda fundamentado na preservação da soberania
nacional, na defesa do Estado Democrático de Direito e na dignidade da pessoa
humana, subordinando-se aos ditames da Constituição, aos tratados, acordos e
afins dos quais o Brasil seja signatário internacionalmente e à legislação
ordinária. Deveriam compor o Sisbin os órgãos e entidades da administração
pública que produzissem, direta ou indiretamente, conhecimentos de interesse da
inteligência nas áreas de defesa externa, segurança interna e relações
exteriores. Inicialmente, não houve definição sobre qual seriam exatamente
esses órgãos, o que só foi feito a partir do decreto nº. 4.376 de 13 de
setembro de 2002, quando se especificou a participação da Casa Civil, do GSI,
da Abin, dos ministérios da Justiça, Defesa, Relações Exteriores, Fazenda,
Trabalho, Previdência Social, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Integração
Nacional.
Já
Abin, como órgão central do Sisbin, ficou com a função de planejar, executar,
coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do país,
cujos limites de extensão e uso de técnicas sigilosas deveriam se dar em
“irrestrita observância” aos direitos e garantias individuais, sem desrespeitar
as instituições e os princípios éticos que regem os interesses e a segurança do
Estado. A lei ainda determinava o papel do Legislativo no controle externo da
atividade de inteligência, através da comissão mista a ser criada para esse
fim, dotada também da responsabilidade de examinar e fazer sugestões à Política
Nacional de Inteligência a ser fixada pelo presidente da República; no entanto,
não houve referência sobre o nível de acesso dos parlamentares sobre as
informações e documentos sigilosos. A direção da Agência caberia a um
diretor-geral, escolhido pelo presidente da República e aprovado pelo Senado
Federal. O primeiro diretor-geral da Abin, nomeado quando da sua criação, foi o
coronel Ariel Rocha de Cunto.
A
estrutura regimental da Abin foi regulamentada pelo Gabinete de Segurança
Institucional (GSI, como foi rebatizada a Casa Militar em 1999), originando o
decreto nº. 3493 de maio de 2000. Posteriormente, a medida provisória nº.
2.216-7 de 31 de agosto de 2001 estabeleceu que as informações e documentos
produzidos pela Abin ou em custódia dela só poderão ser fornecidos às
autoridades competentes pelo chefe do GSI com exceção daqueles cujo sigilo fosse
considerado imprescindível à “segurança da sociedade e do Estado”.
Basicamente,
a dinâmica de serviço da Abin funcionava da seguinte maneira: o material
recolhido pelos agentes distribuídos entre os escritórios e agências regionais
era enviado ao Departamento de Inteligência do órgão, que selecionava as
informações que podiam ser de interesse do presidente da República. A partir
daí, era feito um relatório dirigido ao diretor-geral da Abin que, por sua vez,
o repassava ao ministro-chefe do GSI, que enfim apresentava a resenha das
informações ao presidente.
O recrutamento de funcionários para a agência era
feito através de concurso público ou via requisição e redistribuição de
servidores de outros órgãos da administração pública. O primeiro concurso, realizado
em 1999, atraiu 2.064 candidatos para 120 vagas. Dos candidatos a agente, ou
“analistas de informações”, exigiam-se atributos como a capacidade de análise e
síntese, raciocínio lógico e prospectivo, flexibilidade de raciocínio,
criatividade, capacidade de trabalhar sob pressão, idealismo, lealdade e
responsabilidade. Além disso, para evitar a infiltração do serviço, os
candidatos tinham sua vida investigada pela Abin. Uma vez aprovado, o agente
fazia um curso de formação na Escola de Inteligência (Esint) da Abin, em
Brasília, cujo currículo incluía disciplinas como Fundamentos da Atividade de
Inteligência, Produção de Conhecimentos, Contra-Inteligência, Ciência Política,
Relações Internacionais, Direito, Psicologia, Comunicação, Sociologia, Administração,
Informática, Idiomas e Protocolo e Etiqueta. Ao longo da carreira, também eram
previstos cursos de aperfeiçoamento. No entanto, a lei que regulamentava o
plano de carreira da Abin só seria aprovada em abril de 2004, através da lei
nº. 10.862. Até então, a ausência de tal plano era tida como razão para a
evasão dos concursados, cujos salários eram inferiores aos de outras categorias
do funcionalismo estatal, o que prejudicava a continuidade da formação dos
quadros, gerava algumas ameaças de greve e colocava em risco a segurança das
informações. Em setembro de 2008, a lei nº. 11.776 estabeleceu nova
estruturação do plano de carreiras e cargos da Abin, criando a carreira de
oficial de inteligência, oficial técnico de inteligência, agente de
inteligência e agente técnico de inteligência.
PRIMEIROS
ANOS
Pouco antes da oficialização da Abin, o serviço de
inteligência seria destaque na imprensa através do “caso dos grampos do BNDES”.
Tudo começou em agosto de 1998, mês seguinte ao término do leilão que privatizou
a Telebrás, quando surgiram indícios de que conversas gravadas por grampo
clandestino mostrariam que o governo agiu de modo a favorecer um dos consórcios
participantes do leilão. A então SSI foi encarregada pelo governo de apurar
essas gravações e descobrir quem foi o autor dos grampos. Meses depois o órgão
declarou ter recebido anonimamente duas fitas com o conteúdo das gravações,
deixadas num viaduto em Brasília; segundo o general Cardoso, a audição do
material mostrou que o conteúdo não provava nada a respeito da privatização da
Telebrás, sendo apenas um “caso típico de espionagem comercial”. O caso foi
dado por encerrado. Porém, em meio a manifestações de desconfiança por parte do
Ministério Público, a imprensa acabaria por encontrar mais fitas que confirmavam
as suspeitas de manipulação no processo de privatização; as conversas envolviam
o presidente Fernando Henrique Cardoso, o ministro das Comunicações Luís Carlos
Mendes e o presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) André Lara Resende. Diante de tal situação, os dois últimos ministros
foram demitidos junto com mais cinco funcionários do governo.
O prosseguimento das investigações, agora a cargo da
Polícia Federal, revelou que os grampos clandestinos foram instalados por
agentes da SSI lotados no Rio de Janeiro. Os indiciados pelo Ministério Público
Federal foram: o agente Temílson Antônio Barreto, conhecido pelo codinome
“Telmo” e que trabalhava no ramo da inteligência desde os tempos do SNI; o
ex-agente do Cenimar Adílson Alcântara dos Santos; o coordenador da SSI no Rio,
João Guilherme Almeida; e o coordenador de operações da SSI Gerci Firmino da
Silva, que fora o responsável por buscar as fitas no viaduto, segundo a versão
dada pela SSI anteriormente. Apenas os dois primeiros foram condenados. O
general Alberto Cardoso negou que a instalação dos grampos fosse uma ação
institucional ou que tivesse conhecimento das ações de seus agentes. João
Guilherme Almeida e Gerci Firmino foram absolvidos por falta de provas de que
houvessem coordenado a operação. Dez anos depois desse episódio, as ações de
improbidade administrativa propostas pelo Ministério Público Federal sobre a
manipulação no processo de privatização continuavam paradas. Em entrevista dada
em 2008, o agente Adílson Alcântara negou a versão sustentada pelo MPF de que o
grampo foi obra da Abin a mando do governo; segundo ele, tudo partiu de
empresas com a finalidade de pressionar no governo na venda da Telebrás.
Em maio de 2000, o decreto 3.448 determinou a criação
do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública, órgão vinculado à Abin
responsável por promover a coleta, busca e análise de dados e produzir
informações úteis às esferas federal, estadual e municipal com a finalidade de
reduzir ao máximo as incertezas referentes à segurança pública. A adesão dos
Estados e de suas respectivas Secretarias de Segurança Pública ao subsistema
seria feita voluntariamente através de convênios. O conselho do órgão seria
presidido pelo diretor-geral da Abin e integrado por representantes dos
ministérios da Justiça, Defesa, Integração Nacional e do Gabinete de Segurança
Institucional. A princípio, essa medida foi acusada de tentar reviver o
sistema de coleta de informações promovido pelo SNI; o general Cardoso
respondeu argumentando que o subsistema não era voltado contra inimigos
internos, pois esses não existiriam e sim contra o crime organizado, o que
gerava a necessidade de organização do fluxo de informações entre os Estados,
cuja participação não mais seria imposta como nos tempos do SNI. Outra crítica
referente ao subsistema era a de que ele teria funções concorrentes com a
Secretaria Nacional de Segurança Pública, pertencente ao Ministério da Justiça;
de fato, em dezembro do mesmo ano o decreto 3.695 tornou a Secretaria Nacional
de Segurança Pública o órgão central do Subsistema, passando a Abin a
participar dele apenas com representação no conselho.
Em novembro de 2000, a revista Veja publicou reportagem denunciando ações da Abin que não corresponderiam às suas funções regulamentadas.
Dentre os casos citados, o levantamento da ficha ideológica do jornalista
Andrei Meirelles, que investigava desvios do ex-secretário-geral da Presidência
da República, José Eduardo Jorge; a espionagem política feita sobre o
ex-presidente e então governador de Minas Gerais Itamar Franco, opositor do
governo, que foi objeto de um relatório enviado ao chefe do GSI e por ele
destruído, por se tratar de “denúncia anônima”; e a vigilância feita sobre o
procurador da República Luís Francisco de Sousa, que apurava o uso de jatinhos
da Força Aérea por parte de ministros, na qual foi empregada uma “andorinha” –
termo que designa as agentes que se envolvem amorosamente com os investigados
de modo a obter informações sobre eles. As fontes da reportagem, segundo a
revista, foram “oito funcionários da Abin, todos de médio escalão para cima, e
sete que pertenceram à agência e hoje estão oficialmente afastados”. O general
Alberto Cardoso disse não ter conhecimento sobre desvios de conduta da Abin e
negou a realização de investigações conforme as denunciadas pela reportagem,
que de acordo com ele, estaria repleta de afirmações falsas e meias verdades.
Diante da repercussão negativa do episódio entre os
parlamentares e no propósito de evitar eventuais desvios por parte da agência,
o general Cardoso entrou em contato com o então presidente do Congresso,
Antônio Carlos Magalhães, do Partido da Frente Liberal (PFL-BA), pedindo para
que a comissão mista de controle sobre o setor de inteligência fosse finalmente
instalada, conforme previsto na lei de criação da Abin. No dia 21 de novembro
foi instalado o Órgão de Controle e Fiscalização Externos da Política Nacional
de Inteligência, em breve rebatizado de Comissão Mista de Controle das
Atividades de Inteligência (CCAI). Em sua primeira formação, a comissão teve os
seguintes membros: o senador José Sarney, presidente da CRE e, por isso, da
CCAI; os senadores Jader Barbalho e Heloísa Helena, respectivamente líderes da
maioria e da minoria no Senado; o deputado Luís Carlos Hauly, presidente da
Creden; e os deputados Aécio Neves e Aluísio Mercadante, respectivamente
líderes da maioria e da minoria na Câmara. Ao ser ouvido alguns dias depois
pela comissão mista sobre os episódios da reportagem, o general Cardoso teria
admitido a possibilidade de que investigações paralelas tivessem acontecido e
que as denúncias provavelmente foram feitas por ex-funcionários do SNI.
No dia 1º de dezembro o diretor-geral da Abin, coronel
Ariel De Cunto, foi demitido pelo chefe do GSI após confirmar que havia nomeado
para o Departamento de Organização Criminosa da agência o ex-tenente do
Exército Carlos Alberto Del Menezzi, reconhecido como torturador por ex-presos
políticos do regime militar. O nome de Del Menezzi também constava na lista de acusados
de tortura elaborada pelo projeto “Brasil Nunca Mais”. O general Cardoso, que
determinou a exoneração do coronel De Cunto sob ordem do presidente Fernando
Henrique Cardoso, disse que a nomeação do ex-tenente foi o ápice no processo
cada vez mais intenso de desgaste da Abin, processo esse que também não teria
sido corrigido pelo diretor-geral da agência. Em seguida, Cardoso ordenou que o
quadro de funcionários da Abin fosse comparado com a lista de 444 nomes do
“Brasil Nunca Mais” e outras a serem fornecidas pela Comissão de Direitos
Humanos da Câmara, de modo a descobrir a presença de algum outro acusado de
tortura. Posteriormente, mais dois suspeitos foram identificados, porém seus
nomes foram mantidos em sigilo. Calculava-se que dos 1.740 funcionários que a
Abin possuía até então, 226 (13%) haviam pertencido ao SNI.
Ainda em dezembro de 2000, a psicóloga Maria Del’Isola e Diniz, que trabalhava no setor de inteligência desde 1974, foi
nomeada diretora-geral interina da Abin. Sua indicação só foi aprovada pelo
Senado em 26 de julho de 2001.
Durante um seminário sobre as atividades de
inteligência, realizado em novembro de 2002, o general Alberto Cardoso elencou
os principais temas que ocuparam o serviço de inteligência brasileiro desde
1996, quando o sistema vigente começou a ser formulado. Foram eles: o
acompanhamento dos movimentos separatistas e do atendimento das reivindicações
“justas” dos movimentos sociais, como o MST, que a despeito de ser um dos
“impulsionadores do processo de edificação da justiça social no campo”,
eventualmente poderia agir de modo a “representar ameaça à ordem pública”;
temas relacionados à proteção das populações indígenas, como a demarcação e
gestão de áreas, saúde e educação, além de “influências estranhas” sobre tais
populações; temas referentes ao meio ambiente e à biodiversidade do país e os
obstáculos nacionais e internacionais à aplicação das políticas ambientais do
governo; as oportunidades e dificuldades relacionadas ao desenvolvimento
nacional, especialmente nas áreas de tecnologia de ponta e de recursos
naturais; a grilagem de terras, sobretudo na região amazônica, por parte de
“empresas ou entidades nacionais e estrangeiras, muitas delas interessadas na
rica biodiversidade brasileira e na exploração clandestina” de recursos
naturais; a não-proliferação de armas de destruição em massa, através da
cooperação com órgãos nacionais e internacionais, da participação em foros
referentes ao tema e do intercambio de informações visando combater o
contrabando de insumos sensíveis e aperfeiçoar o controle na venda de produtos
de uso dual, isto é, civil e militar; a segurança pública nos Estados, em
cooperação com o Subsistema de Inteligência de Segurança Pública e a
“sistemática obtenção e difusão de dados do interesse do combate ao crime
transnacional organizado, sobremodo o narcotráfico, o tráfico de armas e a
lavagem de dinheiro”; a prevenção contra o terrorismo, em interação com
serviços de inteligências estrangeiros, com foco na movimentação e nas
atividades de membros de organizações terroristas internacionais e no
“acompanhamento de suspeitos” que teria começado bem antes dos atentados
terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos; por fim, os
conflitos externos, especialmente aqueles com reflexos potenciais para o
Brasil, como o Plano Colômbia, que envolvia o suporte financeiro e militar
norte-americano ao governo colombiano para o combate ao tráfico de drogas e ao
movimento guerrilheiro conhecido por Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia
(FARC). Esses temas continuariam a pautar as ações da Abin nos próximos anos.
A Abin foi responsável pelo Centro de Pesquisa para a
Segurança das Comunicações (Cepesc), que desde as eleições de 1996, criava e
implementava módulos criptográficos para proteger o transporte dos dados das
urnas eletrônicas para os computadores totalizadores de votos. No entanto, a
integração, configuração, destinação, utilização e controle dos códigos e
programas desenvolvidos pelo Cepesc e a geração e gerenciamento das chaves
criptográficas do sistema de votação eletrônica cabiam exclusivamente ao
Tribunal Superior Eleitoral.
Também estava sob responsabilidade da Abin o Programa
Nacional de Proteção do Conhecimento Sensível (PNPC), criado em novembro de
1997 pela então Casa Militar como “instrumento preventivo para a proteção e
salvaguarda de conhecimentos sensíveis de interesse da sociedade e do Estado
brasileiros”, atendendo às instituições nacionais públicas ou privadas que
geram ou cuidam de conhecimentos nas áreas de defesa nacional, ciência e
tecnologia, recursos energéticos, minerais e materiais estratégicos,
conhecimentos sobre povos indígenas e “comunidades tradicionais”; agronegócio,
desenvolvimento socioeconômico e educação. O PNPC era executado pelo
Departamento de Contra-Inteligência da Abin.
A
Abin no governo Lula (2003-)
Em 2002, após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva à presidência
da República, chegou a ser noticiada a existência de uma disputa entre o futuro
secretário de Comunicação Luís Gushiken e o futuro chefe da Casa Civil, José
Dirceu, a respeito de qual dos dois órgãos deveria controlar a Abin no próximo
governo. No entanto, com Lula empossado em 2003, a Abin continuou subordinada ao GSI, agora chefiado pelo general Jorge Armando Félix, a quem o
general Alberto Cardoso substituiu na Secretaria de Ciência e Tecnologia do
Exército quando deixou aquele cargo. Em outubro de 2003, o general Félix e o
Secretário Geral da Presidência Luís Dulci anunciaram a realização de um novo
“ciclo de consultas à sociedade” sobre a política de inteligência do governo,
semelhantemente ao que foi feito para a implementação da Abin durante o
primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. O propósito agora era o de
debater a reestruturação dos poderes da Abin, com vistas a flexibilizar as leis
que limitavam a instalação de escutas telefônicas e que impediam o acesso da
agência a dados sigilosos da Receita Federal. Até então, os grampos telefônicos
só podiam ser realizados com a autorização do Judiciário através de pedido da
Polícia Federal; encaminhando seus pedidos diretamente ao Judiciário, a Abin
esperava maior agilidade em suas ações e evitar o recurso a meios clandestinos
de escuta.
Em fevereiro de 2004 veio à tona o “caso Valdomiro
Diniz”, tido como a primeira crise política do novo governo. De acordo com
conversas gravadas em 2002, Valdomiro Diniz, então presidente da Loteria do
Estado do Rio de Janeiro (Loterj), ofereceu propina ao empresário e bicheiro
Carlos Augusto Ramos, vulgo Carlinhos Cachoeira, visando arrecadar fundos para
a campanha eleitoral do PT e do Partido Socialista Brasileiro (PSB); em troca,
Valdomiro ajudaria Ramos numa licitação. Quando a denúncia surgiu, Valdomiro
Diniz era sub-chefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil da Presidência da
República, cargo de confiança do então ministro-chefe desse órgão, José Dirceu.
Mais tarde, descobriu-se que o autor da gravação em vídeo foi o ex-agente da
Abin Jairo Martins de Sousa, a pedido do próprio Carlos Augusto Ramos. A Abin
foi acusada de ter negligenciado informações do levantamento de dados sobre a
vida pregressa de Valdomiro quando ele estava para assumir o cargo na Casa
Civil em 2002; no entanto, existiam evidências de que a Abin havia feito de
fato tal levantamento, que alegava “indícios de envolvimento” do investigado na
“máfia do bingos” do Rio de Janeiro. O relatório foi enviado à diretoria da
Abin mas retornara pois, conforme teria dito a diretora-geral Maria Del’Isola
Diniz, a agência avaliava “fatos e pessoas, não indícios”. Valdomiro foi então
aceito no cargo, do qual foi demitido após o surgimento do vídeo.
Em maio, Maria Del’Isola Diniz foi destituída do cargo
de diretora-geral da Abin. Meses antes ela já havia colocado o cargo à
disposição do ministro-chefe do GSI, segundo consta, devido a insatisfações com
a perspectiva de reestruturação da agência e também por não ter recebido apoio
depois que o ex-chefe do Federal Bureau of Investigation (FBI) no Brasil,
Carlos Costa, deu entrevista à revista Carta Capital em março dizendo
que a Abin estava sucateada e que algumas de suas contas seriam pagas pelos
norte-americanos. Para substituí-la, foi chamado Mauro Marcelo de Lima e Silva,
delegado da Polícia Civil de São Paulo especialista na investigação de crimes
eletrônicos. A escolha foi também um meio de colocar uma pessoa de confiança do
governo na direção da Abin, sem vínculos com os militares ou com a antiga
estrutura do SNI; conhecido de longa data do presidente Lula, Lima e Silva fora
seu assessor durante a campanha eleitoral. Sua indicação para a diretoria-geral
da Abin foi aprovada pelo Senado em 6 de julho de 2004 e a posse aconteceu no
dia 13 daquele mês.
Um dos principais desafios de Lima e Silva seria conter
a disputa entre os servidores e ex-servidores concursados da Abin e os
servidores oriundos do SNI; no ano anterior, os primeiros, reunidos em
associação, chegaram a enviar um abaixo-assinado à Casa Civil pedindo a troca
de toda a diretoria da Abin. Dizia-se também que essa disputa interna estava
por trás dos vazamentos de informações e documentos sigilosos que se sucediam
com alguma freqüência nos últimos tempos. Em setembro, durante visita de
membros da imprensa às instalações da Abin, Lima e Silva disse que nenhum dos
novos integrantes da diretoria era militar, de acordo com o pedido dos
concursados; porém, de fato, o comando da Abin ainda continuou a ser formado
por ex-membros do SNI. O novo diretor-chefe da Abin também ficou responsável
por readequar a imagem do órgão de inteligência perante a sociedade,
distanciando-o dos estigmas da “arapongagem” e do foco nas questões políticas
internas. Segundo boletim divulgado em setembro, até aquele momento a atuação
da Abin durante o governo Lula havia se concentrado na produção de informes
sobre a situação internacional, especialmente na América do Sul. Apesar da Abin
só ter representações estrangeiras na Argentina e em Miami, essas informações
eram obtidas por “fontes” estrangeiras, notícias da imprensa e o relato de
analistas enviados ao exterior para a averiguação de questões específicas.
Em 2004, a Abin e o Ministério da Ciência e Tecnologia
passaram a desenvolver o Programa Nacional de Integração Estado-Empresa na Área
de Bens Sensíveis (Pronabens). Esse programa visava orientar as empresas
nacionais importadoras e exportadoras das áreas química, nuclear, biológica e
missilística sobre as obrigações decorrentes da Resolução nº. 1.540 da
Organização das Nações Unidas, que determinou aos governos a criação de
mecanismos de controle sobre o comercio de bens e tecnologias das áreas citadas
acima, de natureza dual (civil e militar). Em janeiro de 2005, a Abin e o Ministério da Previdência assinaram um acordo de cooperação técnica com a finalidade
de combater irregularidades causadas por falhas de segurança nos sistemas da
Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev), que
administra a base de dados do compartilhar informações e métodos de proteção
ao conhecimento do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A Abin seria
responsável por treinar agentes da Previdência para identificar vulnerabilidades
e impedir a alteração de documentos e informações importantes.
Em maio de 2005, mais uma crise política se iniciou no
governo. Agora, um vídeo mostrava o ex-funcionário dos Correios Maurício
Marinho negociando propina com empresários interessados em participar de uma
licitação; o esquema de corrupção seria gerido pelo diretor de administração
dos Correios, Antônio Osório Batista e pelo deputado federal Roberto Jefferson,
presidente do PTB. Conforme foi descoberto mais tarde, por trás da gravação estava
o ex-agente Jairo Martins, o mesmo que em 2004 registrara o vídeo do caso
Valdomiro Diniz; dessa vez, o flagrante foi feito a mando do empresário Artur
Wascheck, que se achava prejudicado nas licitações dos Correios. Martins vendeu
o material para um repórter da revista Veja, que tornou o caso público.
O episódio desembocou na denúncia feita pelo deputado Roberto Jefferson sobre a
existência de um esquema de compra de votos com vistas a garantir o apoio de
alguns congressistas às matérias de interesse do governo, mediante pagamento
mensal de 30 mil reais, o chamado “mensalão”. O assunto seria alvo das atenções
da imprensa e do meio político até meados do ano seguinte. Jefferson acusou
agentes da Abin de terem feito a gravação nos Correios.
O coronel da reserva da Polícia Militar José Santos
Fortuna Neves, preso por ser um dos organizadores do flagrante com o fim de
extorquir Roberto Jefferson, disse à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI) montada para apurar o caso que um agente da Abin infiltrado nos Correios
havia descoberto o esquema de corrupção antes da divulgação da fita. Esse
agente, de nome Edgar Lange, era colega de Neves desde os tempos de SNI e por
isso teve acesso fácil às informações. A Polícia Federal, que detectou a
participação do agente através de grampos, chegou a desconfiar do envolvimento
de setores na Abin no esquema. Posteriormente, a Abin admitiu que já
investigava oficialmente as denúncias de corrupção nos Correios antes do
escândalo vir à tona, pois elas se cruzaram com a busca de informações que a
agência realizava sobre contratos da empresa de informática Unisys com órgãos
públicos, em conjunto com a Polícia Federal, a Receita Federal e a Procuradoria
Geral da República; o que teria acontecido então foi uma “falha de comunicação”
da Abin para a PF, que não foi informada antes sobre o agente.
Em julho, Edgar Lange foi chamado a depor para a CPMI
sobre o caso. Segundo ele, a procura de informações acontecia desde abril e só
foi interrompida dias depois do vídeo ser divulgado, por ordem do
ministro-chefe do GSI. O fato da pessoa de Lange ter sido exposta durante o
depoimento revoltou o diretor-geral da Abin, Mauro Marcelo Lima e Silva, que
num email circulado internamente na agência elogiou a postura de Lange diante
das “bestas-feras em pleno picadeiro” e reclamou da falta de empenho da AGU na
proteção do servidor, cuja função profissional exigia a preservação de sua
identidade. O email repercutiu entre os parlamentares e acabou por ser lido em
sessão da CPMI. Em nota de esclarecimento, o diretor-geral da Abin disse que o
depoimento do agente deveria ter ocorrido diante de “público com o necessário
credenciamento de segurança para que não se comprometesse o sigilo e a
segurança do profissional”, que ficou exposto como num “picadeiro”, em situação
desumana - e daí a referência, em sentido figurado às “bestas-feras”, sem
relação com os parlamentares presentes. No dia 13 de julho, alegando razões
pessoais, Lima e Silva apresentou seu pedido de demissão ao presidente da
República interino José Alencar e ao chefe do GSI, general Jorge Armando Félix.
Aceito o pedido, foi nomeado interinamente para o cargo o então
diretor-geral-adjunto da Abin, José Milton Campana.
Em agosto de 2005, Márcio Paulo Buzanelli foi escolhido
para ocupar o cargo de diretor-geral da Abin. Membro do setor de inteligência
desde 1978, especialista no combate ao crime organizado e na prevenção ao
terrorismo, Buzanelli foi o primeiro servidor de carreira a assumir tal cargo.
Sua indicação foi aprovada pelo Senado no dia 24 de agosto e a posse aconteceu
no dia 6 de setembro. Em sua gestão, Buzanelli buscou continuar o projeto de
reengenharia institucional da Abin, promovendo desde mudanças mais prosaicas
como a escolha de um novo símbolo e de um hino para o órgão até medidas como a
criação de um Conselho Superior de Inteligência, formado pelos ex-diretores da
agência e a realização de seminários internacionais sobre as atividades de
inteligência. Nesse período, a Abin continuou a defender o direito de realizar
escutas telefônicas e ambientais, desde que com autorização judicial; uma
proposta de emenda constitucional para esse propósito foi apresentada pela Abin
ao GSI em janeiro de 2007, necessitando da aprovação da Casa Civil para ser
levada ao Congresso. A idéia causou resistências dentro da PF.
Em agosto de 2007, foi indicado para o lugar de
Buzanelli o então diretor da PF, Paulo Lacerda, cuja carreira fora marcada pela
participação em órgãos relacionados à segurança pública e combate ao crime
organizado. Após a aprovação final pelo Senado, Lacerda tomou posse em 9 de
outubro. Enquanto aguardava ser substituído no cargo, Buzanelli concedeu
entrevista onde disse que a escolha de um não servidor da Abin para a
diretoria-geral era frustrante para a nova geração de servidores contratados
por serviço público. Reclamou ainda da falta de apoio político para implementar
as mudanças que julgava necessárias na Abin; em sua opinião, parecia que o
governo estava recuando na política de valorização do agente de inteligência. A
troca no comando da Abin estava relacionada com a insatisfação do presidente
Lula com a ineficiência do órgão e com a falta de controle do governo sobre as
ações da PF, que muitas vezes chegavam às autoridades através da imprensa.
Para o lugar de Lacerda na PF, foi escolhido Luís Fernando Correia, que se
declararia contrário à extensão do direito de grampear à Abin, o qual Lacerda
viria a defender uma vez empossado na diretoria-geral da agência.
Em fevereiro de 2008, Abin e PF viriam a agir em
conjunto no episódio do furto de notebooks e discos rígidos
transportados num contêiner da Petrobras e que continham informações reservadas
sobre a prospecção de petróleo em águas brasileiras, mais especificamente nas
camadas do pré-sal. Essas informações eram consideradas “segredo de Estado” e
chegou-se a levantar a hipótese de espionagem industrial. No entanto, mais
tarde descobriu-se que os furtos foram obra de uma quadrilha formada por
agentes portuários, que teriam se aproveitado do fácil acesso ao conteúdo dos
contêineres e até da falta de lacres para se apossarem dos equipamentos, que
seriam vendidos para garantir “uns trocados para o Carnaval”, segundo um dos
presos. Algumas peças foram recuperadas pela PF, enquanto as outras foram
destruídas pela quadrilha, assustada com a repercussão do caso. O episódio
revelou a existência de vulnerabilidades no transporte de informações
estratégicas. A Abin já possuía um convênio com a Petrobras no Programa
Nacional de Proteção ao Conhecimento Sensível (PNPC), que na prática não estava
funcionando; por isso, anunciou a elaboração de um plano de segurança para a
empresa, incluindo formas mais seguras de transporte e a criptografia dos
dados.
Em julho de 2008, a Abin foi acusada de ter atuado de maneira irregular na chamada “operação Satiagraha”, comandada pela PF para
prender suspeitos de desvio de verbas públicas, lavagem de dinheiro e de outros
crimes financeiros. Dentre os presos, encontravam-se o banqueiro Daniel Dantas,
dono do banco Opportunity; Celso Pitta, ex-prefeito de São Paulo; e o
empresário Naji Nahas. A quadrilha teria ligações com o caso do “mensalão”
descoberto em 2005, pois empresas do grupo de Dantas como a Telemig e a
Amazônia Celular teriam sido as principais responsáveis por depósitos nas
contas de Marcos Valério, o operador do esquema de compra de votos dos
parlamentares. O delegado que chefiou a operação, Protógenes Queiroz, solicitou
a participação de agentes da Abin para monitorar os diretores do banco
Opportunity durante as investigações, o que não era ilegal porém foi feito a
revelia da cúpula da PF e do Ministério da Justiça. Queiroz acabou sendo
afastado das investigações não apenas pelo emprego dos agentes da Abin mas
também porque foi acusado de espetacularizar a operação, dando supostos
privilégios de cobertura para uma equipe da TV Globo e algemando alguns dos
investigados.
Em agosto, a revista Veja publicou uma conversa entre o
senador Demóstenes Torres, do partido Democratas (DEM) e Gilmar Mendes,
presidente do Supremo Tribunal Federal, que teria sido grampeada ilegalmente
pela Abin. Mendes havia concedido os habeas corpus que por duas vezes
liberaram Daniel Dantas da prisão por conta da Satiagraha. Ainda segundo a
revista, outros membros do governo, como ministros e auxiliares do presidente
teriam sido grampeados. Em depoimento à CPI criada para apurar irregularidades
no uso de grampos, Dantas disse que a operação foi encomendada à PF pelo
diretor-geral da Abin, Paulo Lacerda, em represália à ameaça de divulgação,
atribuída a Dantas, de supostas contas irregulares possuídas por aquele no
exterior. Em resposta, Lacerda disse à mesma CPI que a acusação feita por
Dantas não passava de estratégia sugerida por seus advogados; confirmou a
colaboração da Abin com a PF nas investigações, o que qualificou como “normal”;
e negou a autoria da Abin nas escutas feitas em Gilmar Mendes. Mesmo assim, o GSI abriu sindicância interna para apurar a realização das
escutas ilegais; Lacerda passou a considerar a possibilidade de participação de
agentes, ainda que segundo ele a Abin não possuísse equipamentos e funcionários
o suficiente para acompanhar tantas pessoas como na denúncia feita. Ao todo,
cerca de 80 funcionários da Abin foram cedidos para a Operação Satiagraha.
No dia 1º de setembro, Paulo Lacerda e toda a diretoria
da Abin foram afastados de seus cargos até o fim das investigações, por ordem
do presidente Lula sob a justificativa de “assegurar a transparência do
inquérito” que deveria ser aberto pela PF; além disso, pediu urgência na
aprovação pelo Congresso do projeto de lei nº. 3272, apresentado em abril pelo
Ministério da Justiça, que regulava e limitava as escutas telefônicas para fins
de investigação policial. Na reunião em que essas decisões foram tomadas, o
general Jorge Armando Félix chegou a colocar seu cargo de chefe do GSI à
disposição, o que foi recusado pelo presidente da República. Lacerda foi
substituído interinamente por Wilson Roberto Trezza, oriundo dos quadros da
Abin. Após averiguação no sistema de compras do governo, o Ministério da Defesa
descobriu que a Abin aproveitou uma licitação já levantada pelo Exército para
comprar certos equipamentos sem que tivesse de abrir outra licitação; segundo o
ministro da Defesa Nelson Jobim, esses equipamentos seriam capazes de
interceptar ligações telefônicas. De acordo com Jobim, foi essa a razão para a
queda de Lacerda que, por sua vez, disse que as maletas tinham por função
apenas detectar a presença de grampos telefônicos ou ambientais. Uma perícia
realizada nas maletas pelo Exército, a pedido do GSI, desmentiu as hipóteses
levantadas por Nelson Jobim, que considerou o laudo inconclusivo. O resultado
dessa primeira perícia seria confirmado por um segundo laudo emitido pela
diretoria técnico-científica do Instituto Nacional de Criminalística da Polícia
Federal e ainda por um terceiro, vindo do Exército. Diante disso, Jobim recuou
em suas acusações.
Em
novembro, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão no Centro de Operações da
Superintendência da Abin e nas residências do diretor de operações da
Coordenação de Inteligência Estratégica, Telio Braun D’Azevedo e de um
funcionário da Receita Federal cedido à Abin, Luís Eduardo Melo. A operação,
que recolheu computadores e mídias digitais, causou indignação na Abin pois
esses equipamentos conteriam dados operacionais sobre temas de natureza
política, econômica e militar que seriam usados em relatórios confidenciais
para a presidência da República. No caso de vazamento dessas informações,
funcionários em missão e operações em andamento passariam a correr riscos. Além
disso, a imprensa chegou a divulgar nomes e endereços de agentes. O
ministro-chefe do GSI e o ministro da Justiça haviam feito um acordo
estabelecendo que servidores da Abin acompanhassem a perícia e que um pedido de
resguardo do sigilo das informações seria feito à AGU. No entanto, uma decisão
do juiz Ali Mazloum proibiu a Abin de participar da perícia, antes que o pedido
de resguardo fosse feito. Diante dos resultados, o general Félix disse em carta
ao ministro Tarso Genro que o acontecido desmoralizava a Abin diante dos
serviços de inteligência estrangeiros, que poderiam restringir o intercâmbio de
informações estratégicas com o Brasil.
Em
dezembro, a sindicância aberta pelo GSI para averiguar as denúncias sobre os
grampos foi arquivada, alegando a ausência de dados que comprovassem a
realização de escutas ou outras formas legais ou não de quebra de sigilo por
parte dos servidores da Abin que participaram da operação Satiagraha. As
investigações da PF não chegaram a obter provas sobre a autoria ou do paradeiro
do arquivo de áudio cuja transcrição fora publicada pela revista. Paulo Lacerda
foi efetivamente afastado da diretoria-geral da Abin em 29 de dezembro. Embora
atribulada pelas denúncias dos grampos, a gestão de Lacerda na Abin teve como
marco a criação do Departamento de Integração do Sisbin (Disbin) através do
decreto nº. 6.540 de setembro de 2008, com a finalidade de integrar as
informações dos órgãos componentes do sistema de inteligência em um único
espaço físico; além disso, houve a aprovação de um novo plano de carreira, com
melhorias salariais e a abertura de concurso para novos efetivos. Em abril e
maio de 2009, respectivamente, o Tribunal Regional Federal da 3ª região e o
Ministério Público Federal de São Paulo também decidiriam pela legalidade da
atuação da Abin em cooperação com a PF na operação Satiagraha. Wilson Roberto
Trezza continuaria ocupando interinamente a diretoria-geral da Abin até ser
efetivado no cargo após aprovação do Senado, o que aconteceu em outubro de
2009.
Em fevereiro de 2009, o presidente Lula criou um comitê
ministerial com a finalidade de elaborar a Política Nacional de Inteligência e
revisar o Sisbin; coordenado pelo GSI, o comitê era formado pelos ministérios
da Casa Civil, da Defesa, das Relações Exteriores, do Planejamento e da
Secretaria de Assuntos Estratégicos. Segundo nota lançada pelo GSI, o Sisbin
foi criado em uma conjuntura diversa da presente, necessitando então de uma
reformulação com vistas a melhor cumprir sua destinação legal e integrar
eficazmente as ações de planejamento e execução. A proposta de política nacional
de inteligência elaborada pelo comitê foi aprovada pelo presidente Lula em
reunião do Conselho de Defesa Nacional no dia 20 de outubro. O texto do projeto
definiu as ameaças que seriam alvos da área de inteligência, como o terrorismo,
o narcotráfico, o crime organizado, a corrupção e a sabotagem. No entanto, a
coordenação da área de defesa passaria da Abin para o GSI, o que foi visto como
um “esvaziamento” da agência. De acordo com o ministro da Justiça Tarso Genro,
a nova Política Nacional de Inteligência seria importante para adaptar os
órgãos de inteligência à Constituição de 1988, o que até então não havia sido
feito.
A
ABIN E OS ARQUIVOS DO REGIME MILITAR
Ao longo de sua existência, a Abin se envolveu com a
questão da liberação dos arquivos que continham documentos sigilosos produzidos
pelos órgãos públicos durante o regime militar; sob sua guarda, encontravam-se
arquivos do SNI, da Comissão Geral de Investigações e da Secretaria Geral do Conselho
de Segurança Nacional. O decreto 4.553 baixado por Fernando Henrique Cardoso em
dezembro de 2002 dilatou os prazos de sigilo desses documentos; assim, a
indisponibilidade daqueles considerados reservados subiu de cinco para dez
anos; dos confidenciais, de dez para vinte anos; dos secretos, de vinte para
trinta anos; e dos ultra-secretos, de trinta para cinqüenta anos. Pelo mesmo
decreto, os prazos de sigilo dos documentos ultra-secretos poderiam ser
prorrogados infinitas vezes. Em julho de 2003, a 1ª Vara Federal do Distrito Federal condenou a União a abrir, no prazo de 120 dias, todas as
informações que possuísse em relação à guerrilha do Araguaia, movimento
debelado em meados dos anos 70 pelas Forças Armadas, além de intimar os
militares envolvidos a prestar depoimento. Diante de tal situação, os militares
voltaram a negar a existência dos documentos. O presidente Lula ordenou à
Advocacia Geral da União (AGU) que recorresse da decisão judicial, alegando uma
falha técnica na sua elaboração; quebrar o sigilo seria dar às famílias das
vítimas “mais” do que elas haviam pedido ao entrar com a ação, que seria apenas
a localização dos corpos. Em outubro de 2003, foi montada uma comissão
interministerial para coordenação das buscas na região do confronto, porém sem
a participação dos familiares ou de representantes do Ministério Público. No
que dizia respeito aos arquivos em posse da Abin, o general Félix disse
acreditar que eles não teriam nada que pudesse ajudar na localização das
ossadas.
Outro episódio, acontecido em outubro de 2004, lançou
atenções sobre os arquivos da Abin. O jornal Correio Braziliense
publicou fotos que seriam do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 numa
dependência do Exército em São Paulo; na verdade, as fotos eram de um padre canadense
que também fora alvo dos agentes da repressão. Elas foram subtraídas dos
arquivos do SNI em 1997 por um ex-agente e entregues à Comissão de Direitos
Humanos da Câmara dos Deputados, onde os repórteres do Correio as
encontraram. Antes que o equívoco fosse desfeito, o Exército divulgou nota
defendendo o recurso à tortura e isentando-se de culpa; diante do mal-estar e
da ameaça de uma crise militar, quem perdeu o cargo foi o então ministro da
Defesa, José Viegas Filho. A Abin alertou o governo sobre a verdadeira
identidade do fotografado, liberando às vistas da viúva de Herzog uma série de
40 fotografias até então sigilosas, de modo a comprovar o engano. Questionado
sobre a possibilidade de abertura dos arquivos, o general Félix justificou sua
posição contrária alegando que neles existiam dados que poderiam ser
constrangedores aos fichados pelo SNI e seus familiares, como registros de
delações, casos extraconjugais e corrupção. A mesma posição foi assumida pelo
então diretor-geral da Abin, Mauro Marcelo Lima e Silva, embora ele tenha dito
ser a favor da abertura dos arquivos. No máximo, o que a Abin já fazia de praxe
era conceder, para o individuo interessado, uma certidão contendo as
informações produzidas sobre ele durante a ditadura.
Em dezembro de 2004, o Tribunal Regional Federal da 1ª
Região rejeitou o recurso enviado pela AGU. No mesmo mês, a medida provisória
nº. 228 determinou que os prazos para divulgação de documentos sigilosos
voltassem a ser aqueles anteriores à medida de Fernando Henrique Cardoso em
2002, porém ainda mantendo a possibilidade de renovação infinita do veto sob os
documentos “ultra-secretos”. Em novembro de 2005, a lei nº. 11.111 regulamentou a transferência dos arquivos sob guarda da Abin para o Arquivo
Nacional, de modo a iniciar um processo de recolhimento geral de arquivos sob
coordenação da Casa Civil. O texto da lei estabelecia o dia 31 de dezembro de
2005 como limite para que os documentos e relatórios de investigação produzidos
pelo regime militar fossem tornados públicos, com exceção daqueles que
pudessem causar risco à soberania, à integração territorial ou às relações
internacionais, além daqueles que dissessem respeito à intimidade dos
investigados, cuja liberação dependeria de autorização de seus familiares. Em maio
de 2009, a Casa Civil criou o Centro de Referência das Lutas Políticas,
coordenado pelo Arquivo Nacional. O centro, que faz parte do projeto Memórias
Reveladas, tinha por objetivo reunir e catalogar acervos documentais de
instituições públicas e privadas referentes ao regime militar. Esses
documentos, somados aos arquivos cedidos pela Abin, seriam catalogados e
futuramente disponibilizados ao público através da internet, sendo mantida a
exceção para aqueles ainda classificados como ultra-secretos.
Paulo
Celso Liberato Corrêa
FONTES:
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10/9/04, 17/10/03, 14/11/04, 5/12/04, 25/1/05, 11/6/05, 15/6/05, 6/7/05,
14/7/05, 11/9/07, 29/2/08, 4/3/08, 16/7/08, 21/8/08, 31/8/08, 2/9/08,3/9/08,
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(11/6/05); O GLOBO ONLINE (28/10/2004); ISTOÉ (25/2/04); ISTOÉ DINHEIRO
(15/9/04); PLANALTO. Internet; SENADO FEDERAL. Internet; VEJA (15/11/00).