CARTA
TESTAMENTO
Documento legado pelo presidente Getúlio Vargas e divulgado
logo após seu suicídio, ocorrido por volta das oito horas da manhã de 24 de
agosto de 1954. Na carta, Getúlio denunciava que uma campanha subterrânea dos
grupos internacionais aliara-se à dos grupos nacionais, procurando criar
obstáculos ao regime de proteção ao trabalho, às limitações dos lucros
excessivos e às propostas de criação da Petrobras e da Eletrobrás. A mensagem,
dirigida ao povo brasileiro, concluía: “Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço
a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da
eternidade e saio da vida para entrar na história.”
A Carta-Testamento foi encontrada por Ernâni Amaral
Peixoto, governador do estado do Rio de Janeiro e genro de Getúlio, em cima de
uma mesinha-de-cabeceira do quarto presidencial. O documento foi lido em voz
alta por Osvaldo Aranha, ministro da Fazenda, para um grupo de pessoas que se
encontrava no palácio do Catete e em seguida transmitido por telefone para a
Rádio Nacional. Antes das nove horas da manhã, a mensagem começou a ser
irradiada para todo o país.
A crise de agosto
A crise política, que caracterizou praticamente todo o
segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), ganhou uma nova dimensão a
partir do atentado da Toneleros. Neste episódio, ocorrido em 5 de agosto de
1954, foi assassinado o major-aviador Rubens Vaz e levemente ferido o
jornalista Carlos Lacerda, que ganhara notoriedade pelo combate sistemático a
Getúlio nas páginas da Tribuna da Imprensa.
As investigações que se seguiram logo revelaram o
envolvimento de integrantes da guarda pessoal do presidente no atentado. Os
ataques da oposição ao governo tornaram-se mais violentos. No Congresso, a
bancada da União Democrática Nacional (UDN) exigia insistentemente a
destituição de Vargas. A grande maioria da oficialidade da Aeronáutica e da
Marinha e um setor significativo do Exército compartilhavam do ponto de vista
udenista. Na imprensa, prosseguiam as denúncias de corrupção e irregularidades
administrativas incriminando familiares e elementos ligados ao presidente.
Em 22 de agosto, os brigadeiros da Aeronáutica enviaram um
documento a Vargas exigindo sua renúncia. No dia seguinte, a alta oficialidade
da Marinha declarou-se solidária aos seus colegas da Força Aérea. A situação
agravou-se ainda mais na noite do dia 23, quando o ministro da Guerra, Euclides
Zenóbio da Costa, informou o presidente sobre a existência de um manifesto assinado
por vários generais do Exército, entre os quais Álvaro Fiúza de Castro,
Canrobert Pereira da Costa, Juarez Távora, Humberto Castelo Branco, Peri
Bevilacqua e Henrique Lott, em apoio à reivindicação dos brigadeiros. Embora se
recusasse a renunciar, Getúlio decidiu discutir imediatamente a questão com o
ministério.
A
reunião ministerial teve início às três horas da madrugada de 24 de agosto.
Como narra Foster Dulles, “Getúlio perguntou a cada ministro o que, na sua
opinião, deveria ser feito. Zenóbio da Costa disse que a situação estava-se
agravando, e que uma ampla maioria dos oficiais que comandavam tropas
provavelmente não obedeceria às ordens que lhe fossem dadas para entrar em ação
contra a Força Aérea e a Marinha. Se recebesse instruções neste sentido ele
daria essas ordens, mas muito sangue iria correr, e o resultado seria incerto.
O ministro da Marinha Renato Guillobel observou que a Marinha ‘já se manifestou
ao lado da Aeronáutica’. O ministro da Aeronáutica Epaminondas Gomes dos Santos
disse que nada havia que pudesse fazer para modificar a atitude da sua
corporação”. Mais adiante, o governador Amaral Peixoto lançou a proposta do
licenciamento do presidente. Tancredo Neves, ministro da Justiça, fez uma
contraproposta, afirmando que o povo deveria ser consultado através do
Parlamento. A discussão prosseguiu, mas sem atingir nenhum resultado concreto.
Foi então que Getúlio tomou a palavra e declarou: “Já que o ministério não
chega a nenhuma conclusão, eu vou decidir. Determino que os ministros militares
mantenham a ordem pública. Se conseguirem, eu apresentarei o meu pedido de
licença. No caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui dentro do palácio o
meu cadáver.” E retirou-se da sala.
Depois da saída de Getúlio, os ministros e demais participantes
da reunião julgaram conveniente redigir um comunicado anunciando ao povo a
decisão adotada. Tancredo Neves escreveu a nota, que foi levada por Osvaldo
Aranha a Vargas para obter sua aprovação. Às 4:45h da madrugada, o país era
informado da resolução do presidente: “Deliberou o presidente Vargas, com
integral solidariedade dos seus ministros, entrar em licença, passando o
governo a seu substituto legal, desde que seja mantida a ordem, respeitados os
poderes constituídos e honrados os compromissos solenemente assumidos perante a
nação pelos oficiais generais das nossas forças armadas. Em caso contrário,
persistiria inabalável no seu propósito de defender suas prerrogativas
constitucionais com o sacrifício, se necessário, de sua própria vida.”
Após a reunião, Zenóbio encontrou-se com os generais
oposicionistas no Ministério da Guerra, sendo convencido por estes de que o
afastamento do presidente teria de ser definitivo. A correlação de forças era
desfavorável aos partidários de Getúlio. As primeiras notícias de que os
generais se haviam decidido por um ultimato final a Vargas — agora apoiado pelo
próprio ministro da Guerra — chegaram ao Catete às sete horas da manhã.
Benjamim Vargas comunicou ao irmão a decisão dos militares, que significava na
prática sua deposição. Minutos depois, Getúlio suicidou-se com um tiro no
coração.
Repercussões
O
impacto provocado pelo suicídio de Getúlio e pela imediata divulgação da CartaTestamento
foi imenso. Manifestações populares sucederam-se em todo o país, sobretudo
nas grandes cidades. No centro do Rio de Janeiro ocorreram numerosos comícios
denunciando o envolvimento norte-americano na morte de Vargas, bem como as
responsabilidades da UDN e de toda a oposição. Grupos de centenas de pessoas,
armadas de pedaços de madeira e dando vivas ao ex-presidente, percorreram as
ruas da cidade rasgando cartazes de propaganda eleitoral dos candidatos
antigetulistas.
As sedes dos jornais O Globo e Tribuna da Imprensa
e da Rádio Globo foram atacadas por populares, e dois caminhões de entrega
de O Globo foram incendiados. O ataque à embaixada dos Estados Unidos e
ao prédio da Standard Oil foi rechaçado a bala por soldados, saindo feridos
dois populares. Os edifícios da Light & Power e da Companhia Telefônica
também foram atacados. O cortejo que acompanhou o corpo de Getúlio Vargas do
palácio do Catete ao aeroporto Santos Dumont — de onde foi trasladado para São
Borja, no Rio Grande do Sul — reuniu a maior multidão da história do Rio.
Os
incidentes não se limitaram ao Rio de Janeiro. Em São Paulo, milhares de
operários entraram em greve de protesto e promoveram manifestações de rua no
centro da cidade. Cerca de 20 mil pessoas tentaram depredar o edifício onde
estavam instalados os jornais dos Diários Associados, sendo impedidas por
policiais. Em Porto Alegre, populares queimaram as sedes de dois jornais
antivarguistas — O Estado do Rio Grande do Sul e o Diário de Notícia
—, e da Rádio Farroupilha, depredando ainda um banco e o consulado dos EUA.
Em Belo Horizonte e em Recife também ocorreram manifestações.
No plano político, as conseqüências do suicídio e da Carta-Testamento
não foram menores. Após meses de pressão sobre Getúlio, a oposição —
tornada governo com a posse de João Café Filho na presidência da República —
viu-se obrigada a recuar frente às dimensões da reação popular. Na opinião de
Thomas Skidmore, “durante a sua campanha, os antigetulistas tinham concentrado
o fogo do ataque na pessoa de Getúlio. Através do seu ato final de
sacrifício, Getúlio neutralizou as vantagens políticas e psicológicas que seus
oponentes haviam acumulado”.
A UDN esperava alcançar uma grande vitória nas eleições
legislativas de outubro de 1954, capaz de lhe permitir — acreditavam os mais
otimistas — até mesmo o controle do Congresso. A campanha udenista, centrada em
denúncias de corrupção e de desmandos administrativos, ganhara novo alento com
o atentado da Toneleros e seus desdobramentos. No entanto, as circunstâncias
que envolveram a morte de Vargas modificaram o quadro político e a UDN acabou
sendo a principal derrotada no pleito, perdendo dez das 84 cadeiras que detinha
no Parlamento.
Os
acontecimentos do 24 de Agosto também marcaram profundamente o comportamento do
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Até o suicídio de Vargas, os comunistas
faziam cerradas críticas ao seu governo, acusando-o de submeter-se aos
interesses dos Estados Unidos e de recorrer à violência e ao terror contra o
povo brasileiro. O PCB mudou radicalmente de atitude após a morte de Getúlio e
a divulgação da Carta-Testamento. Na edição de 25 de agosto de 1954, o
jornal comunista Imprensa Popular acusou o “imperialismo
norte-americano” de responsável pela morte de Vargas e o governo de Café Filho
de ser formado “por agentes furiosos dos monopólios de Wall Street”. Em
discurso proferido na Câmara dos Deputados no dia 24, o parlamentar comunista
Roberto Morena afirmou não ser aquele o momento para “salientar as divergências
que tivemos com o extinto presidente da República” e lançou um apelo em prol da
constituição de uma frente única “em defesa da livre organização dos partidos,
com eleições livres e democráticas; em defesa da Constituição contra a
intromissão de generais fascistas que, a serviço da embaixada americana, querem
intervir nos destinos do nosso país”.
O
conteúdo nacionalista da Carta-Testamento foi também imediatamente
incorporado ao programa do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em nota
oficial, emitida em 25 de agosto, a comissão executiva nacional e a bancada
federal do partido deram integral apoio aos “princípios consubstanciados na
última carta do presidente Getúlio Vargas, que são: a) combate aos abusos do
poder econômico; b) defesa do regime de liberdade social; c) luta pela
libertação econômica do povo brasileiro”.
O debate sobre a autenticidade
A
autenticidade da Carta-Testamento foi motivo de viva controvérsia. Os
depoimentos de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, Osvaldo Aranha, José Américo de
Almeida, João Batista Luzardo e de outras pessoas intimamente ligadas a Getúlio
e que com ele viveram a crise política de agosto de 1954 são as únicas fontes
de informação sobre a mensagem do presidente.
Apesar de existirem alguns pontos discordantes nesses
depoimentos, todos são unânimes em atribuir a Getúlio a autoria da carta. Outro
dado fora de discussão é a participação — maior ou menor — na elaboração do
documento do jornalista José Soares Maciel Filho, o redator favorito dos
discursos de Getúlio. Segundo Alzira Vargas, Maciel se teria limitado a inserir
no documento as cifras que o ilustram e a datilografá-lo. Já Miguel Teixeira afirmou
que Osvaldo Aranha tivera um encontro com Maciel, no qual o jornalista
confidenciara que Vargas o havia encarregado da redação final do documento,
tendo-lhe dado um pedaço de papel no qual estaria contida a idéia do manifesto
e as frases finais. De acordo com Teixeira, o restante teria sido iniciativa
exclusiva de Maciel.
Outro elemento obrigatório ao se abordar a Carta-Testamento
é o bilhete encontrado na mesa do gabinete presidencial e entregue a
Alzira Vargas na noite de 18 de agosto. O bilhete, escrito a lápis com a letra
de Vargas, tinha cerca de três linhas e dizia: “À sanha dos meus inimigos deixo
o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter feito pelos humildes tudo o
que desejava.” No dia seguinte, Alzira interpelou o pai sobre o significado
daquelas palavras, mas Vargas assegurou-lhe que não pretendia suicidar-se. Na
realidade, o conteúdo do bilhete foi aproveitado no texto do documento final de
Getúlio.
Além do exemplar encontrado no leito de morte de Vargas, a Carta-Testamento
teve mais três cópias conhecidas. Alzira Vargas achou, entre os papéis
retirados do cofre do pai, uma cópia assinada da carta, com erros de
datilografia e correções, e uma cópia em carbono sem assinatura. Encontrou
também algumas anotações a lápis — que constituiriam a minuta do documento —
com a letra de Getúlio. Existe ainda um último exemplar da carta, que teria
sido entregue por Getúlio a João Goulart pouco antes da reunião ministerial da
madrugada do dia 24. Goulart, que viajaria naquele mesmo dia para o Rio Grande
do Sul e em seguida para Buenos Aires, teria guardado a carta sem lê-la.
Segundo Alzira Vargas, Goulart divulgaria a carta na Argentina, caso a crise
política brasileira tivesse como desfecho um golpe militar.
As
acusações de que a Carta-Testamento era apócrifa seguiram-se
imediatamente à sua publicação. A imprensa antigetulista — amplamente
majoritária — e a UDN trataram de divulgar a versão de que a carta teria sido
elaborada por elementos interessados em explorar politicamente a morte de Vargas
com fins eleitorais. Esses elementos estariam ao mesmo tempo empenhados em
impedir — através do impacto causado pelo documento — a continuação das
investigações contra Vargas iniciadas com o atentado da Toneleros.
Sérgio
Lamarão
FONTES: Cruzeiro
(8/9/54); DULLES, J. Unrest; HENRIQUES, A. Ascensão; Imprensa
Popular (8/54); MACHADO, F. Últimos; Manchete (8/9/54); SILVA, H.
1954; SKIDMORE, T. Brasil.