Correção
Monetária
Introdução:
inflação e indexação
De
uma maneira geral, como freqüentemente comprovado na experiência internacional
(bem espelhada no relato de Emerson (1983) referente a vários países europeus),
a presença de processos inflacionários prolongados tem levado à adoção de
práticas de indexação. Isto é, elevações continuadas de preços, o que se
denomina de inflação e cuja medida é efetuada com base na variação de índices
de preços, que correspondem ao valor monetário de certas cestas de bens e
serviços, costumam provocar o emprego de procedimentos que têm por objetivo a
preservação dos valores reais, ou seja, em termos de poder de compra, das
relações contratuais.
Dois
são os tipos básicos de tais tipos de procedimentos. No primeiro deles, os
contratos passam a ser referenciados em termos de uma moeda estrangeira que
tenha características de estabilidade. Nesta eventualidade, tendo em vista que
a moeda norte-americana passou, já há algum tempo, a ser uma referência quase
que universal, diz-se que a economia fica dolarizada. Exemplo marcante é o
caso da Argentinana década de 1990. Foi exatamente o amplo grau de dolarização
da economia argentina, com a moeda norte-americana sendo inclusive usada como
meio de pagamento, que levou à adoção do chamado Plano Cavallo, de 1991, que,
fundamentado no que se denomina de caixa de conversão, estabeleceu a paridade
fixa de um para um entre o peso e o dólar.
No
segundo tipo, cuja proposição original parece remontar a John Wheatley, em 1808
(apud Simonsen, 1995), e que foi defendida por economistas famosos como
W. Stanley Jevons, em 1875, Alfred Marshall, em 1925, John M. Keynes, em 1927,
Irving Fisher, em 1934 (apud Fischer, 1983) e, mais recentemente, por
Milton Friedman, em 1974, os contratos passam a conter cláusulas que atrelam
seus respectivos valores monetários ao comportamento de índices de preços. Ou
seja, nesta segunda vertente, passamos a ter o que se chama de indexação dos
contratos. O caso brasileiro ilustra, sem dúvida exemplarmente, pois se adotou
aqui o mais generalizado conjunto de regras de indexação de que se tem
notícia. Não é à toa que a sucessão dos chamados planos heterodoxos de
estabilização, que começou com o Cruzado, de 1986, passando pelo Bresser, de
1982, Verão, de 1989, Collor I, de 1990, e Collor II, de 1991, tiveram como um
de seus principais instrumentos a tentativa de desindexar a economia. Mesmo o
Plano Real, de 1994, que em sua primeira fase buscou quebrar a inércia
inflacionária através do artifício da super-indexação representada pela
instituição da URV (unidade real de valor), tratou logo a seguir de estabelecer
a proibição de cláusulas de indexação em contratos com prazos inferiores a um
ano.
A
experiência brasileira
Efetivamente,
a introdução da indexação, de uma maneira oficial, na experiência brasileira
ocorreu no âmbito da legislação tributária. Com a aceleração da inflação,
marcadamente a partir de 1950, ficou patente que se faziam necessários ajustes
na contabilidade das empresas. Assim, preliminarmente, começando com a Lei nº
1.474, de 26 de dezembro de 1951, que autorizou o aumento do capital das
sociedades de qualquer tipo via reavaliação do ativo segundo coeficientes
incluídos no próprio texto legal, seguiu-se a Lei nº 2.862, de 4 de setembro de
1956, que autorizou nova reavaliação dos ativos imobilizados das empresas.
Entretanto,
somente em 27 de novembro de 1958, com a Lei nº 3.470, passou-se a
verdadeiramente adotar a indexação. Segundo aquele diploma legal, que se
afigura como origem da expressão correção monetária, foi autorizada a correção
do registro contábil do valor original dos bens do ativo imobilizado, segundo
coeficientes que, publicados a cada dois anos pelo Conselho Nacional de
Economia (instituição que foi extinta em 1967), refletissem as variações no
poder aquisitivo da moeda nacional. Pouco mais tarde, em resposta à nova
aceleração da inflação observada a partir de 1961, a Lei nº 4.262, determinando
a apuração a cada ano dos coeficientes de correção pelo Conselho Nacional de
Economia, tornou anual a chamada correção monetária dos balanços das empresas.
A
instauração do regime militar, em 1964, difundiu, de uma maneira generalizada,
o instituto da indexação; que ficou popularizado com a denominação correção
monetária. Como uma das primeiras medidas naquela direção, promulgou-se, em 17
de julho de 1964, a Lei nº 4.357, que estabeleceu os princípios básicos da
correção dos débitos fiscais, o conceito de lucro imobiliário real (medido pela
diferença entre o preço de venda e o preço de aquisição monetariamente
corrigido) e o conceito de manutenção do capital de giro (segundo o qual o
capital de giro próprio no início do exercício era indexado à inflação
observada no ano).
Além
da indexação no âmbito da legislação tributária, que sofreu ainda várias
alterações, houve o aparecimento de diversas unidades de conta específicas.
Assim foram criados a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN), em
1964, pela Lei nº 4.357, inicialmente com reajustes trimestrais e que foi
substituída pela Obrigação do Tesouro Nacional (OTN), instituída pelo
Decreto-Lei nº 2.284 de 10 de março de 1986, que consubstanciou o chamado Plano
Cruzado, especificando ajustes mensais de acordo com a variação do Índice de
Preços ao Consumidor (IPC); a OTN fiscal, com reajustes diários; o Bônus do
Tesouro Nacional (BTN), sucessor da OTN e criado pela Lei nº 7.777 de 19 de
junho de 1989, ainda no bojo do que se chamou de Plano Verão, bem como o BTN
fiscal; a Unidade Fiscal de Referência (Ufir), criada pela Lei nº 8.383 de 30 de
dezembro de 1991; tendo havido ainda, com curta duração, a Unidade de
Referência de Preços (URP), estabelecida no âmbito do Plano Bresser, segundo o
Decreto-Lei nº 2.335, de 12 de junho de 1987 , e a Unidade Real de Valor (URV),
introduzida, em 1º de março de 1994, através de medida provisória que se
converteu na Lei nº 8.880, de 27 de maio de 1994, e que se constituiu no
superindexador do Plano Real. Deve-se ressaltar seu emprego no Sistema
Financeiro de Habitação, que será objeto da próxima seção, nos contratos de
prestação de serviços e nos aluguéis (usualmente atrelados às unidades de conta
acima citadas), e no caso da política salarial. Adicionalmente, no que se
refere à taxa de câmbio, também fez-se uso de mecanismo de indexação.
Especificamente, segundo o chamado sistema de minidesvalorizações cambiais,
posto em prática a partir de agosto de 1968 e que se prolongou, com exceção das
maxidesvalorizações de 1979 e de 1983, até o Plano Cruzado, o valor do dólar
norte-americano era ajustado em intervalos de tempo relativamente pequenos e
levando em conta a diferença entre a inflação doméstica e a verificada nos
Estados Unidos.
No
que concerne à política salarial, passou-se a adotar uma sistemática de
reajuste anual a partir de 1964. Entretanto, no seu início, e sendo um dos
principais ingredientes do chamado Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg),
em vez de se indexar os salários ao comportamento da inflação efetivamente
observada, adotou-se o expediente de indexá-los a uma previsão da inflação.
Obviamente, tendo sido um dos objetivos governamentais a redução da inflação,
as previsões costumavam ser demasiadamente otimistas. Da conseqüente
subestimação do comportamento da inflação, resultou substancial queda no poder
de compra dos salários; mormente no do salário-mínimo, o que foi cognominado de
política de arrocho salarial.
Com
a Lei nº 6.147, de 29 de dezembro de 1974, procurou-se compensar, a cada
reajuste, o erro da estimativa da inflação ocorrida no reajuste anterior. Com
isto, passou-se a ter, efetivamente, embora ainda atenuada, uma indexação
salarial. Mais tarde, já no governo Figueiredo, através da Lei nº 6.708, de 30
de outubro de 1979, os salários passaram a ser reajustados semestralmente, de
acordo com a variação observada do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), e de
acordo com uma escala surrealista. Assim é que, até três vezes o valor do
maior salário-mínimo, tinha-se um acréscimo adicional de 10%; na faixa de três
a dez salários-mínimos, o reajuste era integral; e para salários acima de dez
salários-mínimos, a parte excedente recebia um redutor de 20% do índice de
reajuste. Se adotada ao pé da letra e se houvesse sido mantida, tal esdrúxula
sistemática faria com que todos os salários convergissem para 11,5
salários-mínimos. (cf. Baumgarten (1981)).
No
período que antecedeu o Plano Cruzado, tivemos oito diferentes versões de
normas de indexação dos salários; sendo que o Plano Cruzado chegou a instituir
o chamado gatilho salarial, segundo o qual os salários seriam automaticamente
reajustados toda vez que a inflação acumulada alcançasse 20%. Ademais, a cada
plano heterodoxo que se sucedeu, experimentaram-se distintas fórmulas de
reajustes salariais.
O
Sistema Financeiro de Habitação
Indubitavelmente,
devido à sua abrangência e seu impacto sobre ponderáveis parcelas da população,
a prática de indexação que mais ficou disseminada foi a relativa ao chamado
Sistema Financeiro de Habitação (SFH), cujo órgão gestor, o Banco Nacional de
Habilitação (BNH), chegou a ter sua sigla popularizada como sinônimo de
conjuntos habitacionais proletários.
Através
da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, foi criado, juntamente com o
instituto do que se denominou de correção monetária dos contratos imobiliários,
o Banco Nacional de Habitação. Coube ao BNH as tarefas de orientar, disciplinar
e controlar o SFH, com o objetivo básico de promover a construção e aquisição
da casa própria, especialmente para as classes de menor renda.
Fundamentalmente, tanto as operações passivas (de captação de recursos) e como
as ativas (financiamentos habitacionais), eram realizadas por intermédio dos
chamados agentes financeiros do SFH, dos quais os mais importantes eram as
Caixas Econômicas e as Sociedades de Crédito Imobiliário.
Majoritariamente,
as operações passivas eram efetuadas através de depósitos populares nas
cadernetas de poupança. A princípio, esses depósitos recebiam créditos de juros
calculados à taxa de 6% ao ano, que incidiam trimestralmente sobre os saldos
monetariamente corrigidos de acordo com a variação do valor nominal das ORTNs,
no início de cada trimestre civil. Posteriormente, com o recrudescimento
inflacionário observado a partir de 1980, a correção monetária e o crédito de
juros passaram a ser de periodicidade mensal, sendo a taxa de juros fixada em 0,5%
ao mês (o que corresponde a cerca de 6,17% ao ano).
Embora
extremamente popular, tendo sido um importante instrumento para que voltasse a
ser disseminado o ato de poupar, a aplicação em cadernetas de poupança foi,
efetivamente, um péssimo negócio para os poupadores. Isto porque, fruto de
deliberadas políticas governamentais, a evolução do valor nominal das ORTNs não
refletiu integralmente o comportamento da inflação.
Assim
é que, tomando por base o Índice Geral de Preços (IGP) da Fundação Getulio
Vargas, e lançando mão dos vários índices que foram utilizados para efetuar a
correção monetária em cadernetas de poupança a partir da extinção das ORTNs em
1986, um depósito que houvesse sido efetuado em outubro de 1964, não sendo
computados os juros, teria seu valor real reduzido a cerca de somente 10% de
seu valor original, em novembro de 1991 (cf. Barbosa, 1993).
Do
lado das operações ativas, os empréstimos habitacionais, como o indexador era o
mesmo – sendo que, para fins do SFH, era utilizada a chamada Unidade Padrão de
Capital (UPC), cujo valor era igual ao de uma ORTN no início de cada trimestre
civil – é óbvio que, em contrapartida, os mutuários acabaram sendo
beneficiados, em termos reais. Entretanto, como os reajustes dos saldos
devedores eram, a princípio, sempre trimestrais, com as prestações sendo
corrigidas segundo duas distintas sistemáticas, conforme o tipo de plano, os
resultados eram diferentes.
No
chamado Plano A, originariamente destinado a habitações populares (definidas
como de valor não superior a 75 vezes o maior salário-mínimo então vigente), as
prestações eram corrigidas anualmente, e de acordo com a variação do valor do
salário-mínimo. Caracterizando o que se denomina de plano financeiramente
inconsistente (cf. de Faro -1992), acoplado com a política de arrocho salarial,
tal tipo de plano fazia com que o débito, expresso em termos de UPC, não se
extinguisse no fim do prazo contratual. Isto sendo verificado, ocorreria uma
prorrogação do prazo, limitado a 50%, no fim da qual o débito porventura
remanescente seria absorvido pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais
(FCVS), criado em 1967.
Já
segundo o Plano B, financeiramente consistente, saldos devedores e prestações
eram monetariamente corrigidos na mesma data e segundo os mesmos índices. Tal
fato, dado que a maioria dos mutuários só tinha reajustes salariais com
periodicidade anual, acabou provocando a criação do Plano C, inicialmente para
habitações com valor até 500 salários-mínimos, com as prestações sendo
anualmente reajustadas segundo o valor do salário-mínimo, sempre um mês após o
do reajuste do salário da classe a que pertencesse o mutuário.
Como
os Planos A e C implicavam a possibilidade de prorrogação do prazo contratual,
gerou-se uma grande crise que provocou, em novembro de 1969, a criação do que
se denominou de Plano de Equivalência Salarial (PES). Segundo este plano,
mantida a periodicidade trimestral de reajuste do saldo devedor e a
periodicidade anual do reajuste das prestações, o prazo contratual não mais era
prorrogável. Qualquer débito residual seria absorvido pelo FCVS. Para tanto,
a título de prêmio por tal tipo de seguro, contribuía-se com o valor de uma
prestação e as prestações ficavam sujeitas à aposição de um equalizador,
atuarialmente calculado, denominado de Coeficiente de Equiparação Salarial
(CES).
A
política de compressão salarial, combinada com o recrudescimento inflacionário
da década de 1980 e o populismo observado no governo Figueiredo, quando várias
benesses foram concedidas aos mutuários, levaram ao descrédito do BNH, que foi
extinto em 1986, com suas atribuições absorvidas pela Caixa Econômica Federal,
e ao formidável (da ordem de muitos bilhões de reais) rombo nas contas do FCVS.
Clovis
Faro
FONTES:
BABOSA, F. Indexação; BAUMGARTEN JR., A. Aritmética; EMERSON, M. View;
FARO, C. Vinte; FISCHER, S. Welfare; FRIEDMAN, M. Monetary;
SIMONSEN, M. 30 anos.