CRUZADA
DEMOCRÁTICA
Movimento
organizado em março de 1952 com o objetivo de concorrer às eleições para a
presidência do Clube Militar, marcadas para maio daquele ano. Constituído por
oficiais da ala conservadora das forças armadas, dirigiu o clube de 1952 a 1956, retomando ao poder em 1962.
Antecedentes
As conferências pronunciadas no Clube Militar nos anos de
1947 e 1948 pelos generais Júlio Caetano Horta Barbosa e Juarez Távora, o
primeiro defendendo o monopólio estatal do petróleo e o segundo a participação
nesse ramo da indústria da iniciativa privada, incluindo capitais estrangeiros,
delinearam duas correntes distintas dentro das forças armadas, correntes essas
que passaram a disputar a diretoria do clube.
Nas eleições de 21 de maio de 1950, o setor que lutava pelo
monopólio estatal do petróleo — a chamada ala nacionalista —, liderada pelos
generais Newton Estillac Leal e Horta Barbosa, derrotou o grupo contrário,
encabeçado pelos generais Osvaldo Cordeiro de Farias e Emílio Ribas Júnior.
A continuidade dos debates em torno da questão do petróleo,
agora já com a participação ostensiva do Clube Militar, atraiu para a gestão de
Estillac a hostilidade dos partidários da entrega da indústria petrolífera à
iniciativa privada, que se mostravam alarmados com a extensão dos compromissos
políticos que o clube vinha assumindo.
Além da questão do petróleo, a posição da instituição em
relação à Guerra da Coréia, expressa através de uma série de artigos publicados
na Revista do Clube Militar contrários à intervenção norte-americana e a
um eventual envolvimento brasileiro no conflito, desagradava profundamente aos
militares reunidos em torno de Cordeiro de Farias, Juarez Távora e outros
generais identificados com a liderança dos Estados Unidos. Esse grupo acusava a
diretoria do clube de seguir uma orientação política que afetava as obrigações
internacionais do Brasil, colocando em xeque a normalidade das relações do país
com as diretrizes do sistema interamericano.
Um vasto movimento de combate a Estillac, inspirado pelos
principais comandos de tropas do país, passou então a ser articulado junto à
oficialidade, tendo por objetivo a convocação de uma assembléia geral dos
associados do Clube Militar, visando desautorizar as posições políticas da
diretoria. O presidente Getúlio Vargas proibiu a realização da assembléia, o
que levou os militares contrários ao grupo de Estillac a concentrar seus
esforços nas eleições para a direção do Clube Militar em maio de 1952.
Atuação
Esboçada
no final de 1951, a Cruzada Democrática foi fundada em março de 1952. Em manifesto
assinado entre outros pelos tenentes-coronéis Sizeno Sarmento e João Bina
Machado, pelos majores Ovídio Neiva e Edson Figueiredo e pelo capitão Mário
Andreazza, a organização defendia a total suspensão das “atividades que afetem
a ordem e a segurança internas,” bem como das “atividades que possam ser
exploradas num sentido político-partidário” no interior do Clube Militar.
Graças a essa medida, o clube seria afastado “das influências totalitárias da
direita ou da esquerda”. O documento afirmava também que a Cruzada atuaria “sob
a bandeira do nacionalismo sadio” que, entretanto, não poderia “ocultar outras
bandeiras, repudiadas por nosso patriotismo e nossa índole democrática”.
Para a Cruzada Democrática, os oficiais nacionalistas eram
colaboradores, conscientes ou inconscientes, da infiltração comunista nas
forças armadas. Segundo Thomas Skidmore, o antigetulismo da maior parte dos
líderes da Cruzada pode ser explicado pelo fato de esses militares julgarem o
presidente Vargas excessivamente identificado com a ala nacionalista.
Coerentemente com sua orientação mais geral, a Cruzada era favorável, em
política externa, a uma estreita colaboração militar e econômica do país com os
EUA, visando à defesa do hemisfério ocidental.
O manifesto da Cruzada lançou as candidaturas dos generais
Alcides Etchegoyen, comandante da Artilharia da Costa e chefe de polícia do
Distrito Federal durante o Estado Novo, e Nélson de Melo à presidência e à
vice-presidência do Clube Militar, concorrendo contra a chapa Estillac Leal-Horta
Barbosa, que tentava a reeleição.
As eleições foram vencidas pela Cruzada Democrática por 8.288
votos contra 4.489, da chapa nacionalista. O pleito foi acusado de irregular
pelos adeptos de Estillac e Horta Barbosa, que denunciaram a ocorrência de violências
e arbitrariedades contra os cabos eleitorais nacionalistas.
Os
principais órgãos da imprensa brasileira, como O Globo, O Estado de
S. Paulo, os Diários Associados — grandes defensores da entrada de capitais
estrangeiros no país deram completa cobertura às atividades eleitorais da
Cruzada, ao mesmo tempo que promoveram cerrada campanha contra a corrente
nacionalista. Além disso, aderiram publicamente à Cruzada Democrática oficiais
de grande prestígio como o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato derrotado da
União Democrática Nacional (UDN) nas eleições para a presidência da República
de 1950, os generais Pedro Aurélio de Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior das
Forças Armadas (EMFA), Juarez Távora, Euclides Zenóbio da Costa, João Batista
Mascarenhas de Morais, comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB),
Ângelo Mendes de Morais, Álvaro Fiúza de Castro, Canrobert Pereira da Costa,
Cordeiro de Farias e outros. Parte considerável dessa elite militar pertencia
aos quadros de direção da Escola Superior de Guerra (ESG), instituição criada
em 1949 sob inspiração norte-americana e responsável pela elaboração da
doutrina de segurança nacional.
Sob
o controle da Cruzada, o Clube Militar abandonou o seu tradicional
comprometimento com a tese do monopólio estatal do petróleo, apesar de, antes
de eleito, Etchegoyen ter afirmado que as eleições não seriam “um plebiscito
sobre a questão do petróleo porque as facções divergentes eram nacionalistas e
adotavam pontos de vista idênticos na defesa do patrimônio e da soberania
nacional”.
A
atuação da Cruzada Democrática, contudo, não se limitou ao Clube Militar.
Principal elemento aglutinador da oposição ao presidente Vargas dentro das
forças armadas, o movimento tomou parte ativa na ofensiva antigetulista
desencadeada em 1954. Em fevereiro, um grupo de coronéis e tenentes-coronéis
ligados à Cruzada, entre os quais Sizeno Sarmento, Jurandir Bizarria Mamede,
Amauri Kruel, Golberi do Couto e Silva e Ednardo d’Ávila Melo, encaminhou um
documento ao ministro da Guerra, Ciro do Espírito Santo Cardoso, pregando o
“saneamento no seio das forças armadas” e o respeito à hierarquia e à
disciplina e denunciando, além disso, o perigo da penetração comunista nos
meios militares. O documento — conhecido como Manifesto dos coronéis — teve
grande repercussão e influiu decisivamente na queda tanto do ministro da Guerra
como do ministro do Trabalho, João Goulart.
Em
maio de 1954, realizaram-se as eleições para a presidência do Clube Militar
para o biênio 1954-1956. Profundamente enfraquecida, a corrente nacionalista
não concorreu ao pleito. Por sua vez, a Cruzada Democrática apresentou-se
cindida: de um lado, os partidários dos generais Canrobert Pereira e Juarez
Távora, que, junto com a oposição civil estruturada em torno da UDN, articulavam
a derrubada de Vargas, e, do outro, os seguidores de Zenóbio da Costa, homem de
confiança do presidente e ministro da Guerra desde o afastamento de Espírito
Santo Cardoso. Os antivarguistas, majoritários dentro da Cruzada, derrotaram
amplamente a corrente de Zenóbio, encabeçada pelo general Lamartine Peixoto
Pais Leme.
A
escalada contra Vargas ganhou novo ímpeto em agosto de 1954, devido ao atentado
da Toneleros, no qual foi assassinado o major da Aeronáutica Rubens Vaz e saiu
ferido o jornalista Carlos Lacerda, ligado à UDN. O envolvimento de membros da
guarda presidencial no episódio enfraqueceu ainda mais a precária situação de
Getúlio perante os militares. A Cruzada Democrática esteve à frente da ampla
movimentação militar que se seguiu ao atentado e que tinha por objetivo a
renúncia do presidente. A crise teve um desfecho dramático com o suicídio de
Getúlio, no dia 24 de agosto.
No governo de João Café Filho, vice-presidente de Vargas, os
principais cargos públicos na área civil foram preenchidos por políticos da UDN
ou elementos a ela ligados. Na área militar, a Cruzada Democrática foi a grande
beneficiária. Dois dos seus nomes mais destacados, o brigadeiro Eduardo Gomes e
o general Juarez Távora, ocuparam respectivamente o Ministério da Aeronáutica e
a chefia da Casa Militar da Presidência da República. No entanto, o estratégico
Ministério da Guerra foi entregue a Henrique Lott, um general não comprometido
com as tendências em choque no interior das forças armadas.
No ano de 1955, a Cruzada, aliada à UDN e às demais forças
que participaram da derrubada de Vargas, opôs-se às candidaturas de Juscelino
Kubitschek e João Goulart às eleições presidenciais de outubro, acusando o
primeiro de corrupção e o segundo de manter estreitas ligações com o movimento
sindical. A vitória de Juscelino e Goulart provocou imediata reação dos seus
adversários, que passaram a advogar abertamente a necessidade de impedir,
inclusive por meios extralegais, a posse dos eleitos.
Após a morte do general Canrobert Pereira em outubro de 1955,
o Clube Militar foi presidido por uma chapa-tampão igualmente ligada à Cruzada
Democrática e articulada pelo coronel Bizarria Mamede. Tendo à frente o general
da reserva Pedro Leonardo de Campos, a nova equipe completou o mandato da
diretoria eleita em maio de 1954.
Em 11 de novembro de 1955, eclodiu um movimento militar
liderado pelo general Henrique Lott com o objetivo de deter uma conspiração em
preparo no próprio governo então chefiado pelo presidente interino Carlos Luz,
devido ao impedimento de Café Filho por motivo de saúde, e de garantir a posse
de Juscelino e Goulart. O êxito do movimento determinou um virtual esvaziamento
do poder de que a Cruzada desfrutara até aquele momento na área militar. Os
ministérios militares do governo de Nereu Ramos, substituto de Carlos Luz,
foram entregues a oficiais comprometidos com o movimento do 11 de Novembro, e
conseqüentemente favoráveis à posse dos candidatos eleitos, concretizada em 31
de janeiro de 1956.
Em maio de 1956, refletindo a nova situação reinante nas
forças armadas, o general João de Segadas Viana, apoiado por Lott, ministro da
Guerra de Kubitschek, venceu por pequena margem o candidato da Cruzada
Democrática, general Nicanor Guimarães de Sousa. A Cruzada voltou a ser
derrotada em 1958, quando sua chapa, encabeçada pelo general Humberto de
Alencar Castelo Branco, foi batida pelos generais Joaquim Justino Alves Bastos
e Oramar Osório. Em 1960, a Cruzada lançou a candidatura do general Peri
Bevilacqua, superado por Justino e Osório, que conseguiram se reeleger.
Ao
vencer as eleições de 1962, já no governo de João Goulart, a Cruzada
Democrática voltou à presidência do Clube Militar. Seu candidato, o general
Augusto da Cunha Magessi Pereira, ex-integrante do grupo do 11 de Novembro,
derrotou o candidato da situação, general Peri Bevilacqua, que se
incompatibilizara com a Cruzada. Os resultados foram contestados por ambas as
partes, mas as juntas apuradoras confirmaram a vitória de Magessi.
A Cruzada Democrática deu total apoio ao movimento de 31 de
março de 1964, e muitos dos seus membros ocuparam postos-chave nos governos
militares que se sucederam após a derrubada de Goulart.
Sérgio
Lamarão
FONTES: BANDEIRA,
M. Presença; SKIDMORE, T. Brasil; SODRÉ, N. História militar;
SODRÉ, N. Memórias.