ESQUERDA
DEMOCRÁTICA
Denominação assumida por um grupo de intelectuais e
políticos, de tendências predominantemente socialistas, que se reuniram nos
primeiros meses de 1945 para consolidar num só movimento a oposição comum ao
Estado Novo e a Getúlio Vargas. A curto prazo seu objetivo consistia na
articulação das diversas “frentes de resistência” que vinham atuando na
clandestinidade — sobretudo nos meios estudantis e intelectuais do eixo Rio-São
Paulo — desde o início da década de 1940. A prazo mais longo, seu objetivo era a organização de um partido político que expressasse, em fórmula nova, os
ideais do socialismo conjugados com a prática da democracia, “na mais ampla
liberdade”. A Esquerda Democrática surgiu publicamente a 12 de junho de 1945,
ao apresentar uma moção de apoio à candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à
presidência da República, e seu primeiro manifesto foi publicado a 25 de agosto
do mesmo ano. Em agosto de 1946 reuniu-se a primeira convenção, nacional
da Esquerda Democrática, que se transformou em partido político, mantendo, no
entanto, a mesma denominação (houve uma proposta no sentido de mudar-se o nome
para Partido Socialista Brasileiro, não aprovada pela maioria). Um ano depois,
a 25 de agosto de 1947, em sua segunda convenção nacional, a Esquerda
Democrática passou a se denominar Partido Socialista Brasileiro (PSB), tendo
incorporado os poucos membros do antigo PSB, que existira no país entre 1932 e
1937, porém com reduzida expressão.
A Esquerda Democrática e a União Democrática Nacional
Um dos aspectos mais importantes da história da Esquerda Democrática
refere-se ao seu envolvimento com a União Democrática Nacional (UDN), que tem
sido objeto de equívocos invariavelmente repetidos por analistas da conjuntura
brasileira de 1945. O equívoco principal consiste em apresentar a Esquerda
Democrática como uma ala dissidente da UDN, em cujo interior ela se teria
formado, afastando-se depois para transformar-se no PSB. Na verdade, a Esquerda
Democrática não poderia ser considerada uma “dissidência”, pois jamais integrou
a UDN, nem enquanto grupo (1945), nem enquanto partido (1946). A confusão, que
altera de maneira crucial a compreensão do que foi a Esquerda Democrática, pode
ser entendida por dois motivos: 1) a Esquerda Democrática efetivamente aliou-se
à UDN, em termos de coligação eleitoral, nas eleições de dezembro de 1945 para
a Assembléia Nacional Constituinte, tendo apresentado candidatos sob a sigla
UDN-ED; 2) ilustres membros da Esquerda Democrática, como Hermes Lima, Domingos
Velasco, Osório Borba, Jurandir Pires Ferreira e João Mangabeira, participaram
efetivamente da criação da UDN (seus nomes constam da ata de fundação do
partido), que precedeu, em pouco mais de um mês (7/4/1945), à formação da
Esquerda Democrática. Esses nomes, portanto, podem ser considerados dissidentes
da UDN, mas não a Esquerda Democrática enquanto grupo.
A aliança da Esquerda Democrática com a UDN justificava-se
pelo objetivo político comum, ou seja, a luta incondicional contra a ditadura
estadonovista e o compromisso eleitoral de apoio ao brigadeiro, considerado o
nome que melhor correspondia aos anseios populares de democratização. Além
desta causa maior, ambas tinham interesse nessa aliança em “termos
quantitativos”, pois a nova Lei Eleitoral, de 28 de maio de 1945, exigia, para
registro de partidos nacionais, o mínimo de dez mil assinaturas de eleitores em
pelo menos cinco estados. A Esquerda Democrática tinha reduzida capacidade de
mobilização eleitoral e entrou em acordo com a UDN, que lhe cedeu alguns
lugares nas chapas de deputados para a Constituinte, especialmente no Rio de
Janeiro e em São Paulo. A UDN, por seu lado, também tinha interesse na aliança,
pois a Esquerda Democrática contava com a adesão de intelectuais e políticos de
prestígio, muitos dos quais já haviam assumido uma posição de relevância por
ocasião do I Congresso Brasileiro de Escritores (janeiro de 1945) ou através de
associações como a Associação Brasileira de Escritores e a União dos
Trabalhadores Intelectuais, que defendiam, prioritariamente, a concessão de
anistia política ampla e irrestrita. Para a UDN, sobretudo na especial
conjuntura da democratização, era interessante contar com o apoio desses
setores de esquerda, o que contribuía para dissolver a aura conservadora que
marcava o partido. Nesse sentido, é significativo o apelo feito em abril de
1946 por Virgílio de Melo Franco, então secretário-geral da UDN, para que “os
brilhantes companheiros” da Esquerda Democrática não se afastassem do partido,
“mantendo-se intacta a frente antifascista de 1945”.
O programa da Esquerda Democrática
De
acordo com o programa mínimo, exposto no manifesto, a denominação Esquerda
Democrática tinha sua razão de ser: esquerda, porque o grupo sustentava a
função social da propriedade e defendia uma gradual e progressiva socialização
dos meios de produção, e democrática porque advogava os princípios do regime
representativo, de origem popular, com voto direto e secreto, assim como as
liberdades básicas de manifestação de pensamento, de associação e reunião, de
cátedra, crença e culto, além de defender intransigentemente a autonomia
sindical e o direito de greve. Tratava-se, enfim, de “conciliar o processo das
transformações sociais com as exigências da mais ampla liberdade civil e
política”.
Quanto à política social, o programa da Esquerda Democrática
insistia na necessidade de mudanças na estrutura agrária e na melhoria “das
condições de vida das classes médias e pobres”, na proteção aos pequenos
comerciantes e agricultores e na supressão de impostos aos gêneros de primeira
necessidade. As propostas de política salarial eram nitidamente progressistas
em relação à política oficial, pois pregavam não apenas o salário mínimo para o
trabalhador, mas o “salário mínimo justo, capaz de assegurar ao trabalhador a sua
manutenção e de sua família e a educação de seus filhos”.
Havia,
portanto, pontos de aproximação e pontos de divergência em relação às propostas
udenistas. No que se refere à defesa das liberdades democráticas, a Esquerda
Democrática se identificava com o programa da UDN (nessa época os udenistas
também defendiam, por exemplo, a autonomia sindical e o direito de greve); mas,
pelo lado da política econômica e propostas a longo prazo, a Esquerda
Democrática apresentava uma distinção fundamental, que se revelaria crucial
para seu afastamento e sua conseqüente identificação com um partido socialista.
A Esquerda Democrática, ao contrário da UDN, insistia na transformação do
regime capitalista de produção e no ideal de uma sociedade sem classes. Em
relação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), então na legalidade e revigorado
pela recente anistia concedida a Luís Carlos Prestes, ao mesmo tempo que
reconhecia algumas afinidades, contando, inclusive, com a adesão de
simpatizantes marxistas, a Esquerda Democrática dele se distanciava pelo
repúdio ao stalinismo e pela oposição à linha oficial da Comissão Nacional de
Organização Provisória (CNOP), que passaria a defender uma aproximação com
Getúlio Vargas (“Constituinte com Getúlio”).
Os membros da Esquerda Democrática
O
manifesto de agosto de 1945 foi assinado pelos seguintes membros da comissão
nacional provisória da Esquerda Democrática: João Mangabeira, Herculino
Cascardo, Domingos Velasco, Alceu Marinho Rego, Edgardo de Castro Rebelo,
Hermes Lima, Filipe Moreira Lima, Eliezer Magalhães, Elpídio Pessanha, Válter
Peixoto, Rubem Braga, José Honório Rodrigues, Homero Pires, João Pedreira
Filho, Celso Figueiredo, Osório Borba, Juraci Magalhães, Arnon de Melo, Antônio
de Pádua Chagas Freitas, José Silveira, Mário Monteiro, José Luís de Araújo,
Guilherme Figueiredo, Fábio Oliveira, Evandro Lins e Silva, Jurandir Pires
Ferreira, Paulo Emílio Sales Gomes, Francisco Martins de Almeida, Amarílio
Vieira Cortez, Emil Farhat, Alberto Pádua de Araújo, Luís Lins de Barros,
Antero de Almeida, José Lins do Rego, Jáder de Carvalho, Antônio José
Schueller, Juvêncio Campos, Sílvio Maia Ferreira, Rui Barbosa de Melo, Raimundo
Magalhães Júnior, Vítor Santos, Carlos Amoreti Osório, Carlos Castilho Cabral,
Carlos Pontes, Sérgio Buarque de Holanda, José da Costa Paranhos, Pergentino
Alves, Wagner Estelita Campos, Hélio Pires Ferreira e Godofredo Moretzohn. Pela
comissão estadual provisória de São Paulo assinaram Abdon Prado Lima, Antônio
Cândido de Melo e Sousa, Cori Porto Fernandes, Gastão Massari, Germinal Feijó,
J. G. Moreira Porto, Jacinto Carvalho Leal, Marcelino Serrano, Paulo Zingg,
Sérgio Milliet e Wilson Rahal.
A classificação dos membros da Esquerda Democrática
apresentada a seguir deve ser entendida como uma indicação de tendências mais
evidentes, e não como uma listagem exaustiva e rígida. Feita esta ressalva,
acentue-se que o critério classificatório obedeceu a três categorias mais
amplas, decorrentes do ponto de referência principal para identificar cada
grupo: a coesão ideológica, as raízes histórico-políticas e a vinculação
regional.
No primeiro grupo podem situar-se: os socialistas
democráticos, como Hermes Lima, Homero Pires, João Mangabeira, Nestor Duarte e
Osório Borba; os socialistas de cunho marxista, mais radicais e independentes,
que queriam que a Esquerda Democrática fosse uma “fórmula nova” do socialismo
democrático, entre os quais figuravam os integrantes da União Democrática
Socialista (UDS) de São Paulo, como Antônio Cândido de Melo e Sousa, Antônio
Costa Correia, Aziz Simão, Febus Gikovate, Paulo Emílio Sales Gomes e Renato
Sampaio Coelho, e ainda Arnaldo Pedroso d’Horta, que não pertencera à UDS, e os
simpatizantes comunistas, como Edgardo de Castro Rebelo e Emil Farhat.
No segundo grupo encontramos: os elementos de tradição
tenentista, como Carlos Amoreti Osório, Domingos Velasco, Juraci Magalhães e
Herculino Cascardo, e os liberais dos antigos Partido Democrático e Partido
Constitucionalista de São Paulo, que se situavam politicamente “mais à
esquerda” da UDN, como Paulo Duarte e Saldanha da Gama.
No
terceiro grupo reconhecemos: os intelectuais mineiros — escritores e
jornalistas, sobretudo que publicavam o semanário Liberdade, como José
Maria Rabelo, Bernardino Franzen de Lima, Hélio Pelegrino e Marco Aurélio Moura
Matos; os militantes do movimento estudantil paulista contra a ditatura, em
aliança com os liberais, mas que, por suas tendências esquerdistas, optaram
para ingressar na Esquerda Democrática ao invés da UDN, como Germinal Feijó,
Porto Fernandes e Wilson Rahal; os pernambucanos, como Antônio França, Antônio
Bezerra Baltar, Francisco Julião, Gláucio Veiga, José Pinto Ferreira e
Pelópidas Silveira e os intelectuais já consagrados no movimento
lítero-potítico do Rio de Janeiro, “esquerdistas liberais” como José Honório
Rodrigues, José Lins do Rego, Rubem Braga, Guilherme de Figueiredo, Raimundo
Magalhães Júnior e Sérgio Buarque de Holanda.
Os principais líderes nacionais da esquerda Democrática foram
João Mangabeira, futuro presidente do PSB, Hermes Lima, socialista, que
ingressaria mais tarde no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e Domingos
Velasco, que a princípio pertenceu à UDN, tendo fundado o partido em Goiás.
Participação nas eleições
Nas
eleições de dezembro de 1945, militantes da Esquerda Democrática participaram
ativamente da campanha do brigadeiro Eduardo Gomes, principalmente no Rio de
Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. Nas eleições para a Assembléia
Constituinte, única das quais participou enquanto grupo, em chapa conjunta com
os udenistas (sigla UDN-ED), a Esquerda Democrática elegeu dois deputados,
ambos pelo então Distrito Federal: Hermes Lima, que teria atuação destacada nas
comissões da Constituinte, e Jurandir Pires Ferreira.
Nas eleições seguintes, de janeiro de 1947, a Esquerda Democrática já se organizara como partido político autônomo e lançou vários
candidatos. No Distrito Federal apresentaram-se às eleições para a Câmara dos
Vereadores 45 candidatos, todos profissionais liberais: jornalistas, como Alceu
Marinho Rego, Joel Silveira, Osório Borba e Pompeu de Sousa; professores, como
Alice Flexa Ribeiro e Bayard Boiteux; advogados, como Clóvis Ramalhete, Emil
Farhat, Hariberto Miranda Jordão e Vitorino James, e médicos como Benjamim
Albagli e Gastão Cruls. Conseguiu eleger-se o jornalista Osório Borba, que nas
eleições seguintes se reelegeria já na legenda do PSB.
Maria
Vitória Benevides
colaboração especial
FONTES: CARONE, E. Terceira;
FRANCO, V. Campanha; GOMES, P. Entrevista; LIMA, M. Travessia.