ESTATUTO
DO TRABALHADOR RURAL
Denominação
dada à Lei nº 4.214, promulgada em 2 de março de 1963 e publicada no Diário
Oficial no dia 18 do mesmo mês. O estatuto significou a extensão da
legislação social ao trabalhador rural, fornecendo as bases para a organização
sindical do campo brasileiro.
Antecedentes
A primeira lei relativa à organização do trabalho no meio
rural foi o Decreto nº 979, de 6 de janeiro de 1903, sancionado pelo Congresso,
estabelecendo as normas para a criação de sindicatos agrícolas mistos que
englobariam empregados e empregadores. Esse decreto do Legislativo foi aprovado
pelo Decreto nº 6.532, de 20 de junho de 1907, assinado pelo presidente Afonso
Pena, o qual estipulava que os sindicatos agrícolas poderiam organizar-se sem a
autorização do governo. Nenhum dos dois decretos, porém, recebeu seguimento
prático,
Ao contrário dos trabalhadores na indústria e no comércio,
que logo após o triunfo da Revolução de 1930 passaram a ser objeto de abundante
legislação trabalhista e previdenciária, só na década de 1940 os trabalhadores
da agricultura começaram a ser contemplados — ainda que formalmente — com as
primeiras leis de cunho social.
Em 1941, o governo do presidente Getúlio Vargas promulgou o
Estatuto da Lavoura Canavieira, que, entre outros pontos, pretendia garantir
moradia e assistência médica aos que trabalhavam nas grandes usinas e conferir
um certo apoio legal aos pequenos produtores diante dos usineiros. Na prática,
contudo, as medidas sociais contidas no estatuto não foram levadas a efeito.
Em
1944, o Ministério do Trabalho, através do Decreto-Lei nº 7.038, estabeleceu a
sindicalização rural no Brasil. O decreto dispunha sobre a organização de
sindicatos de trabalhadores e de patrões, seguindo uma estruturação vertical
conforme o modelo já existente na indústria e no comércio: um mínimo de cinco
sindicatos formava uma federação, ao passo que bastavam três federações para
compor uma confederação, órgão sindical de grau superior. Apesar de aprovado, o
Decreto nº 7.038 jamais foi regulamentado devido à pressão dos patrões, não
chegando portanto a entrar em vigor.
Foi
a partir de 1951, com o retorno de Vargas à presidência da República, que a
questão da extensão das leis sociais ao campo — juntamente com a discussão
sobre a reforma agrária — ganhou maior relevo. Com efeito, durante seu governo,
Vargas acenou aos trabalhadores do campo com a possibilidade de utilização do
artigo 147 da Constituição de 1946 — referente à desapropriação por interesse
social, mediante indenização “prévia e justa em dinheiro” — e de aplicação da
legislação social à agricultura. O Ministério do Trabalho, por sua vez —
sobretudo durante a gestão de João Goulart (junho de 1953 e fevereiro de 1954)
— procurou incentivar a criação de sindicatos rurais.
Em
abril de 1954, o Executivo enviou um projeto ao Congresso propondo garantia de
estabilidade ao trabalhador rural, limitação da jornada de trabalho, proteção à
mulher e ao menor e filiação do trabalhador ao Instituto de Aposentadoria e
Pensões dos Industriários (IAPI). As iniciativas da presidência, entretanto,
esbarraram na oposição de um Congresso majoritariamente conservador — a
agremiação política de maior bancada, o Partido Social Democrático (PSD), tinha
suas bases eleitorais entre o patronato rural —, de associações de
empregadores, como a Confederação Rural Brasileira e a Sociedade Rural
Brasileira, e de boa parte da imprensa, hostil às diretivas reformistas e
nacionalistas do governo.
O projeto presidencial de abril de 1954, embora não tenha
sido aprovado, converteu-se por ocasião das eleições presidenciais de 1955 no
programa do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), elaborado pelo senador Lúcio
Bittencourt e revisto pelo deputado Fernando Ferrari. Os trabalhistas defendiam
a extinção do latifúndio improdutivo, apoio creditício aos pequenos
proprietários e a aplicação da legislação trabalhista e previdenciária ao
campo.
Enquanto
nas áreas do Executivo e do Legislativo discutia-se a reforma agrária e as leis
sociais, no campo o panorama começava a se transformar através da crescente
mobilização de meeiros, arrendatários, pequenos proprietários e assalariados.
Essa mobilização consubstanciou-se na criação de duas organizações: a União dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB), articulada pelos
comunistas em 1954 no Centro-Sul do país, e as ligas camponesas, criadas em
1955 em Pernambuco.
Durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a
iniciativa das reformas no meio rural deslocou-se da presidência para o
Congresso, onde o PTB, liderado por Ferrari, procurou sem êxito obter aprovação
de uma série de projetos relativos à introdução da legislação trabalhista e
previdenciária no campo. No curto mandato do presidente Jânio Quadros (janeiro
a agosto de 1961), a situação não evoluiu de modo significativo.
Sob
a presidência de João Goulart (1961-1964), contudo, o Executivo retomou a
tarefa de promover a transformação social no campo brasileiro. Buscando o apoio
dos sindicatos e das camadas populares, Goulart concebeu um amplo programa de
reformas estruturais — as chamadas reformas de base —, no qual se destacava a
reforma agrária. Paralelamente, aumentavam as pressões dos camponeses no
sentido de que se procedesse a uma revisão da estrutura fundiária do país e se
promulgassem leis promovendo uma melhoria efetiva em suas condições de vida. No
Congresso, graças ao expressivo aumento da bancada petebista registrado nas
eleições legislativas de 1962, a oposição às reformas diminuiu. Diante desse novo
quadro, o presidente encaminhou ao Parlamento um projeto de lei de autoria de
Fernando Ferrari que, depois de receber algumas emendas, veio a transformar-se
na Lei nº 4.214, o Estatuto do Trabalhador Rural.
O
Estatuto do Trabalhador Rural
Largamente inspirado na Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), reunião da legislação trabalhista destinada ao trabalhador urbano
elaborada na década de 1930 e promulgada em 1º de maio de 1943, o Estatuto
dispõe de forma relativamente sistemática sobre as condições políticas e
econômicas do contrato de trabalho na agricultura brasileira.
Definindo o trabalhador rural como “toda pessoa física que
presta serviços a empregador rural... mediante salário pago em dinheiro ou in
natura, ou parte em dinheiro e parte in natura”, a Lei
nº 4.214 tornou obrigatória a concessão de carteira profissional a todo
trabalhador rural maior de 14 anos independente do sexo, estipulou a jornada de
trabalho em oito horas e instituiu o direito ao aviso prévio e à estabilidade.
Nenhum trabalhador poderia ser remunerado com base inferior ao salário mínimo
regional. Os trabalhadores menores de 16 anos receberiam a metade do salário
atribuído ao adulto. Além disso, o estatuto assegurou o direito ao repouso
semanal e às férias remuneradas.
Quanto
à orientação sindical propriamente dita, a lei — seguindo exatamente a
orientação da CLT — afirmava ser “lícita a associação em sindicatos para
estudo, defesa e condução dos interesses econômicos e profissionais de
empregados e empregadores”. Eram expressamente proibidas a “propaganda de
doutrinas incompatíveis com as instituições e os interesses do país” e
“candidaturas a cargos eletivos dos sindicatos por pessoas estranhas” a eles. A
legalização do sindicato rural só seria possível mediante a carta de reconhecimento
do Ministério do Trabalho.
Para ser reconhecido, o sindicato rural deveria atender,
entre outros, aos seguintes requisitos: o mandato da diretoria não poderia
exceder a três anos e os cargos de presidente, de membros da administração e da
representação deveriam ser exercidos por brasileiros natos. Ainda de acordo com
a CLT, o estatuto previa o pagamento do imposto sindical por empregados e
empregadores.
Um
ponto importante do texto da lei foi o que determinou que os pequenos
proprietários, os parceiros, os meeiros e os arrendatários deixariam de ser
considerados empregadores e, juntamente com os assalariados agrícolas,
passariam a integrar a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(Contag), criada em dezembro de 1963 e reconhecida pelo governo em janeiro de
1964 de acordo com as diretrizes do Estatuto do Trabalhador Rural. A estrutura
vertical vigente no sindicalismo urbano também foi mantida: na base, os
sindicatos, de âmbito municipal, em seguida as federações, de âmbito estadual,
e finalmente a confederação, de âmbito nacional.
A
organização dos empregadores foi regulada pelo artigo 141 do estatuto, que
facilitava a conversão das associações rurais patronais em sindicatos rurais de
empregadores dentro de um curto espaço de tempo. Nesse sentido, a Confederação
Rural Brasileira, associação civil que congregava os empregadores, teve de
adaptar-se aos termos da Lei nº 4.214, passando à condição de entidade sindical
de grau superior, com o nome de Confederação Nacional da Agricultura, segundo o
modelo vigente na Confederação Nacional da Indústria e na Confederação Nacional
do Comércio.
O
processo de sindicalização no campo foi orientado por um órgão governamental
criado especialmente para esse fim — a Comissão Nacional para a Sindicalização
Rural — e pela Superintendência de Política Agrária (Supra). Pouco depois da
promulgação do estatuto, o Ministério do Trabalho anunciou que sua meta era a
formação de dois mil sindicatos rurais, “distribuídos racionalmente por todo o
país, de acordo com os critérios de concentração demográfica”.
Duramente
atacado pelos grandes proprietários de terra e por suas organizações de classe,
o Estatuto do Trabalhador Rural também foi alvo de críticas por parte dos seus
próprios defensores. Para Caio Prado Júnior, por exemplo, a Lei nº 4.214
limitou-se, com poucas exceções, a transpor para o trabalhador rural as
disposições legais que já fazem parte de nossa legislação trabalhista e foram
traçadas com vistas ao trabalhador urbano”, não levando em conta as profundas diferenças
existentes entre as relações de trabalho no campo brasileiro e as que vigoram
na indústria e no comércio.
O
Estatuto do Trabalhador Rural, instituído através da Lei nº 4.214, de 2/3/1963,
foi revogado pela Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que estendeu as
disposições da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aos trabalhadores
rurais. No entanto, duas de suas cláusulas continuaram valendo para esta
categoria: a prescrição bienal e a estabilidade.
Segundo
o Estatuto do Trabalhador Rural, o prazo de prescrição dos direitos dos
trabalhadores do campo era de dois anos, contados a partir da data em que se
encerrasse o contrato de trabalho, ao contrário dos trabalhadores urbanos, cujo
direito prescrevia dois anos após ele ter sido infringido. As razões para essa
diferença ligavam-se principalmente a três fatores: a) as juntas de conciliação
e julgamento só existiam nas grandes cidades, ficando a aplicação das leis
trabalhistas no campo a cargo dos juízes de direito, sobrecarregados com
diversas questões da Justiça comum; b) as relações de dependência pessoal dos
trabalhadores rurais em relação aos seus patrões fazia com que não reclamassem
seus direitos, com medo de enfrentar o poder patronal, sofrer perseguições ou
perder o emprego; c) o desconhecimento da legislação trabalhista por parte dos
trabalhadores do campo, relacionado quer ao controle dos proprietários de terra
sobre seus trabalhadores, quer à insipiência e à fragilidade do movimento
sindical, dificultava as reclamações judiciais.
Reconhecida
a permanência das razões que motivaram o estabelecimento dessa diferenciação,
ela foi preservada no corpo da lei, apesar das pressões patronais para sua
modificação. Durante a década de 1970, a manutenção da prescrição bienal foi
uma das bandeiras de luta do sindicalismo rural, através da Contag.
A estabilidade, que fazia parte da CLT e foi extinta logo nos
primeiros momentos do regime militar, também foi garantida aos trabalhadores
rurais. A manutenção desse direito era defendida pela Contag que, em diversas
situações, se posicionou contra a extensão do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS) aos trabalhadores do campo.
Em
que pese a defesa que a Contag fazia desses dois princípios legais, eles
acabaram progressivamente se enfraquecendo devido às transformações que
ocorreram no campo na década de 1970: a acelerada modernização tecnológica, com
base nos subsídios e incentivos fiscais, provocou um processo intenso de
expulsão dos trabalhadores das fazendas e, portanto, de perda dos direitos. O
novo tipo de trabalhador rural que passou a ter, nesse contexto, seu
crescimento intensificado foi o temporário (“volante”, “bóia-fria”,
“clandestino”), que não tinha acesso a qualquer direito trabalhista, uma vez
que a Lei nº 5.889/73 definia como empregado aquele que prestava serviço de
natureza não-eventual. Todas as tentativas da Contag no sentido de modificar
essa definição, dando-lhe um conteúdo menos restritivo, fracassaram.
A Constituição de 1988 unificou os direitos de trabalhadores
urbanos e rurais, quer no que se refere às questões trabalhistas, quer no que
se refere aos temas previdenciários. No entanto, ela ainda manteve a garantia,
para os rurais, de reclamação dos direitos não respeitados por dois anos após o
rompimento do contrato de trabalho. No que se refere ao FGTS, também foi
estendido aos trabalhadores do campo, eliminando o direito à estabilidade de
emprego para os permanentes.
Sérgio
Lamarão/Leonilde Servolo de Medeiros
FONTES: Boletim Contag;
CAMARGO, A. Questão; CONG. NAC. (1973); CONG. NAC. (1979); CONST.
FED. 1988; CONTAG. Anais (II); CONTAG. Anais (III); IANNI,
O. Estado; Jornal do Brasil (31/8/81); PRADO JÚNIOR, C. Questão; ROCHA,
O. Manual; SCHMITER, P. Interest.