FRENTE
ÚNICA
Movimento
também conhecido por Frente de Apoio às Reformas de Base ou Frente Popular,
idealizado por Francisco Clementino San Tiago Dantas, deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e ministro da Fazenda do governo João Goulart no
período de janeiro a junho de 1963. Seu objetivo era dar respaldo ao governo
através da união de todas as forças políticas do país favoráveis às chamadas
reformas de base (agrária, educacional, urbana etc.). Congregaria desde o
Partido Social Democrático (PSD), agremiação que contava com a maior bancada no
Congresso, até o proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), incluindo
entidades sindicais, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e estudantis,
como a União Nacional dos Estudantes (UNE). O processo de constituição da
frente, que ganhou corpo no início de 1964, foi interrompido pelo movimento
político-militar que derrubou Goulart em 31 de março de 1964.
Processo de estruturação
O plano de San Tiago Dantas era lançar uma ponte entre os grupos que ele mesmo chamava de “esquerda positiva” (os moderados, entre os
quais se situava) e “esquerda negativa” (os nacionalistas radicais,
representados pelo deputado federal petebista e ex-governador do Rio Grande do
Sul, Leonel Brizola), com o primeiro mantendo o segundo sob controle.
Em última análise, Dantas era partidário da implementação
efetiva das reformas de base, mas ao mesmo tempo temia que elas provocassem uma
reação violenta dos setores conservadores da sociedade brasileira, tendo à
frente os grandes proprietários rurais. No seu entender, isso fatalmente
ocorreria caso a “esquerda negativa” comandasse a execução das reformas. Sua
intenção era portanto afastar a possibilidade de uma interrupção brusca do jogo
democrático por parte da direita, e, paralelamente, fortalecer a base de
sustentação do governo Goulart, seriamente comprometida pelas divergências
entre moderados e nacionalistas radicais.
No início de fevereiro de 1964, Goulart anunciou o programa
mínimo da Frente Única, elaborado por San Tiago Dantas. O documento defendia a
concessão do direito de voto aos analfabetos e a revisão do artigo 141 da
Constituição — que determinava o pagamento em dinheiro, à vista e adiantado,
pelo Estado, aos donos das terras desapropriadas para fins de reforma agrária
—, bem como a legalização do Partido Comunista e a negociação de uma moratória
da dívida externa.
Repercussões
A idéia da formação da frente encontrou reações diversas. O
PCB acolheu favoravelmente a proposta, pois os comunistas, além de terem sua
legalização defendida, desde o final da década de 1950 vinham advogando uma
política “frentista”. O jornal do partido, Novos Rumos, publicou
em janeiro de 1964 um artigo no qual deixava clara sua posição em relação à
Frente Única: “Os comunistas têm uma posição definida manifesta na formação de
uma frente ampla de todas as forças nacionalistas e democráticas, visando à
realização das reformas de base necessárias ao progresso e à emancipação do
Brasil.”
A Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), composta
majoritariamente por congressistas do PTB, também foi simpática à frente de San
Tiago Dantas. Seu presidente, o deputado Sérgio Magalhães, chegou mesmo a
afirmar que o apoio à organização seria a única forma de “as lideranças
políticas do centro, da meia esquerda e da esquerda [poderem] sobreviver em
face do imenso perigo que o desespero e o poderio das direitas representam”.
Magalhães salientou que a constituição da Frente Única dependeria de
“concessões recíprocas, ainda que transitórias, que propiciem a união”.
Outro setor político-partidário que recebeu bem a proposta da
frente foram os chamados “agressivos” do PSD, grupo de aproximadamente 40
parlamentares que compunham a ala esquerda daquele partido. Apesar da pressão
dos “agressivos”, contudo, a direção e parte significativa do PSD mostraram-se
reticentes em relação à Frente Única, não vendo com bons olhos a legalização do
PCB.
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB), dissidência do PCB
surgida em 1962, rejeitou categoricamente a formação da frente, apregoando em
seu lugar a organização revolucionária dos camponeses. A UNE acompanhou a
posição do PCdoB, pregando uma política que defendesse os interesses do
proletariado. O CGT também mostrou-se pouco receptivo à constituição da Frente
Única.
Entretanto,
onde a frente encontrou maiores resistências foi na área de influência de
Leonel Brizola. Para o ex-governador gaúcho, o ingresso na organização
significaria a subordinação das correntes populares à liderança de Goulart, o
qual, a seu ver, estava comprometido com uma política de conciliação com o
capital estrangeiro e com setores conservadores.
Lançamento do programa
A Frente Única recebeu um grande impulso após o chamado
Comício das Reformas de 13 de março de 1964. Realizada na praça vizinha à
estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio de Janeiro, a
manifestação reuniu mais de cem mil pessoas e foi promovida por
organizações sindicais e de esquerda. Durante o comício, o presidente Goulart
procurou granjear o apoio popular para o programa das reformas de base, e ao
mesmo tempo pressionar o Congresso para que fossem aprovados os respectivos
projetos de lei. O teor do pronunciamento do presidente provocou a aproximação
dos nacionalistas radicais.
Em 19 de março, o deputado Marco Antônio Coelho apresentou à
FPN um manifesto que já contava com o apoio do CGT, do Pacto de Unidade e Ação
(PUA) e de outras entidades sindicais e constituía uma base para a elaboração
do programa definitivo da Frente Única. O ponto central do manifesto era a
defesa intransigente das liberdades públicas e o repúdio a todas as forças que
pretendessem interromper o processo democrático e se opor às reformas de base.
O documento também apresentava as seguintes reivindicações:
reforma ministerial imediata; emenda constitucional restringindo a brasileiros
natos a exploração do subsolo; instituição imediata do monopólio estatal do
café, passando o produto a ser vendido através de leilões mediante pagamento em
moeda forte; aplicação rigorosa da lei de remessa de lucros; defesa da
indústria nacional; fortalecimento das empresas estatais; monopólio do câmbio,
e utilização progressiva pelo Estado do mercado de capitais.
Finalmente, em 23 de março foi lançado oficialmente o
programa da Frente Única. Publicado na íntegra pelo jornal carioca Correio
da Manhã, o documento foi assinado por diversos partidos políticos e
entidades, entre os quais os “agressivos” do PSD, o PCB, o PTB o Partido
Socialista Brasileiro (PSB), o CGT, a UNE, a FPN, a União Brasileira de
Estudantes Secundários (UBES), o Comando Geral dos Trabalhadores Intelectuais
(CNTI) e a Frente de Mobilização Popular (FMP), esta última liderada por
Brizola.
Seu objetivo manifesto era assegurar apoio parlamentar e
popular às reformas de base, que garantiriam “o desenvolvimento econômico, a
emancipação do país e a melhoria do nível de vida das classes populares”. O
programa prestava solidariedade ao presidente Goulart na luta “para tornar
realidade a política que proclamou no dia 13 de março”.
Para
os signatários do documento, o momento vivido pela sociedade brasileira tornava
indispensável “a formação de um governo nacionalista e democrático com as
necessárias modificações nos organismos militares e civis do Estado” e a
formação de uma política para as forças armadas que lhes permitisse melhores
condições para “cumprir sua principal missão de garantir a emancipação
nacional”.
O
programa consistia de três grandes partes. A primeira dizia respeito às emendas
constitucionais, prevendo entre outros pontos a extensão do direito de voto aos
analfabetos e a todos os militares, sem exceção; a extinção da vitaliciedade da
cátedra no ensino superior, e o repasse integral e imediato do imposto
territorial e rural arrecadado para os municípios.
A segunda parte, relativa às leis ordinárias, previa diversas
alterações na legislação brasileira. Entre elas destacavam-se a legalização do
PCB, a promoção para os sargentos das forças armadas, a extensão do direito de
sindicalização aos servidores públicos, o disciplinamento e a limitação do
arrendamento rural (abolindo o sistema de “meias”, “terças”, do trabalho
gratuito e do pagamento em espécie, e assegurando aos arrendatários o direito à
renovação compulsória dos arrendamentos), e a reforma do sistema tributário,
visando a fazer recair o maior ônus fiscal sobre as pessoas físicas de renda
mais elevada. Afora esses pontos, o programa referia-se também à limitação
percentual do investimento estrangeiro nos setores básicos da economia, à
criação do Ministério dos Transportes (unificando os sistemas ferroviário,
marítimo, aéreo, fluvial e rodoviário) e à nacionalização das empresas de
publicidade.
A
última parte, relativa aos atos do Poder Executivo, subdividia-se em seis
itens: política agrária, política de comercialização agrícola, política
habitacional, política econômico-financeira, política educacional e política
externa. Quanto à política agrária, o documento preconizava a adoção das
seguintes medidas preparatórias para a reforma agrária: desapropriação de
terras não cultivadas para a venda a longo prazo a camponeses sem terra,
assistência técnica e financeira aos agricultores, ativação e ampliação da
sindicalização rural e fiscalização efetiva do pagamento do salário legal e das
demais obrigações trabalhistas.
A
política de comercialização agrícola preocupava-se sobretudo com o planejamento
da comercialização dos gêneros essenciais ao consumo, com o aumento do
financiamento para a ampliação do sistema de ensilagem e armazenamento e com a
encampação dos grandes moinhos, frigoríficos e fábricas de leite em pó
estrangeiros. A política habitacional centrava-se na aplicação do decreto que
regulamentava e limitava o aluguel de casas e apartamentos, e no estímulo à
construção de casas populares.
A política econômico-financeira foi a que mereceu maior
atenção. Segundo o programa, a execução das reformas de base teria de ser
realizada paralelamente à contenção da inflação. O investimento público seria
ampliado, mas ao mesmo tempo seria proibida a concessão de empréstimos oficiais
a empresas estrangeiras e à produção de bens e serviços considerados de luxo.
Os débitos brasileiros no exterior seriam reescalonados, sem que o país tivesse
de se submeter a condições políticas e econômicas. Seriam instituídos os
monopólios estatais do câmbio e do comércio do café, e a lei de remessa de
lucros seria imediatamente posta em execução.
Outros pontos importantes dessa parte do programa
compreendiam o fortalecimento da Petrobras, a eliminação de práticas
discriminatórias contra a indústria nacional, a ampliação do mercado interno
mediante a elevação do poder aquisitivo das populações do interior, a
nacionalização dos bancos de depósitos populares e das companhias de seguros
estrangeiras e a encampação de todas as empresas concessionárias de serviços
públicos.
Em
relação à política educacional, a Frente Única preconizava e erradicação do
analfabetismo, a expansão das escolas técnico-profissionais de nível médio, a
criação de centros de cultura popular e a participação de 1/3 dos estudantes
nos órgãos colegiados universitários. Finalmente, quanto à política externa, o
documento defendia uma atuação diplomática independente, que significava na
prática uma aproximação do Brasil, com os países do Terceiro Mundo e do bloco
socialista.
Sérgio
Lamarão
FONTES: Correio
da Manhã (19, 20 e 24/3/64); SKIDMORE, T. Brasil.