FUNDAÇÃO NACIONAL
DO ÍNDIO (Funai)
Uma das fundações públicas de direito privado criadas pelo regime militar no pós-1964, autarquia, entidade
da administração pública direta, dotada de autonomia, caráter auxiliar e
descentralizado, com patrimônio de recursos próprios, mas sujeita à
fiscalização e tutela do Estado, com funções de articulação entre sociedade
civil e sociedade política, neste caso jamais adequadamente exercidas.
Foi instituída pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967,
para executar as tarefas de tutela do Estado, lato e stricto sensu, sobre os povos indígenas em território nacional brasileiro.
Sua criação seguiu-se às denúncias de práticas corruptas e genocídio de índios
pelo aparelho que a precedeu, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), apuradas
por uma comissão parlamentar de inquérito e divulgadas sob a forma do chamado
Relatório Jáder Figueiredo. Pela lei de criação da Funai, considerou-se extinto
o SPI, através de sua fusão com a nova entidade.
Além
do SPI, criado em 1910, sob a liderança do engenheiro militar, então
tenente-coronel, Cândido Mariano da Silva Rondon, também foram extintos o
Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), criado sob os quadros da
ditadura de Vargas, em 1939, e o Parque Indígena do Xingu, criado em 1961.
Vinculada pela sua lei de criação ao Ministério do Interior (Minter), com a
extinção deste, em 1990, sob o governo Collor, a Funai passou a integrar o
Ministério da Justiça. De acordo com o antropólogo Antônio Carlos de Sousa
Lima, “jamais logrou agir com a independência que o estatuto de autarquia
implica, sendo, desde sua instituição, sobretudo área de interesse militar.
Pode-se considerá-la parte dos dispositivos colonialistas do Estado brasileiro,
voltados para o interior de um território que, definido juridicamente na
qualidade de nacional, só vem sendo assenhoreado pela administração pública
direta, ainda hoje, de modo paulatino e precário. Outrossim, em que pese as
mudanças mais recentes, a instituição tem suas práticas marcadas, de maneira
indelével, pelo assimilacionismo das populações indígenas”.
Origens
Apesar
de um considerável avanço em matéria de pesquisas surgidas de inícios da década
de 1980 para os fins da década de 1990, ainda se pode dizer que muito pouco tem
sido escrito sobre as ações da administração pública sobre os povos indígenas
no Brasil, bem como acerca das idéias norteadoras das políticas indigenistas
implementadas no país. Por muito tempo, exceto por discussões realizadas ao
longo de fins da década de 1940 e início da de 1950 por etnólogos do SPI —
particularmente Darci Ribeiro, Eduardo Galvão, Roberto Cardoso de Oliveira e
por indigenistas como
José Maria da Gama Malcher —, o debate em torno do problema social dos índios
no Brasil não pôde ser adequadamente tratado enquanto problema científico. Tem
sido em grande medida o debate político circunstancial a dominar a cena do
chamado indigenismo,
sob o calor de discussões conjunturais, em que assoma todo um trabalho morto
simbólico, remontável ao imaginário construído pelo colonialismo português,
como reelaborado pelas elites imperiais brasileiras. Nessas conjunturas, com
freqüência, etnólogos com domínio de aspectos da vida de grupos indígenas
específicos, mas sem nenhuma experiência de atuação político-administrativa ou
conhecimento científico das estruturas de poder que se impõem a tais povos,
fazem conferências, dão declarações de profundo cometimento ético, mas de
eficácia real reduzida, mais servindo a projetar o valor e a justiça da
“corporação antropológica”, do que a alterações concretas nas políticas de
Estado. Exemplo disso foi a conjuntura, já inserida enquanto sacralizada na via
crucis do indigenismo
brasileiro, da proposta de “emancipação do indígena”, em 1977, de um decreto do
ministro Maurício Rangel Reis, do Ministério do Interior (Comissão Pró-Índio de
São Paulo, entre outros). Anunciava que declararia os indígenas emancipados da
tutela estatal (logo da garantia de direitos às suas terras), atualizando uma
possibilidade legal dada pelo Estatuto do Índio, Lei nº 6.001, de 19 de
dezembro de 1973.
O
quadro era de remobilização social e de esboço de uma relativa abertura
política no Brasil, articulado aos movimentos internacionais pró-anistia e
direitos humanos. As denúncias, feitas em reuniões científicas e por meio de
matérias da grande imprensa, de um decreto de emancipação compulsória nos anos
de 1977 e 1978, seriam seguidas do surgimento de inúmeras associações de apoio
e comissões pró-índio, que em sua maioria desapareceriam ao longo da década de
1980. Poucas constituíram-se em núcleos de atuação profissional, questionadora
da ação estatal frente aos povos indígenas, gerando competências específicas
para além de denúncias quase ritualizadas.
Tal momento passaria a ser invocado como uma espécie de marco
das mudanças posteriores, homólogo ao da criação do SPI, em 1910. Para uma
certa rede social, que se reivindica filiada à “herança rondoniana”, ou para
outras que compõem, pelo silêncio, com essa posição política, e de modo mais
amplo, para um certo senso comum intelectual, o paradigma e “mito de origem”
das práticas indigenistas brasileiras teria sido cunhado no quadro histórico
reportado pelos textos de caráter apologético de Darci Ribeiro. Segundo estes,
frente a uma suposta proposição de extermínio dos índios, a “sociedade civil”,
em 1908-1910, organizara-se e forçara o Estado a instituir um aparelho de
proteção aos índios, tal tendo sido levado a cabo por uma articulação de
intelectuais, sobretudo os positivistas ortodoxos, “militantes”, e engenheiros
militares da chamada Comissão Rondon.
Versão pejada pelo anacronismo e pela teleologia, inadequada
em todos os termos às formas de ação política vigentes nas primeiras décadas do
século XX — e aos processos de longo prazo de formação de Estado no Brasil —
mal obscurece seu comprometimento básico com as representações primeiras
constituídas dentro do próprio SPI ainda em 1910. Descartam-se, assim,
múltiplos desenvolvimentos paralelos, que pesquisas mais recentes têm procurado
recuperar, vendo-se um mesmo e único ímpeto “assimilacionista” a animar, desde
diferentes momentos da colonização portuguesa até os dias de hoje, as ações
oficiais para as populações nativas.
Os
esforços interpretativos mais recentes (Lima, 1995; Machado, 1994; Santilli,
1994, entre outros) apresentam uma explicação bastante distinta: indigenismo,
termo oriundo da literatura latino-americana, designa representações e práticas
cunhadas no México, país de grande contigente populacional indígena, a partir
de um certo estilo de antropologia social inspirada nas propostas de Franz Boas
(Nolasco Armas, 1981; Bonfil, 1981; Lima, 1997). Remete-se a um estilo de
ideologia nacionalista no qual as populações indígenas, representadas como
parte de um passado glorioso, devem ser levadas ao progresso e à integração nacional.
No caso brasileiro deve-se ressaltar o legado colonial que desembocaria nas
práticas ainda no presente recobertas pelo termo “sertanismo”: formas de
desbravar espaços geográficos incógnitos e de submeter as populações a eles
autóctones. Termo utilizado pelos portugueses para designar as práticas de
exploração das conquistas em contextos variados do mundo colonial lusitano,
desde os séculos XVI em diante, seria, no Brasil, em parte subsumido a um
imaginário nacional constituído a partir do estado de São Paulo no século XIX,
e eufemizado no termo bandeirantismo. A historiografia que criaria o
bandeirante, concedendo-lhe o papel de herói numa futura construção nacional,
atribuiria aos escravizadores de índios e exploradores de riquezas do período
colonial intenções geopolíticas anacrônicas, explicando-se assim, por suposto,
o desenho territorial do país. No contexto da proteção oficial aos índios,
sertanista passaria a designar, no século XX, o especialista nas técnicas de
atração e
pacificação de povos indígenas ainda não subsumidos ao aparelho de governo dos
índios, sejam meramente os que querem se manter afastados e independentes de um
convívio seqüenciado com o colonizador ou em guerra contra ele.
O SPI, surgido, primeiramente, como Serviço de Proteção aos
Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), abarcava as tarefas
de pacificação e proteção dos grupos indígenas, bem como as de estabelecimento
de núcleos de colonização com base na mão-de-obra sertaneja (Decreto nº 8.072,
de 20 de junho de 1910). Foi pelo Decreto-Lei nº 3.454, de 6 de janeiro de
1918, que as duas atribuições separaram-se e a instituição passou a SPI
tão-somente. Tendo os silvícolas sido incluídos entre os “relativamente
incapazes”, junto a maiores de 16/menores de 21 anos, mulheres casadas e
pródigos, através do artigo 6º do Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917,
os integrantes do SPI formularam e encaminharam o texto da lei que, após
dezesseis anos de tramitação no Congresso Nacional, seria aprovado como Lei nº
5.484, em 27 de junho de 1928. Esta lei deu ao SPI o direito de legalmente
tutelar o status jurídico genérico de índio, sem no entanto defini-lo
enquanto categoria sobre a qual incidia. Aliavam-se, assim, numa mesma forma
social — a do poder tutelar — um projeto de gestão de segmentos populacionais
definidos como dotados de uma participação civil necessariamente mediada pelo
Estado e, por meio desta, de controle sobre o interior e os lindes do
território nacional, intromissão à época na esfera de competência fundiária dos
estados da União. A trajetória do SPI demonstraria o escopo das funções
administrativa de Estado, através das quais o problema indígena circulou: de 1910 a 1930, o SPI fez parte do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio; de 1930 a 1934, do Ministério do Trabalho; de 1934 a 1939, do Ministério da Guerra, como parte da
Inspetoria de Fronteiras; em 1940, voltou ao Ministério da Agricultura e, mais
tarde, passou para o do Interior.
Em 1939, seria instituído o Conselho Nacional de Proteção aos
Índios (CNPI), pelo Decreto nº 1.794, de 22 de novembro de 1939, com o objetivo
de atuar como órgão formulador e consultor da política indigenista brasileira.
O CNPI deveria ser composto por sete membros designados por decreto
presidencial. Supunha-se que o SPI teria, daí por diante, só atribuições
executivas, o que não aconteceria. A partir do início da década de 1960, no
período final de existência do SPI, o CNPI foi a instância em que se continuou
a ter a presença de antropólogos e indigenistas compromissados com a idéia de
proteção ao índio, após mudanças intensas nas políticas de Estado no pós-1954.
No CNPI proceder-se-ia, então, a inúmeras discussões que se veriam refletidas
num primeiro desenho da Fundação Nacional do Índio. Tais discussões, por sua
vez, achavam-se referidas aos contornos institucionais oriundos do indigenismo
latino-americano, bem como a movimentos mais amplos, como os encabeçados pela
Organização das Nações Unidas (ONU) no pós-guerra, dos quais redundaria a
Convenção nº 107, de 26 de junho de 1957, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), “sobre a
Proteção e Integração das Populações Indígenas e outras Populações Tribais e
Semitribais de Países Independentes”, só ratificada no Brasil nove anos após,
pelo Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966 (DOU, 20/7/1966).
Seria
desse legado administrativo e institucional que resultaria, em 1967, a criação da Funai. A instituição só se efetivaria realmente a partir de 1969, quando seu
primeiro presidente pôde dar por relativamente encerrado o processo de extinção
e devassa do SPI. Uma análise nessa direção deve considerar, ainda, a
instituição da Funai como parte do esforço global de redefinição do aparato
burocrático-administrativo do Estado, realizado por volta de 1967, quando se
preparava mais um dos surtos de expansão espacial, em termos políticos e
econômicos, de setores da administração pública e de seus aliados internos e
externos ao país, dessa vez para a região da Amazônia Oriental.
Objetivos
e estrutura organizacional
Segundo o artigo 1º da Lei nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, a Funai foi instituída com o objetivo de “I — estabelecer as diretrizes e garantir o
cumprimento da política indigenista, baseada nos princípios a seguir
enumerados: a) respeito à pessoa do índio e às instituições e comunidades
tribais; b) garantia à posse permanente das terras que habitam e ao usufruto
exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes; c)
preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contato com a
sociedade nacional; d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a
que sua evolução socioeconômica se processe a salvo de mudanças bruscas; II —
gerir o patrimônio indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e
valorização; III — promover levantamentos, análises, estudos e pesquisas
científicas sobre o índio e os grupos sociais indígenas; IV — promover a
prestação da assistência médico-sanitária aos índios; V — promover a educação
de base apropriada do índio, visando à sua progressiva integração na sociedade
nacional; VI — despertar, pelos instrumentos de divulgação, o interesse
coletivo para a causa indigenista; VII — exercitar o poder de polícia nas áreas
reservadas e nas matérias atinentes à proteção do índio”, ficando encarregada,
pelo parágrafo único do mesmo artigo, de exercer “os poderes de representação
ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio, na forma
estabelecida na legislação civil comum ou em leis especiais”, isto é, a tutela
do Estado. Seria, portanto, o exercício do monopólio do poder tutelar, nunca
atingido de fato, e dos recursos (econômicos, sociais, administrativos e
simbólicos) que este permite mobilizar, o principal objetivo da Funai. O poder
de polícia da Funai, similar ao do Ibama e, em certa medida, ao do Sphan, não
foi regulamentado até hoje, apesar de algumas tentativas de fazê-lo, sendo a
fundação incapaz de aplicar multas às numerosas infrações aos direitos
indígenas.
Tendo
seu orçamento composto pelas dotações dos extintos SPI, CNPI e Parque Nacional
do Xingu, poderia receber ainda subvenções orçamentárias e de diversos fundos
especiais da União, dificilmente mapeáveis pela análise do orçamento. Poderia
ainda receber rendas advindas de serviços prestados a terceiros, de
arrendamentos, de doações, bem como o “dízimo da renda líquida anual do
patrimônio indígena” (art. 2º, V), isto é, dos bens — notadamente a terra — em
posse das comunidades indígenas, cuja manipulação lhes é legalmente facultada.
De fato o regime autárquico deveria capacitá-la a uma autonomia administrativa
considerável, inclusive na captação de recursos externos, o que nunca
aconteceu, estando a fundação diretamente atrelada, sobretudo, aos repasses
orçamentários do Tesouro Nacional. Por outro lado, a Funai jamais apresentou
quaisquer registros que permitissem o controle e a contabilização da renda e do
patrimônio indígena, os quais permaneceram sob a esfera de influência de seus
integrantes regionais e locais, configurando-se num locus
privilegiado para práticas corruptas.
Pelo art. 12 da mesma lei, a Funai deveria, ainda, elaborar e
propor ao Poder Executivo anteprojeto de lei a ser encaminhado ao Congresso,
sobre o estatuto legal do índio brasileiro. A Lei nº 6.001, de 19 de dezembro
de 1973, que regulamenta o estatuto jurídico dos índios cumpriria tal
exigência, não tendo sido proposta pela Funai.
A
Lei nº 5.371 foi posteriormente emendada em seu artigo 4º pelo Decreto-Lei nº
423, de 21 de janeiro de 1969, e modificada na sua totalidade pelos decretos nº
68.377, de 19 de março de 1971 e nº 84.638, de 16 de abril de 1980. A Funai teve, também, diversos estatutos e regimentos internos, sendo os atualmente em vigência
— em que pese a tentativas frustradas de mudança — os aprovados,
respectivamente, pelo Decreto nº 564, da Presidência da República, de 8 de
junho de 1992 (DOU,
nº 109, de 9/6/1992, 1ª Seção, p. 7.237 e ss), e pela Portaria nº 542, do
Ministério da Justiça, de 21 de dezembro de 1993 (DOU,
nº 243, de 22/12/1993, 1ª Seção, p. 20.039 e ss).
Como dito, a Funai esteve institucionalmente vinculada ao
Minter, tendo o ministro ingerência direta em seus assuntos, sobretudo no auge
do período da ditadura militar. Seu presidente e seu diretor
executivo/superintendente (de acordo com o regimento) são de escolha e nomeação
do presidente da República. A entidade manteve, e mantém, íntima afinidade com
os propósitos de aparelhos de governo responsáveis pela implementação de
políticas de colonização do país, como o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e os institutos estaduais de terras públicas, bem como,
em função de interesses minerais em áreas indígenas, com o Departamento
Nacional da Produção Mineral (DNPM). Desde 1990 estreitaria, ainda, relações
com a esfera da administração pública relativa ao controle e preservação do
meio ambiente (ao longo do tempo (Semam) — Secretaria do Meio
Ambiente/Ministério do Meio Ambiente (MMA), dos Recursos Hídricos e da Amazônia
Legal, IBDF/Ibama — Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal/Instituto
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), para os quais alguns
técnicos da Funai migrariam. Manteve também contatos com as superintendências
regionais de desenvolvimento (Sudam, Sudeco, Sudene), com as quais firmou
diversos convênios, bem como com grandes projetos de desenvolvimento rural
integrado e exploração mineral (Polonoroeste, Projeto Carajás etc.). Tais
relações constituíram-se e cresceram na medida em que a Funai, aos finais da
década de 1970, começaria a investir, de maneira mais definida, na regularização
de terras de posse indígena, importando do INCRA quadros e metolodogias pouco
adequados às situações indígenas. Todavia, isto não significa que existam
canais interinstitucionais definidos e com bom fluxo entre as partes: a Funai
(e isso é uma parte bastante forte da sua ideologia corporativa) tende a se
comportar como se detivesse o monopólio de fato da tutela e, portanto, uma
força política compatível ao seu exercício.
Apesar das diversas propostas de mudanças estruturais e
organizacionais partidas de discussões externas e internas, sobretudo desde os
inícios da década de 1990, pode-se descrever a Funai, em seus 31 anos de
existência, como disposta em três níveis espaciais ou escalas. O primeiro é o
nível nacional, encarnado pela administração central, sediada em Brasília. Em termos regimentais (artigo 3º do regimento aprovado pela Portaria nº 542/93,
supracitada) tal corresponde aos “órgãos colegiados” (Conselho Indigenista,
Conselho Fiscal) à “Presidência” (com seus “órgãos de assistência direta”:
Gabinete, Coordenação Geral de Assuntos Externos, Coordenação Geral de Defesa
dos Direitos Indígenas, Coordenação Geral de Projetos Especiais, Coordenação
Geral de Estudos e Pesquisas), aos “órgãos seccionais” (Procuradoria Geral,
Auditoria, Diretoria de Administração), aos “órgãos específicos singulares”
(Diretoria de Assistência, Diretoria de Assuntos Fundiários). O segundo nível
seria o regional, em que os “órgãos regionais” seriam as “administrações
executivas regionais” — em regimentos anteriores sucessivamente chamadas
“delegacias regionais” (DRs) e “superintendências executivas regionais”
(Suers), — responsáveis por coordenar a ação no terceiro nível, isto é, na
escala local, os “postos indígenas”, a elas subordinados. Em 1995, para efeitos
internos, a escala regional compunha-se de cinco regiões, subdivididas pela
competência de 47 administrações executivas regionais, que coordenavam um total
de 352 postos indígenas. No regimento de 1993, o Museu do Índio, localizado no
Rio de Janeiro, recebe o estatuto de “órgão descentralizado”.
Em
regimentos anteriores, certas tarefas do órgão, pensadas sob paradigmas
diferenciados ao longo do tempo, teriam ênfases maiores ou menores em sua
trajetória histórica, ganhando estas posições diferenciadas em termos de
hierarquia e morfologia organizacional. Tal foi o caso das tarefas de
desenvolvimento comunitário, que tiveram mais relevo institucional de meados da
década de 1970 até os inícios dos anos 1980; ou da consciência maior quanto à
necessidade de organizar a documentação da Funai, suscitada, em grande medida,
por críticas incisivas feitas desde fora do aparelho em meados dos anos 1980.
Com as alterações implantadas pelos decretos presidenciais de nºs 23,
24, 25 e 26, de 4/2/1991, as tarefas de assistência
às populações indígenas no tocante a questões de saúde, educação,
desenvolvimento rural e meio ambiente, exercidas pela Funai com enorme
precariedade — salvo exceções pontuais — seriam dispersas entre diferentes
aparelhos de governo, caminhando-se, a partir daí, para uma diretriz tosca de
municipalização desses serviços de Estado.
Como implementadora de direito da tutela estatal sobre os
indígenas, a Funai é responsável pela admissão (ou não) e fiscalização das
demais agências que atuam junto aos povos indígenas do Brasil, quais sejam, as
missões católicas e protestantes — das quais não tem sequer um levantamento
nacional — bem como, em co-relação com o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), pela supervisão de pesquisas, filmagens etc.,
em áreas indígenas, tarefa que na prática converte-se em expedição, ou entrave,
de autorizações de entrada em área indígena. A Constituição de 1988, em que as
bases do regime tutelar são redimensionadas, destacando-se a atribuição de
capacidade civil plena, via relações dos índios com o Congresso Nacional e com
o Ministério Público (Título III, Capítulo II, arts. 20, 22; Título IV,
Capítulo I, art. 49; Capítulo III, art. 109; Capítulo IV, art. 129; Título VII,
capítulo I, art. 76 §1º; Título VIII, Capítulo III, art. 210, §2º, art. 215,
§1º, e sobretudo pelo Capítulo III, “Dos Índios”) introduziu mudanças
significativas. O texto constitucional reconheceu o direito às sociedades
indígenas de existirem como sociedades diferenciadas da brasileira, sem obrigá-las
à assimilação às redes regionais com que convivem. Abriu caminho, ainda, para
que as comunidades indígenas passassem a corroborar, ou não, as autorizações
conferidas a pesquisadores para entrada em áreas indígenas.
As pretensões de conferir à Funai planejamentos sólidos e
baseados numa orientação antropológica, propostas marcadas nas discussões que a
antecederam ainda no CNPI, ou na admissão de antropólogos academicamente
legitimados em 1974-1976, e em numerosas tentativas dos setores mais progressistas
da instituição de estabelecer diálogos e diretrizes mais seguras, nunca se
efetivaram como parte de suas rotinas administrativas. Longe de uma
antropologia da ação, tem sido os diversos matizes do sertanismo, como conjunto
ideológico, a nortear o cotidiano da Funai. Muito de sua organização regimental
foi (ou é) inoperante, de acordo com as contingências de cada gestão, e a ação
do aparelho marca-se com muita freqüência pelo que se tem denominado de
“emergencialismo” (Oliveira & Almeida, 1989): atua-se amenizando-se o
impacto de crises, sem planos seqüenciados de médio e longo prazos, como os
diferentes problemas das populações indígenas demandariam. Um espelho disso é a
rarefação progressiva dos atores que deveriam coordenar e implementar a ação direta,
os chamados “técnicos em indigenismo”. Apesar de breves cursos de
treinamento, ministrados quando da admissão por concurso destes quadros
institucionais, desde 1970 até 1985, a formação deste tipo de técnico permanece
difusa e imprecisa, regulando-se mais pela prática cotidiana e por impressões
transmitidas por seus predecessores do que por um código de conduta e por
planos de intervenção estruturados. Tal expressa a imprecisão das metas da
fundação no tocante a numerosas atividades-fim que deveria desenvolver.
Enquanto
organização, portanto, a Funai — de resto como boa parte da administração
pública direta — está longe dos supostos de uma burocracia, no sentido
weberiano do termo: inexistência de metas claras, de rotinas para alcançá-las,
de sistemas de aferição de méritos e, baseados neles, de sistemas de cargos e
salários correspondentes, são apenas algumas de suas características marcantes.
O funcionamento real da instituição está condicionado às interações das
múltiplas redes de relações que a perpassam nacionalmente, estendendo-se para
muito além da esfera de seus limites. Estas redes e seus conjuntos organizam-se
a partir de múltiplos eixos de estruturação (parentesco, relações afetivas e de
amizade, pertencimento a partidos políticos e sociedades secretas, como a
certas lojas da maçonaria etc.), abarcando ainda numerosos integrantes
indígenas dispersos por facções de diferentes povos indígenas. Nas
representações da mídia tais povos aparecem como homogeneamente aliados (ou
inimigos) de funcionários da Funai, que atacam ou protegem. Invadem e ocupam a
sede da fundação, em Brasília, segundo uma dinâmica pouco perceptível ao
público: na maior parte das vezes são grupos de indígenas, não representativos
de seus povos em sua totalidade, que agem em aliança com integrantes de redes
internas ao aparelho, situados em pontos distintos de sua malha administrativa
e articulados com outras instâncias administrativas do Executivo e com setores
do Legislativo. Em tais situações esses grupos manipulam segmentos do
imaginário de uma sociedade colonialista como a brasileira, encenando os
perigos de um “ataque indígena”, calcando-se, sobretudo, nas imagens veiculadas
sobre situações de desbravamento de espaços geográficos pouco conhecidos e em
estereótipos consolidados, como o da antropofagia.
Desde 1993, e particularmente de 1995, a Funai vem recebendo recursos para demarcação de terras indígenas na região da Amazônia Legal,
por meio do Programa de Proteção às Terras e Populações Indígenas da Amazônia
Legal (Pptal) — subcomponente do mais amplo Programa Piloto para Proteção das
Florestas Tropicais Brasileiras-Grupo dos Sete (PPG7) — cujos recursos implicam
formas variadas de intervenção de organismos multilaterais, como o Banco
Mundial, e da cooperação técnica estrangeira (sobretudo alemã, via o organismo
estatal denominado Sociedade Alemã de Cooperação Técnica, a GTZ) em aparelhos
de governo no Brasil. Até o momento os resultados dessa tentativa de
transformação da Funai têm-se circunscrito à esfera fundiária, ainda assim com
poucos resultados que estabeleçam diferenças relevantes em face de quadros
anteriores.
Atuação
A
política indigenista brasileira, gerida pela Funai desde sua estruturação,
sofreu diversas alterações que podem ser mapeadas cronologicamente pelas gestões
de sua presidência. De 1967 até abril de 1998 foram 23 presidências. Pouco é
necessário para se perceber que presidir o aparelho tem sido tarefa espinhosa e
comprometedora, a ponto da sucessão de seus presidentes ter sido apresentada
como “a galeria da crise permanente”. De modo geral, pelos seus integrantes e
suas vinculações pode-se perceber o caráter de interesse estratégico que o
aparelho entreteve para o aparato de segurança nacional ao longo da maior parte
de sua trajetória. Vale destacar que, nessas três décadas, a Funai foi sendo
esvaziada, por diversas mudanças, inclusive as relacionadas à Constituição de
1988, de suas funções primitivas, demonstrando-se incapaz de assumir outras, de
racionalizar-se e reorganizar-se, técnica e politicamente, passando do segundo
para o terceiro escalão da República.
No presente, a Funai é um dos símbolos do corporativismo
institucional auto-reprodutivo, na sua pior e mais perversa acepção, apesar da
qualidade de alguns funcionários idealistas, que julgam poder reabilitá-la
desde dentro. As facções internas, articuladas com facções de grupos indígenas
e outros interesses externos, têm conseguido inviabilizar maiores
transformações. Isto se aplica tanto aos seus funcionários de carreira que
querem realizar algumas mudanças — por falta de força política para vencer as
facções mais ligadas às práticas corruptas, com elas tendo que compor — quanto
por iniciativas externas, incapazes de encontrar suporte no nível do Executivo
e do Legislativo. No caso do Executivo, o desinteresse frente a transformações
nessa área tem se aliado à intenção de passar, sobretudo para a opinião pública
internacional, uma imagem de realizações positivas — mais para apagar conflitos
do que para intervir no sentido de mudar — capaz de influir o tocante à entrada
de capitais vindos da Europa e dos Estados Unidos. No caso do Legislativo,
pejado de questões polêmicas e com a atuação marcada pelos mecanismos
clientelísticos, envolvendo a destinação de cargos e verbas, tem sido a bancada
ligada a setores articulados a mineradoras e madeireiras na região amazônica
que tem se afigurado como obstáculo principal e aliada das redes ligadas a
práticas corruptas que também perpassam a Funai.
A
gestão do jornalista José de Queirós Campos (dez. 1967-jun. 1970), integrada à
do ministro do Interior à época, general Albuquerque Lima, foi marcada pelas
tarefas relativas à liquidação do SPI e remontagem do aparelho sob a forma de
uma fundação. Manteve ainda em seus quadros elementos ligados ao SPI, como José
Maria da Gama Malcher e Heloísa Alberto Torres, João Oscar Henriques e Álvaro
Vilas Boas. Queirós Campos presidiu a fundação como executivo de um conselho
diretor que, previsto na Lei nº 5.371, só funcionou nesse período. Durante o
período, o Parque do Xingu, “vitrine” da política indigenista da Funai ao longo
de boa parte de sua trajetória, foi ampliado e foram criados três outros
parques: Aripuanã, em Mato Grosso, Tumukumaque, no Pará, e Araguaia, em
Tocantins, só decretado em 1971. Queirós Campos promoveu o 1º Simpósio
Funai-Missões Religiosas e refez o convênio anteriormente firmado pelo SPI com
o Instituto Lingüístico de Verão (Summer Institute of Linguistics — SIL),
entidade confessional voltada para a educação bilíngüe com fins religiosos.
Fortaleceu também a idéia proveniente do SPI de uma “guarda rural indígena”.
As linhas da política indigenista vigentes durante a década
de 1970 e início dos anos 1980 foram definidas na administração seguinte, do
general da reserva Oscar Jerônimo Bandeira de Melo (jun. 1970-mar. 1974),
ex-oficial do Serviço Nacional de Informações (SNI), ex-chefe da divisão de
segurança da Funai, responsável pelo enquadramento da instituição e da política
indigenista dentro dos supostos da ideologia da segurança nacional, associados
aos ideais desenvolvimentistas no Plano de Integração Nacional (PIN), criado em
1970 e destinado sobretudo a nortear a atuação estatal na Amazônia Legal. No
período, concebia-se estimular a pecuária bovina na região como forma
privilegiada de ocupá-la economicamente. Em outubro do mesmo ano o presidente
Médici anunciou o convênio Funai-Sudam para a pacificação de tribos ao longo da
Transamazônica. As conseqüências dessas medidas para a sobrevivência física de
diversos grupos indígenas ainda foram das mais graves e está por ser
completamente avaliada. Dentro da Funai a área de desenvolvimento comunitário
foi criada, na tentativa, mais uma vez, de fazer auto-sustentado o
empreendimento indigenista: os custos da proteção oficial deveriam ser pagos
pelo que se poderia gerar com base na exploração do patrimônio indígena. À
mesma época anunciou-se, como paliativo frente à opinião pública internacional,
o encaminhamento ao Congresso Nacional do projeto do Estatuto do Índio,
promulgado em 19 de dezembro de 1973 (Lei nº 6.001), espécie de lei criada para
não ser cumprida, mas que colocaria um conjunto de conceitos que serviriam de
base a invenções jurídicas futuras. Em suas disposições o estatuto previa que
as terras indígenas deveriam estar todas demarcadas num prazo de cinco anos a
partir da promulgação, o que não aconteceria.
Deste
período também datam as primeiras reações da sociedade civil à política
indigenista instaurada com a Funai, dentre as quais pode-se incluir o manifesto
de julho de 1971, assinado por 80 profissionais da área de ciências sociais,
contra as diretrizes assumidas e a proposta do Estatuto do Índio, bem como a
constituição do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 1972. O Cimi foi
precedido em três anos pelo que passaria a ser, durante muitos anos, sua
extensão leiga, a Operação Anchieta (Opan, hoje Operação Amazônia Nativa),
ambos pressupondo a existência anterior da Missão Anchieta, em Utiariti (MT). O
Cimi dedicou-se a atuar em áreas indígenas consoante as propostas do Concílio
Vaticano II e seus corolários latino-americanos (com desenvolvimentos
missiológicos stricto
sensu brasileiros), promovendo
assembléias indígenas, dando campo a um tipo de associativismo pan-indígena que
seria enfatizado, no plano retórico, como a via privilegiada para a
autodeterminação indígena. É impossível compreender claramente a ação da Funai
e as configurações que se esboçam na época, algumas desdobrando-se até o
momento, sem considerar a marcante atuação da Igreja no período.
Em março de 1974, o general da reserva Ismarth Araújo de
Oliveira, ex-superintendente da Funai, assumiu como presidente. Durante sua
administração abriu-se espaço ao diálogo com missionários, antropólogos e
indigenistas, em grande parte afastados da administração anterior. Foram
organizados diversos projetos de ação comunitária visando ao desenvolvimento
autodeterminado, planejados por antropólogos e financiados pelo órgão,
diferentemente dos projetos até então realizados sob a égide do seu então
Departamento Geral de Operações (DGO), que se preocupava, sobretudo, com a
extração da renda indígena. Após sucessivas notícias que remontam a 1975, o
ministro do interior, Maurício Rangel Reis, anunciou em fevereiro de 1978 que o
presidente Geisel assinaria o decreto de emancipação dos indígenas, já mencionado
acima. As ONGs surgidas a partir de sua contestação, tais como as comissões
Pró-Índio (CPIs), as associações nacionais de Apoio ao Índio (ANAIs) e o Grupo
de Apoio ao Índio (GAI), entre outras, passariam a ser interlocutores
permanentes do Estado, cada dia mais fortes e questionadores da Funai, sendo
impossível entender os anos seguintes sem sua presença. Muitas dessas entidades
seriam criadas por intelectuais formados dentro dos modernos quadros da
pós-graduação em antropologia social. As associações existentes em torno de
1978-1980 teriam perfis e tomariam rumos muito distintos. Muitas delas viriam a
ser financiadas por recursos de igrejas internacionais e fundações voltadas
para os direitos humanos no Terceiro Mundo.
Ao final, a proposta de emancipar os índios de acordo com
dispositivo do Estatuto do Índio seria oficialmente arquivada, mas ativara-se
uma preocupação mais qualificada “pela demarcação de terras indígenas”,
bandeira de lutas dessas ONGs e tarefa até hoje não cumprida pelo Estado. Mas a
idéia de separar os “verdadeiros índios”, a quem caberiam as medidas
protecionistas, dos “falsos índios”, que delas deveriam estar isentos,
identificados sobretudo com populações indígenas do Nordeste e do Leste do
país, não desapareceu integralmente até o momento, demonstrando as
pressuposições da ideologia da mistura racial dominante no Brasil. Durante essa
gestão iniciaram-se, pela primeira vez de modo expressivo, programas de
regularização das terras ocupadas por indígenas. O general Oliveira ficou no
cargo até março de 1979.
A curta administração subseqüente (mar. 1979-nov. 1979), do
engenheiro Ademar Ribeiro da Silva, ex-diretor geral do Departamento Nacional
de Estradas de Rodagem (DNER), iniciada em janeiro de 1979, buscou uma
aproximação mais intensa com as entidades de apoio ao índio, antropólogos e
missionários, pretendendo priorizar a demarcação das terras indígenas. De fato
nesses nove meses abriram-se as portas de algumas áreas indígenas à exploração
mineral.
Este breve interregno não diretamente militar foi sucedido
pela gestão do coronel da reserva João Carlos Nobre da Veiga (nov. 1979-out.
1981), que retomou a tentativa de emancipação dos índios através da criação dos
“critérios de indianidade”, por meio dos quais pretendiam poder determinar a
autenticidade da condição de indígena em inúmeros casos. Deu-se, assim,
prosseguimento às diretrizes desenvolvimentistas que marcaram a política
indigenista desde a gestão Bandeira de Melo, bem como à subordinação da Funai
aos órgãos de segurança. Neste sentido deve ser entendida a reestruturação da
Funai (Decreto nº 84.638, de 16 de abril de 1980, que aprovou o novo estatuto
da fundação) extinguindo o Departamento Geral de Planejamento Comunitário
(DGPC), ocupado principalmente por antropólogos, demitindo-se grande parte
destes juntamente com diversos indigenistas que manifestaram-se ao ministro do
Interior em carta contra as diretrizes políticas da gestão de Veiga. Mais
importante ainda seriam as medidas tomadas no sentido de regionalizar a atuação
indigenista, motivo em parte da reestruturação dos estatutos da Funai, o que
significou entregar a sorte dos povos indígenas aos interesses econômicos
regionais. Nobre da Veiga procurou cortar os contatos e cercear a atuação de
elementos dos campos intelectual e religioso junto aos grupos indígenas.
Defendeu, ainda, que havia terras indígenas em excesso, posição da área de
segurança nacional que seria retomada sempre que possível. Ao proibir o líder
xavante Mário Juruna de depor no Tribunal Russel, na Holanda, facultou a este a
oportunidade para uma das primeiras manifestações expressivas de índios contra
um presidente da fundação.
Suas principais linhas de ação foram mantidas pelo seu
sucessor, o coronel-aviador e ex-integrante do Conselho de Segurança Nacional Paulo Moreira Leal, assessor da gestão Nobre da Veiga, que assumiu o cargo em outubro de 1981,
nele permanecendo até julho de 1983. Suas propostas de reestruturação
administrativa e de admissão maciça de pessoal não se efetivaram. Estabeleceu
convênios nas áreas de saúde, educação e exploração mineral. Tentou retomar a
idéia de critérios de indianidade aplicando-a a povos específicos. Deve-se
destacar, porém, que foi sob sua gestão que a regularização de terras indígenas
escapou à alçada da Funai: o Decreto Interministerial nº 88.118, de 23 de
fevereiro de 1983, criou um grupo interministerial em que se definiria a
regularização das terras indígenas. Daí por diante, a Funai não mais conseguiu
monopolizar todas as etapas deste processo administrativo. Tal alteração se deu
consoante a idéia de instituir “grupos especiais de terras” (por exemplo, Grupo
Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins — GETAT; Grupo Executivo de Terras do
Baixo Amazonas — Gebam) como dispositivos paramilitares de intervenção fundiária,
e com a generalizada militarização dos problemas fundiários, sobretudo na
Amazônia.
Otávio Ferreira Lima (jul. 1983-abr. 1984), economista,
funcionário do Ministério do Interior, passou a usar a Polícia Federal e a
Polícia Militar contra os índios que, cada vez mais, acossaram a presidência do
órgão em Brasília. Foi demitido frente à sua incapacidade de negociar no
conflito gerado pela ação dos Txucarramãe ao interditarem a BR-80 e fazerem
reféns para reivindicar terras adicionais às que ocupavam. Em sua gestão o
Decreto nº 88.985, de novembro de 1983, foi promulgado: autorizando a entrada
de empresas mineradoras em áreas indígenas, associava-se ao supracitado
88.118/83 na escalada de corte do poder de controle da Funai sobre a definição
e exploração de terras indígenas.
Seu
sucessor, Jurandi Marcos da Fonseca (maio 1984-set. 1984), advogado, foi chefe
de gabinete das gestões Bandeira de Melo e Ismarth de Oliveira. Deu início à
nomeação para cargos de índios que se projetaram no cenário da política local
ou regional, processo de aprofundamento de vínculos clientelísticos, agora
associados a cargos da administração nacional, que só tenderia a crescer.
Procurou divulgar que uma nova era da política indigenista iniciava-se com a
participação intensa de índios. Saiu alegando recusar-se a assinar a portaria
que regulamentaria o Decreto nº 88.985.
Nélson Marabuto Domingues (set. 1984-abr. 1985), policial,
ex-chefe da Assessoria de Segurança e Informação da Funai e ex-superintendente
da Polícia Federal em São Paulo, teve o papel de gerir o processo, mais geral
na administração pública direta (sobretudo na área fundiária e de meio
ambiente), de saída dos quadros mais diretamente comprometidos com a ditadura
militar e preparação para um regime democrático. Isto significou readmitir
diversos quadros, desde antropólogos a indigenistas. Contratou principalmente
consultorias para as áreas de maior importância para a ação indigenista, como a
da definição de terras indígenas, procurando racionalizar rotinas, preparar a realização
de novos concursos e conferir uma mínima estabilidade operacional à Funai, que
nos planos prévios à instalação da Nova República participou dos esforços para
uma tentativa de reforma agrária. Deixou a presidência com a instalação do
governo de José Sarney.
Os três presidentes seguintes foram: Aírton Carneiro de
Almeida (18/4/1985), que durou apenas um dia no cargo por pressão de índios,
Gérson da Silva Alves (abr. 1985-set. 1985) e Álvaro Vilas Boas (set. 1985-nov.
1985), irmão dos sertanistas Cláudio e Orlando Vilas Boas. Todos serviram para
demonstrar a crise interna entre as diversas facções e seus aliados indígenas,
disputando a hegemonia dentro do aparelho. A escolha de Apoena Meireles,
sertanista, filho do antigo funcionário do SPI e sertanista de renome Francisco
Meireles, contemplou alguns setores dentro da Funai. Produziu uma alteração de
estatutos em 1986, criando as superintendências regionais, com maior autonomia
que as delegacias. A idéia era descentralizar, inclusive, a gestão de recursos,
de modo a diminuir a visibilidade da sede em Brasília, tirando-a das páginas de
escândalo da imprensa. Apesar da grande distribuição de recursos para índios,
sobretudo a certas facções Xavante, procurou retirar os que ficavam
permanentemente em Brasília, como parte dos jogos de poder do faccionalismo
interno: rompeu contratos mantidos pela Funai para hospedagem de índios e
cortou verbas manipuladas para tais fins. Saiu da presidência denunciando a
ingerência do ministro do Interior, Costa Couto, na indicação de nomes por ele
não aprovados, para a superintendência de terras e seis superintendências
regionais.
O presidente seguinte deve ser visto como um dos mais
importantes dentro da trajetória da instituição, pois inauguraria uma série de
gestões diretamente condicionadas ao Conselho de Segurança Nacional e,
posteriormente, à Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional (Saden),
deixando uma rede a ele articulada, até o presente, dentro da Funai: Romero
Jucá (maio 1986-set. 1988), economista pernambucano, ex-diretor do Projeto
Rondon, indicado pelo seu conterrâneo, ex-chefe da Casa Civil do governo
Figueiredo, Marco Maciel, encarnou um certo estilo modernizante e
racionalizador, ao gosto da área de segurança e inteligência militar. Contando
com o uso da polícia contra os índios em Brasília e uma eficiente assessoria de
marketing, conseguiu retirar a Funai das páginas de jornal, passando a
divulgar uma imagem de eficácia. Encampou como da Funai o discurso, vindo do
CSN, de que havia “muita terra para pouco índio”, usando, enquanto falacioso
indicador dessa assertiva, a “relação hectare/índio”, servindo assim aos
interesses antiindígenas de mineradoras e madeireiras na Amazônia. Tais
argumentos foram de fundamental importância na tentativa de derrotar as posições
da Coordenação Nacional dos Povos Indígenas na Assembléia Nacional
Constituinte, que todavia obteve vitórias expressivas. Conquanto tenha
divulgado que estava demitindo funcionários por excesso de pessoal, admitiu
mais de quatrocentos novos integrantes em seu estado de origem, passando a
Funai à cifra de 4.200 funcionários. Foi na sua gestão que o Exército iniciou a
implantação do chamado Projeto Calha Norte, que bloqueou, condicionando-as às
diretrizes do CSN através das forças militares, todas as ações indigenistas nas
áreas da faixa ao norte dos rios Solimões e Amazonas, suscitando perseguições a
lideranças indígenas, missionários, indigenistas, antropólogos e ONGs de apoio
aos índios, acusadas de conspirar contra a soberania nacional e pela internacionalização
da Amazônia. Promoveu inúmeros contratos ilícitos com madeireiras para
exploração de áreas indígenas, tendo a Funai sofrido intervenção do Tribunal de
Contas da União (TCU) por irregularidades financeiras. Posicionando-se contra a
presença de garimpeiros em áreas indígenas, assinou um convênio Funai-DNPM para
exploração de áreas indígenas por empresas mineradoras. Deixou a presidência do
órgão nomeado para governador do estado de Roraima, onde passou a defender a
invasão do território Ianomâmi por garimpeiros.
Os presidentes Íris Pedro de Oliveira (set. 1988-mar. 1989),
advogado e ex-presidente do GETAT, o coronel Aírton Câmara (mar. 1990-ago.
1990) e o sargento da reserva da Aeronáutica, ex-assessor de Íris Pedro de
Oliveira e amigo de Romero Jucá, Cantídio Guerreiro Guimarães (ago. 1990-jul.
1991), demitido sob a acusação de molestar índias no Parque do Xingu, seguiram
a esteira de presidentes perfilados pelo CSN/Saden, inaugurado por Jucá.
Obstaculizaram, sobretudo, o processo de regularização de terras indígenas,
firmando contratos e convênios viabilizando a exploração de terras indígenas.
A
proximidade da Eco-92, conferência de cúpula da ONU sobre meio-ambiente,
realizada no Rio de Janeiro em 1992, e a necessidade de construir uma imagem positiva
para a área de questões relativas ao meio ambiente, fez com que Fernando Collor
de Melo escolhesse para presidente o sertanista Sidnei Ferreira Possuelo (jul. 1991-maio 1993). Iniciado no sertanismo por Cláudio e Orlando
Vilas Boas, e por Francisco Meireles, integrante da Funai desde 1972, já havia
liderado inúmeras frentes de atração e chefiava a Coordenadoria de Índios
Isolados da Funai quando nomeado. Possuelo enfrentou, com suas próprias
alianças, as redes de corrupção dentro da Funai, sofrendo fortes oposições
internas por isto. Para tanto, dentre outras coisas, pôs fim à descentralização
administrativa e à autonomia permitida pelo estatuto de superintendências — que
passariam a administrações regionais, subordinadas à Diretoria Geral de Assistência,
em Brasília — chamando à presidência as responsabilidades sobre os três níveis
de ação da Funai. Promoveu, para tanto, uma reforma estatutária e regimental, a
última a ser decretada. Tentou reaver as funções mais amplas da Funai, lutando
contra os decretos nºs 23,
24, 25 e 26, de 1991, e criou o Conselho de Defesa dos Direitos Indígenas, para
o qual convidou integrantes de ONGs, das universidades e associações
científicas. Demarcou de modo contínuo as terras Ianomâni — um dos pontos de
maior polêmica com os militares, inconformados por ser uma área de fronteiras,
que conferiu visibilidade internacional positiva a Collor — e, a partir de
entendimentos que acabariam por redundar no PPG-7 e no Pptal, assinaria os três
primeiros convênios de parcerias com ONGs para demarcação de terras indígenas,
enfrentando um dos lobbies
internos à Funai: o das
empresas de topografia e demarcação de terras. Em sua gestão a Funai assumiu a
coordenação do GT Interministerial que esboçou dois projetos de um estatuto das
sociedades indígenas (em substituição à Lei nº 6.001/73), que se juntaram ao
primeiro a ser encaminhado à Câmara dos Deputados pelo Núcleo de Direitos
Indígenas (NDI), ONG com sede em Brasília com papel fundamental no
estabelecimento de patamares básicos de ação jurídica partindo do novo texto
constitucional. A essas propostas se juntou outra, enviada pelo Conselho
Indigenista Missionário-CNBB. Possuelo foi demitido pelo ministro da Justiça
Maurício Correia, por ter se oposto ao “clientelismo de cargos” do ministro do
Gabinete Civil, Henrique Hargreaves, e por pressões de militares e mineradoras.
De maio a setembro de 1993, Cláudio dos Santos Romero, funcionário de carreira da Funai desde o início dos anos 1970,
diretor geral de assistência da gestão anterior, ex-coordenador do Projeto
Xavante e ex-diretor do Parque Nacional do Xingu, viveu um breve, contraditório
e conturbado mandato. Sucedeu-o Dinarte Nobre de Madeiro (set. 1993-set. 1995),
também funcionário da Funai desde os anos 1970. Na época de sua escolha era
assessor da presidência da Funai para o Norte e Nordeste, tendo coordenado a
retirada de garimpeiros da área Ianomâmi. Realizou gestão discreta e estável,
durante a qual os funcionários promoveram um fórum de debates internos sobre o
aparelho, que viria a demonstrar os graves problemas operacionais existentes.
Na sua gestão, antes do fim do governo Itamar Franco ainda, a formulação do
Estatuto das Sociedades Indígenas por Comissão Especial da Câmara, dotada de
poder terminativo, seria concluída mas, em fins de 1994, por interesse do
governo que entraria, o então deputado Artur da Távola (PSDB-RJ) apresentaria
recurso para que o projeto de lei seguisse para a Câmara, onde até abril de
1998 continuaria parado. Madeiro manteve-se no cargo com a mudança para o
governo Fernando Henrique Cardoso, mas sucessivos embates com o secretário
executivo do Ministério da Justiça (MJ), Mílton Seligman, no tocante à
demarcação de terras indígenas, e o desprestígio do ministro da Justiça, Nélson
Jobim, levaram-no a pedir demissão mais de uma vez, sem que esta fosse aceita,
mas também sem ser ouvido no tocante à política indigenista.
Márcio José Brando Santilli foi escolhido, em setembro de
1995, por Fernando Henrique Cardoso, após reunião com antropólogos
representantes de sociedades científicas e de ONGs em torno da deliberação do
ministro Jobim de editar decreto (nº 1.775, de janeiro de 1996) permitindo que
terceiros contestassem as demarcações de terras indígenas através do princípio
do contraditório, aplicado, neste caso, retroativamente. Filósofo de formação,
ex-deputado pelo PMDB de São Paulo (1982-1986) e ex-integrante do grupo
político do presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo sido membro da Comissão
do Índio na Câmara dos Deputados, e o principal articulador, atuando no
Congresso Nacional entre 1987 e 1988, da Coordenação Nacional dos Povos
Indígenas na Constituinte, fundador e secretário executivo do NDI (que mais
tarde tornou-se Instituto Socioambiental — Isa), não contava com as
preferências de Nélson Jobim. Além da oposição do Cimi, Santilli contaria com
numerosos inimigos dentro da própria Funai, ao denunciar e desativar redes de
práticas corruptas, a ligação destas com lojas maçônicas, ao cortar o
fornecimento de diárias para que se mantivesse em Brasília um contingente
indígena aliado a facções internas à Funai, com fins de pressão política
interna. A gestão de Márcio Santilli realizou o mais acurado — se não único —
mapeamento institucional, gerando dados que deveriam suportar uma ampla reforma
no planejamento e na execução da política indigenista, com bases em projetos
consistentes, além de discussões em diferentes instâncias da sociedade civil e
do Estado, descaracterizando completamente a necessidade de um aparelho tutelar
da natureza da presente forma como se estrutura a Funai. Obteve a ampliação de
verbas para a instituição, constatando haver mais inexistência de planejamento
e rotinas, desorganização e práticas corruptas do que falta de recursos;
preparou uma reforma de estatutos e regimento, além de uma regulamentação do
poder de polícia que não chegariam a ser encaminhadas. As pressões internas
crescentes, agravadas pelo medo corporativo frente aos anúncios do Mare de
reformas mais amplas do aparelho de Estado, o desvio pelo MJ de recursos
obtidos por Santili para a Funai, além da falta de suporte governamental de
fato para implementar as reformas internas necessárias, levaram-no a deixar o
cargo em fevereiro de 1996.
Foi sucedido por Júlio Marcos Germany Gaiger (mar.1996-jul.
1997), advogado gaúcho, que dirigiu a Associação Nacional de Apoio ao Índio
(ANAI), de Porto Alegre (RS), de 1977 a 1986. De lá saiu para ser assessor
jurídico do Conselho Indigenista Missionário até 1991 e, daí por diante,
assessor parlamentar concursado na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio
Ambiente e Minorias. Foi escolhido pelo ministro Nélson Jobim, com quem
trabalhou na formulação do Decreto nº 1.775/96. Sua gestão procurou,
aproximando-se de diversas facções internas da Funai, agir em consonância com o
MJ. Deu-se curso à implantação do Pptal e às regularizações de terras
indígenas, bem como às respostas às contestações facultadas pelo Decreto nº
1.775/96. Numerosas alterações foram feitas na morfologia organizacional da
fundação, mas teriam que ser desfeitas, pois só poderiam ser realizadas por
meio de alterações regimentais, logo por decreto ministerial. Gaiger ficaria no
cargo pouco tempo além da saída de Jobim da pasta da Justiça.
Sulivan Silvestre (ago. 1997-), ex-procurador do estado de
Goiás, foi a escolha do novo ministro da Agricultura, Íris Resende, para o
cargo de presidente da Funai. Desde sua posse fez declarações no sentido de
abrir espaço para a presença indígena e prestigiar as redes internas de poder.
Mais um fórum de discussão interno entre funcionários foi realizado, sem
maiores conseqüências práticas, e retornou-se à estrita aplicação do último
regimento válido.
Antônio
Carlos de Sousa Lima colaboração
especial
A
Funai na primeira década do novo século
Em seu discurso de posse, Sulivan Silvestre afirmou ser a demarcação de terras a prioridade de
sua gestão e enfatizou a necessidade de uma aproximação entre a FUNAI, os
índios e demais entidades de apoio. Procurou estruturar o Conselho
Deliberativo e Participativo das Lideranças Indígenas, promovendo o diálogo
entre a FUNAI, os representantes indígenas, as ONGs, o Conselho Indigenista
Missionário (CIMI) e o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações
Indígenas do Brasil (CAPOIB), sempre em defesa da descentralização do órgão
indigenista. Durante sua gestão, grandes extensões de terras indígenas
foram regulamentadas. Faleceu em fevereiro de 1999, antes que completasse seu
mandato, vítima de um acidente aéreo durante uma viagem de Brasília a Goiás, onde iria se reunir
com os índios Fulni-ô e Pankararu para tratar de assuntos referentes à saúde,
educação, meio ambiente e demarcações de terras.
Em 22 de fevereiro de 1999, José Márcio Panoff tomou posse na
presidência da Funai e em seu discurso, prometeu investir na aprovação de um
novo Estatuto do Índio, que refletisse uma política realista, voltada para
proporcionar às sociedades indígenas o legítimo direito de explorar em bases
racionais os recursos naturais existentes em suas terras. Sua atuação foi
marcada pela defesa de parcerias entre o estado e os municípios para melhorar
os atendimentos às sociedades indígenas. Entretanto, sua gestão também foi marcada por alguns
conflitos, tais como o do dia 31 de março, no qual Lacerda foi retirado à força
do prédio da Funai por 51 guerreiros Xavante, que se revoltaram devido ao
afastamento do diretor da Administração Executiva Regional (ERA) de Nova
Xavantina, no Mato Grosso. Além disso, Lacerda teve que enfrentar, a partir de
maio de 1999, os inquéritos por ocasião da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Funai, promovida por parlamentares que visavam investigar
o relacionamento do órgão federal com ONGs, a maneira como antropólogos haviam
sido admitidos na instituição, e como os recursos vinham sendo aplicados, em decorrência
das denúncias públicas acerca de um caos orçamentário na Funai.
Em novembro do mesmo ano, por pressão dos índios, de várias
instituições e ONGs indigenistas, Lacerda colocou seu cargo à disposição e foi substituído por Carlos Frederico Marés, cujo nome foi indicado para a presidência da República pelo
então ministro da Justiça, José Carlos Dias, Antes de assumir o cargo, Marés apresentou ao ministro 13 propostas como condição para poder assumir a presidência da
Funai, dentre elas, a homologação da reserva indígena Raposa/Seraa do Sol. Sua gestão
foi curta, porém, e marcada por atos polêmicos. Logo no início de 2000, ano da
comemoração dos 500 anos do “descobrimento do Brasil”, declarou publicamente
que não haveria o que comemorar: “É uma festa da chegada das caravelas, festa
dos brancos. A maior parte dos índios brasileiros tem contato com a civilização
branca há bem menos de 500 anos”.
Marés deu início às negociações em torno da apresentação da
nova proposta para o Estatuto do Índio. Em 17 de abril de 2000, apresentou às lideranças indígenas, que se reuniram em Monte Pascoal por ocasião da marcha de protesto contra as comemorações dos 500 anos, a
proposta do governo para o novo Estatuto do Índio, intitulada “Estatuto do
Índio e das Comunidades Indígenas”, antes mesmo que o texto tivesse sido
submetido ao Legislativo.
Em 22 de abril, após presenciar uma ação da polícia contra a
marcha dos índios que iam de Coroa Vermelha a Porto Seguro para protestar
contra as comemorações dos 500 anos, Marés anunciou que pediria demissão da
presidência da Funai, sob a justificativa de que não poderia fazer parte de um
governo que fazia agressão física ao movimento indígena organizado.
Com a demissão de Marés, a presidência da Funai passou a ser ocupada interinamente pelo antropólogo Roque de Barros Laraia, que durante a gestão de Marés fora o responsável pela Diretoria de Assuntos Fundiários. Em
entrevista, Laraia disse que os maiores problemas que enfrentou em sua curta
gestão na presidência, foram o esvaziamento dos quadros profissionais, a
escassez de recursos e a pressão constante de grupos indígenas, como os Xavante
e os Fulniô. Após 29 dias, em maio de 2000 o ministro da Justiça José Gregori nomeou Glênio Alvarez para
a presidência da Funai. Alvarez, que na ocasião já era funcionário da Funai há
14 anos, assumiu o
cargo dizendo pretender implantar programas conjuntos com governos estaduais, e
que seu principal desafio seria contornar a falta de verbas para desenvolver os programas previstos para aquele ano. Em junho de 2002, Glênio Alvarez foi exonerado do cargo, dois dias após o projeto de lei de mineração de
terras indígenas ter sido retirado da pauta do Congresso. Glênio havia se
manifestado contra a proposição, de autoria do então senador Romero Jucá (PSDB-RO), que na década de 1980 presidira a Funai por dois anos (1986-1988), e que foi apontado então como um dos pivôs da exoneração de Alvarez.
Com a saída de Glêncio Alvarez, foi nomeado para o cargo da
presidência da Funai Otacílio Antunes Reis Filho, antigo funcionário do órgão
que, na ocasião, ocupava o cargo de diretor de Artesanato. Reis Filho, que já
havia sido diretor de Planejamento na gestão de Romero Jucá à frente da Funai,
dirigiu a Fundação por um curto período de 46 dias, entre junho e julho de
2002.
Em julho de 2002, o ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, apresentou o nome do antropólogo Artur Nobre Mendes para ocupar a presidência da Funai e, em agosto, ele tomou posse do cargo. Funcionário de carreira da Funai desde 1983, Mendes sempre
havia atuado na área fundiária. Foi chefe do Departamento de Identificação e
Delimitação (Deid), coordenador de Projetos Especiais e coordenador técnico do Projeto
Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal
(PPTAL), que ligado ao Programa Piloto de Proteção às Florestas Tropicais do
Brasil (PPG7), tinha por objetivo demarcar 160 terras indígenas. No momento em
que foi nomeado presidente da casa, ocupava a diretoria do Departamento de
Assuntos Fundiários (DAF), onde estava desde a gestão de Glênio da Costa
Alvarez. Mendes
permaneceu à frente da Funai até janeiro de 2003, quando pediu demissão do
cargo.
Em fevereiro de 2003, Eduardo Aguiar de Almeida tomou posse
da presidência da Funai. Jornalista e membro fundador da sociedade Brasileira de Indigenistas, Almeida já havia trabalhado na Funai como assessor da
presidência, entre janeiro e agosto de 2000. Em sua gestão, Almeida concentrou
parte de seus esforços na preparação da Conferência Nacional de Políticas
Indigenistas, um dos itens mais relevantes na pauta do governo do presidente
Luis Inácio Lula da Silva (2003-2007) para a questão indígena, já expresso no documento de campanha
de Lula à presidência, intitulado “Compromisso com os Povos Indígenas”, e cujo
objetivo era criar uma instância de articulação entre os setores governamentais
responsáveis pelas demandas indígenas, os representantes dos
índios e outros setores da sociedade civil. Entretanto, nem a conferência foi realizada, tão pouco foi
implantada qualquer instância de articulação.
No âmbito das reivindicações territoriais, Almeida criou
Grupos de Trabalho para identificar 17 novas terras indígenas e reestudar os limites de outras dez. Outro destaque de sua gestão foi a determinação do critério
de “auto-identificação” como instrumento fundamental para que se reconhecem como indígenas os grupos que reivindicassem esta condição. Assim, conseguiu adequar as ações do Estado
brasileiro à convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Eduardo Aguiar de Almeida ficou apenas seis
meses na presidência da Funai, tendo sido exonerado do cargo em 15 de agosto
de 2003. Em mais de uma ocasião, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, declarou-se insatisfeito com o seu trabalho à frente da
Funai por perceber uma “falta de sintonia” de Almeida com os interesses daquele
Ministério. Em entrevista a órgãos da imprensa, Almeida atribuiu sua demissão a fortes pressões oriundas dos setores anti-indigenistas da política
nacional, citando diretamente os nomes dos senadores Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) e Romero Jucá, e dos governadores Blairo Maggi, do Mato
Grosso, Jarbas Vasconcelos, de Pernambuco, e Luiz Henrique da Silveira, de Santa Catarina.
Em setembro de 2003, a presidência foi assumida pelo antropólogo Mércio
Pereira Gomes, que permaneceria no cargo até março de 2007. Durante sua gestão, realizou a homologação de 67 terras
indígenas, somando
uma totalidade de 11 milhões de hectares, nos quais estava incluída a região de Raposa Serra do Sol, reserva situada no estado de Roraima, cujo processo de demarcação teve início ainda na década de
1970 e que foi marcado por conflitos entre os índios da região que
reivindicavam a ocupação histórica do território e um grupo de arrozeiros que ali se instalou no início dos anos 1990, ampliando sua área de produção, mesmo sabendo que as terras eram de
propriedade da União. Ao final de sua administração na Funai estavam ainda em processo de demarcação mais de 50 novas terras, inclusive
a Terra Indígena Trombetas-Mapuera, entre os estados do Amazonas, Pará e
Roraima, que somava quatro milhões de hectares.
Em abril de 2007, Mércio Pereira Gomes passou a presidência
da Funai para seu substituto, Márcio Meira, cuja atuação no âmbito da questão indigenista data desde sua participação na luta pelos direitos dos povos
indígenas na Constituição Federal de 1988. Foi também responsável pelo Grupo de
Trabalho da Funai que identificou as terras indígenas do Médio Rio Negro. Na equipe de
transição do governo Lula, em 2002, Márcio Meira fora um dos
interlocutores das organizações indígenas. Na cerimônia de posse, Meira destacou que caberia ao órgão ser o articulador das
políticas de atenção aos povos indígenas, até então espalhadas por diversos
ministérios, e que sua gestão daria prioridade à participação direta do
movimento indígena na formulação e atualização dessas políticas. Prometeu,
ainda, que sua primeira medida seria instalar a Comissão Nacional de Política
Indigenista (CNPI), cujos trabalhos estavam paralisados há mais de um ano.
Conforme o prometido, a CNPI foi instalada poucas semanas
após sua posse na presidência da Funai, em 19 de abril de 2007. Na mesma
ocasião, o presidente Lula assinou os decretos de homologação de três terras
indígenas e os de ratificação da homologação de outras três, num total de 959,4
mil hectares em territórios do Pará, Amazonas, santa Catarina, Paraná e Acre.
Assinou, ainda, as portarias declaratórias de mais sete terras indígenas no
Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Paraná e Acre, num total de quase 309 mil
hectares de terras.
Adrianna Setemy (atualização)
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