MISSÃO
NIEMEYER
A crise de 1929 nos mercados financeiros e de mercadorias
internacionais provocou a interrupção dos fluxos relacionados a empréstimos
externos tomados por entidades brasileiras no exterior, bem como sensível
redução dos preços das principais exportações brasileiras. A insistência em
manter a paridade do mil-réis em relação às moedas-referência nesta conjuntura
provocou a acelerada erosão das reservas cambiais brasileiras, sublinhando a
necessidade de serem negociados empréstimos externos vultosos.
Já
em meados de 1930, antes portanto da Revolução de Outubro, durante a visita do
presidente eleito, Júlio Prestes, ao Banco da Inglaterra, foi discutida a
conveniência da visita de uma missão ao Brasil para “investigar a situação
financeira” e elaborar recomendações relativas à estabilização do mil-réis e à
criação de um banco central ortodoxo. A posição britânica condicionava a visita
da missão a um compromisso prévio brasileiro no sentido de aceitar
integralmente as suas recomendações.
A intenção original do governo brasileiro encaminhava-se para
a indicação de uma comissão internacional da qual participariam representantes
da Grã-Bretanha, dos Estados Unidos e da França. O estado insatisfatório das
relações políticas entre o Brasil e os Estados Unidos no período inicial do
Governo Provisório, relacionado ao apoio “exagerado” do governo norte-americano
ao presidente Washington Luís, resultou ao final no convite de uma missão
exclusivamente britânica.
Objetivos e recomendações
A
missão liderada por sir Otto Niemeyer, importante funcionário do Banco da
Inglaterra, tinha por termos de referência “recomendar reformas financeiras que
assegurassem a manutenção do equilíbrio orçamentário, a estabilização cambial e
a reforma monetária, a reconstrução do Banco do Brasil como um banco central
independente (do governo) e a limitação do endividamento externo direto e
indireto por parte dos governos federal e estaduais”. É evidente, com base nos
termos de referência, que a missão não estava preocupada com a escolha de uma
entre várias opções de política econômica, mas sim com a instrumentação da
política econômica preconizada para o Brasil em Londres. A missão, além de
elaborar recomendações de política econômica, envolveu-se em negociações
relacionadas a diversas questões de natureza econômica pendentes entre o Brasil
e a Grã-Bretanha, desrespeitando seus termos de referência originais.
O
convite à missão foi apresentado à opinião pública brasileira como um convite
espontâneo do governo brasileiro a sir Otto Niemeyer e não como precondição à
concessão de empréstimos adicionais ao Brasil pela casa Rothschild.
A missão visitou o Brasil em meados de 1931, sendo seu
relatório publicado em julho, enfatizando como alicerces fundamentais da
“reconstrução econômica” do Brasil a manutenção do equilíbrio orçamentário e a
estabilização cambial.
As principais recomendações relativas às contas públicas
sublinharam a necessidade de reduzir o déficit dos serviços públicos, aumentar
a tributação direta reduzindo eventualmente o imposto de importação, abolir os
impostos internos de exportação e congelar os externos, manter o orçamento
unificado reduzindo a importância dos fundos especiais e implantar novos
sistemas de contabilidade e auditoria públicas.
A
visão ortodoxa da missão quanto à política de gasto público pode ser
contrastada com o ceticismo do Relatório Macmillan, publicado em Londres à
mesma época que o Relatório Niemeyer, quanto à eficácia de uma política
clássica deflacionária, especialmente no caso de economias exportadoras de
produtos primários.
A despeito do que sugerem alguns autores revisionistas, a
política de gasto público não se caracterizou na prática por ortodoxia, embora
ao nível do discurso raramente houvesse sido abandonado o equilíbrio das contas
públicas corno meta desejável. Ao nível do concreto, entretanto, e não caberia
aqui reproduzir a controvérsia, parece claro que os déficits públicos efetivos
na primeira metade da década de 1930 não são irrelevantes como explicação da
precocidade da recuperação econômica brasileira.
O segundo conjunto de recomendações do relatório — relativas
à estabilização cambial — reservava papel preponderante à criação de um banco
central privado em linhas ortodoxas, de acordo com o modelo de aplicação
universal preconizado pelo Banco da Inglaterra. A missão recomendou que fossem
retiradas do Banco do Brasil as funções de banco central que este exercia na
prática.
O
novo banco central teria um capital relativarnente reduzido, distribuído
eqüitativamente entre os bancos comerciais e o público (“a subscrição das ações
estaria ao alcance de quase todos os brasileiros”). Os bancos, entretanto, não
poderiam em qualquer caso subscrever mais de 3,3% do capital do banco central
ou 8% do seu próprio capital. As responsabilidades de emissão seriam
transferidas para o novo banco central, estabelecendo-se estatutariamente que
30% do seu passivo exigível seriam lastreados por reservas em ouro ou,
preferencialmente, em divisas, pois estas últimas seriam estritamente
equivalentes “do ponto de vista de garantia” e menos onerosas do que as
reservas metálicas. Os bancos comerciais manteriam pelo menos 10% do seu
exigível na forma de depósitos no banco central.
A
diretoria do banco seria eleita pelos acionistas, os quais, além disto,
indicariam o presidente e o vice-presidente, escolha esta passível de
confirmação pelo presidente da República. Uma vez que “os perigos do controle
ou interferência estatal na gestão dos bancos centrais haviam sido amplamente
demonstrados pela experiência nos últimos 25 anos”, seria vedada a eleição de
diretores que tivessem qualquer vínculo com os poderes Legislativo e Executivo.
Seria recomendável a colaboração, pelo menos no período inicial de operação, de
um experto estrangeiro de reconhecida competência. A reforma dos estatutos
dependeria da aprovação por parte de 2/3 de cada categoria de acionistas
(bancos e públicos).
As recomendações da missão com relação à constituição e às
regras de operação do banco central estavam sempre referidas à concepção de
banco central “cosmopolita” que havia sido implementada sob a inspiração do
Banco da Inglaterra em diversos países europeus simultaneamente com a
estabilização de suas moedas, especialmente na segunda metade da década de
1920. Minimizava-se, de um lado, a interferência do Estado na gestão do banco
e, por outro lado, garantia-se a possibilidade de ampliação da influência dos
capitais estrangeiros na condução da política econômica.
No que se refere à proposta de estabilização do mil-réis, o
relatório demonstrava alguma ingenuidade ao considerar seriamente a
possibilidade de ser lançado um grande empréstimo brasileiro em Londres em 1931
— a libra esterlina seria desvalorizada menos de dois meses após a sua
publicação. Esta visão reflete-se ainda nas considerações sobre o tratamento
dispensado ao capital estrangeiro, considerando a retomada dos fluxos usuais de
capital como função exclusiva do bom comportamento das autoridades brasileiras.
A
evidência disponível em fontes primárias indica que a criação de um banco
central e a estabilização do mil-réis em 1931 nunca foram alternativas
seriamente consideradas pelo governo brasileiro, cujo objetivo fundamental era
extrair um compromisso de Niemeyer com relação à suspensão do pagamento do
serviço da dívida pública externa, o qual foi eventualmente decretado
unilateralmente em setembro de 1931.
O
relatório incluía, além das recomendações sobre gasto público e o banco central
cum estabilização, observações de natureza extremamente geral sobre o problema
cafeeiro, censurando-se o envolvimento governamental nos esforços de
valorização cafeeira. Estas observações constituem talvez a parte mais
romântica do relatório, reflexo do despreparo da missão em termos de
conhecimento das peculiaridades do país, o qual não poderia ser disfarçado nem
mesmo por estratagemas tais como fazer com que a missão visitasse cafezais,
“não com a expectativa de apreender a realidade, mas para evitar críticas que
pudessem questionar as recomendações da missão se esta não visitasse São Paulo
e investigasse a conjuntura do café”.
De
modo geral, as recomendações da missão são apenas marginalmente distintas
daquelas sugerido por Niemeyer em outros esforços de catequese relativa aos
mesmos temas. Na Nova Zelândia, na Austrália, na Índia, na Argentina, a
“solução” das dificuldades econômicas e financeiras dependia da aplicação de um
estereotipado conjunto de recomendações, invariáveis em relação à situação da
conjuntura internacional e às peculiaridades nacionais.
Os resultados concretos imediatos da missão foram
praticamente nulos, e a adoção de algumas das políticas propostas, tais como a
abolição de taxação das exportações em nível nacional e a limitação da
capacidade de endividamento dos estados, deve ser entendida como resultado
antes da estratégia política do governo Vargas — no sentido de redução da
autonomia estadual do que das recomendações da missão. Como se sabe, um embrião
do banco central — a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) — foi
criado apenas em 1945 estritamente sob o controle do Banco do Brasil.
Uma
conseqüência indireta importante da missão foi, entretanto, o fortalecimento da
posição privilegiada de sir Otto Niemeyer, que iria refletir-se na negociação
de acordos futuros sobre o serviço da dívida pública externa relativamente
favoráveis aos interesses britânicos.
Marcelo de Paiva Abreu colaboração especial
FONTES: ABREU, M.
Missão; NIEMEYER, O. Niemeyer.