MOVIMENTO
FEMINISTA
Movimento
surgido no Brasil em 1975, na ocasião da instituição pela Organização das
Nações Unidas (ONU) do Ano Internacional da Mulher, com os seguintes objetivos:
identificar e denunciar as discriminações e as desigualdades que afetavam a
situação da mulher brasileira, lutar pela liberação das mulheres enquanto sexo
dominado e oprimido, promover a conquista de direitos civis para todas as
mulheres e de espaços públicos de atuação para as representantes dessa minoria
política. Sua existência e atuação como “novo movimento social” cujas
singularidades e particularidades se inspiram nas formas e tipos originais de
mobilizações antiinstitucionais e antiautoritárias que emergem nas sociedades
pós-industriais nos anos 1960 e 1970 (movimentos de liberação da mulher,
ecológicos, regionalistas e estudantis, contraculturais) duram até 1985. O
movimento feminista brasileiro se compõe de associações e coletivos de
diferentes orientações e características, organizados de maneira mais ou menos
informal, muitos dos quais preferem utilizar como referência a denominação
“movimento de mulheres”, “movimento das mulheres” ou ainda “movimento
feminino”.
Herança
e origens
Mobilizações de mulheres com reivindicações feministas
existiram no Brasil em dois períodos anteriores. O primeiro, na segunda metade
do século XIX, quando uma série de jornais editados por mulheres levantou a
questão da emancipação feminina através da reivindicação do acesso à educação e
à instrução. O segundo período, na primeira metade do século XX, quando uma
nova geração de feministas — lideradas por Berta Lutz em torno da Federação
Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) e por Natércia da Silveira em torno
da Aliança Nacional de Mulheres — investiu prioritariamente na luta pelo direito
de voto (conquistado pelas brasileiras em 1932), em defesa do trabalho feminino
e da promoção social. Nesse mesmo período a escritora Maria Lacerda de Moura,
além de desenvolver uma reflexão sobre a cidadania e os direitos políticos, a
exemplo de suas contemporâneas defensoras do direito de voto, se interessou
pelas discriminações sofridas pela mulher no âmbito da família, pelos
mecanismos de criação do conformismo e da submissão no trabalho doméstico e
assalariado, aparecendo como precursora de alguns aspectos mais libertários e
inovadores do pensamento feminista contemporâneo.
A palavra “feminismo” desapareceu do vocabulário corrente no
Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960, apesar da existência de associações
femininas e de mobilizações de mulheres (de esquerda e de direita). A nova
geração de feministas surgida em 1975 se constitui de mulheres nascidas entre
1940 e 1950, que viveram sua infância e adolescência num clima de otimismo e
esperança criado por ideais de progresso e de desenvolvimento e entraram na
idade adulta quando a modernização da sociedade e a mudança de mentalidade
começavam a provocar certas alterações de comportamento, a influenciar as
relações entre os sexos. Entretanto, quando os militares assumiram o poder em
1964, inaugurando novo período ditatorial, o feminismo das primeiras mulheres
jornalistas do final do século passado, as vidas atribuladas de algumas
mulheres transgressoras, pioneiras, isoladas e solitárias, assim como as
utopias sociais transformadoras veiculadas por algumas anarquistas nas
primeiras décadas do século XX eram apenas lembranças muito longínquas, quase
apagadas das memórias, estando ausentes da maior parte dos livros de história.
E o direito de voto, grande conquista formal das feministas do passado, mas que
não tinha modificado substancialmente as relações entre os sexos, foi
seriamente limitado pelo novo regime, não podendo, inclusive, ser exercido para
eleição de presidentes durante mais de 20 anos.
O Ano Internacional da Mulher instituído pela ONU em 1975 foi
um ponto de referência fundamental para o surgimento do novo movimento
feminista no Brasil, por ter propiciado, numa conjuntura política altamente
repressiva, uma oportunidade e um espaço de reunião e mobilização. Nesse
momento, grupos que já vinham se reunindo informalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro desde a primeira metade dos anos 1970 — compostos por mulheres
de diferentes gerações, de formação universitária e pertencentes a camadas
sociais privilegiadas — estabeleceram contato pela primeira vez, na perspectiva
de aproveitar a cobertura e a proteção de um organismo internacional para
promover a questão da mulher no Brasil.
A
primeira iniciativa do movimento em gestação foi a Semana de Pesquisas sobre o
Papel e o Comportamento da Mulher Brasileira, realizada sob o patrocínio da ONU
no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no Rio de Janeiro, de
30 de junho a 6 de julho de 1975, com série de conferências e debates sobre a
situação jurídica da mulher, o trabalho feminino, aspectos psíquicos e
psicológicos da feminilidade, a educação e os papéis sexuais, a imagem da
mulher nas artes e nos meios de comunicação, com a presença e a participação de
personalidades e especialistas de diversas áreas. Em outubro do mesmo ano,
pesquisadoras e feministas organizaram na Câmara Municipal de São Paulo o
Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista, sob o patrocínio da ONU e da
Cúria Metropolitana, com a participação de representantes da Aliança Renovadora
Nacional (Arena) e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), únicos partidos
políticos que atuavam legalmente, da Igreja, de entidades sindicais. Essas duas
iniciativas deram origem, respectivamente, ainda em 1975, ao Centro da Mulher
Brasileira (CMB) no Rio de Janeiro e ao Centro de Desenvolvimento da Mulher
Brasileira (CDMB) em São Paulo.
Relação
com outros setores sociais e o Estado
O
novo movimento feminista brasileiro surgiu em 1975, nas brechas abertas pelo
processo de modernização econômica e social e dentro dos limites impostos pelo
cerceamento de liberdades individuais e de iniciativas políticas pelo regime
autoritário. Nessa conjuntura, havia pouco espaço para um movimento de
liberação como aquele que mobilizou no mesmo período, em sociedades industriais
avançadas, mulheres de camadas médias contra todas as formas de dominação
masculina (contra o “patriarcado”), contra os partidos políticos, pelo controle
da sexualidade e da reprodução. Na segunda metade dos anos 1970 o movimento
feminista oscilou entre as lutas pela promoção e pela melhoria de certos
aspectos da situação da mulher, seguindo a tradição emancipatória e
igualitarista dos feminismos do passado, e o investimento na organização das
mulheres como sujeitos políticos em luta contra a ditadura e/ou contra o
sistema capitalista.
Já desde 1974 um debate em torno dos significados e
representações associados à palavra “feminismo” se desenvolveu no âmbito da
intelectualidade brasileira, expresso em artigos, reportagens e cartas
publicadas pelos principais jornais da imprensa alternativa. Nesse debate
emergiram e se opuseram, de forma excludente e maniqueísta, duas
concepções. A primeira se identificou ao movimento internacional de
liberação das mulheres, defende a formação espontânea e independente de grupos
femininos de conscientização (consciousness raising groups) e caracterizou o movimento feminista como uma luta das
mulheres contra todas as formas de dominação e de opressão a que estão
submetidas nas sociedades “patriarcais” (aquelas onde o controle e a exploração
das mulheres pelos homens existem de forma organizada na esfera doméstica e na
esfera publica). A segunda tendência criticou, caricaturando inclusive, certas
iniciativas e manifestações feministas em outros países, denunciou o “sexismo”
e o radicalismo do movimento internacional e enunciou sua inadequação à
realidade brasileira. O feminismo “bom para o Brasil” foi por ela definido como
uma luta das mulheres pela emancipação social, por igualdade de direitos e pela
participação na vida política, integrada a outras lutas mais globais pela
transformação da sociedade.
Esse debate sobre a definição do feminismo, os discursos, os
objetivos prioritários, as formas de atuação, as alianças políticas e a relação
com o Estado atravessou toda a década inaugurada pelo Ano Internacional da Mulher
e se expressou através de tendências e cisões no seio dos principais grupos do
movimento. Mas o que se afirmou e adquiriu visibilidade no seio das camadas
médias urbanas brasileiras, entre 1975 e 1979, foi um movimento feminista de
mulheres de esquerda. Isso significa que, apesar das divergências, os
diferentes grupos se situavam politicamente no campo de oposição ao regime
autoritário.
Mas a concepção do movimento como uma luta de todas as
mulheres contra a dominação e a opressão masculinas, como uma luta das mulheres
pela igualdade de direitos, por sua promoção e emancipação social, ou como uma
luta “específica” das mulheres associada à luta geral de camadas sociais mais
desfavorecidas contra o sistema capitalista, ou ainda integrada à luta de
amplos setores sociais contra o regime militar, pela anistia e pelo
restabelecimento de liberdades democráticas, determinou diferentes discursos,
formas de organização, práticas e prioridades, definiu alianças com outros
movimentos e eventuais ligações com organizações políticas e determinou
diferentes posições com relação ao Estado.
Foi marcante na etapa de constituição dos primeiros grupos a
intervenção organizada de militantes vinculadas a organizações marxistas
clandestinas, comprometidas fundamentalmente com o movimento operário, que aí
encontraram uma área de atuação legal com vistas ao aliciamento de mulheres
trabalhadoras para a frente de oposição ao regime. Paralelamente, outras
militantes mais independentes politicamente perseveravam num movimento de pressão
em defesa da igualdade entre os sexos, da conquista de direitos civis e de
espaços públicos de atuação para as mulheres, aceitando por um lado a imposição
de tabu em torno de certos temas e questões pela Igreja (cujos setores
progressistas apoiavam a frente de oposição à ditadura) e, por outro lado, o
diálogo proposto pelo Estado sobre algumas iniciativas e medidas modernizadoras
visando à promoção feminina.
O
processo inaugurado pela anistia de 1979 foi um marco para o movimento
feminista. Muitas mulheres que, durante o exílio, haviam participado da
experiência dos grupos feministas europeus, ao voltarem ingressaram nas
associações e nos grupos existentes, influenciaram discussões, provocaram
cisões. As “retornadas” do exílio, apoiadas por militantes mais jovens,
contribuíram para abrir o debate sobre a sexualidade e a reprodução, o aborto,
a violência doméstica. O fracionamento dos grupos feministas se inscreveu na
lógica do processo de abertura que permitiu, em 1980, após 15 anos de
bipartidarismo, a reorganização de partidos políticos. Entre 1979 e 1981 o
movimento feminista escolheu como aliadas e interlocutoras as correntes de
esquerda que aceitaram sua especificidade e sua reivindicação de se organizar e
existir politicamente de maneira independente, polemizando com as correntes que
concebiam um movimento “feminino”, “de mulheres” ou “das mulheres” subordinado
a objetivos e prioridades políticas exteriores ao movimento.
Entretanto, rapidamente, com o aparecimento dos novos
partidos legais e na iminência do pleito eleitoral de 1982, uma boa parte desse
movimento — as feministas comprometidas prioritariamente com as lutas das
mulheres — se reconciliou com militantes comprometidas com uma concepção mais
tradicional de movimento feminino, subordinando-o a interesses partidários, e
se reagrupou em torno de objetivos aceitáveis e viáveis numa campanha
eleitoral, passíveis de serem atingidos pelas vias parlamentares. Nesse
momento, o movimento se caracterizou pela distinção entre feministas que
privilegiavam a emergência de pólos de representação junto às instâncias
governamentais, para obter vantagens eleitorais e ocupar espaços públicos de
poder, e feministas que defendiam a idéia do papel fundamental de movimento
feminista politicamente independente na constituição de um amplo movimento
social produtor e ator de transformações sociais.
A estratégia da primeira tendência, fortemente representada
dentro do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que sucedeu o MDB
após o fim do bipartidarismo, foi a de um grupo de pressão investindo na
ampliação de sua audiência e impacto, tratando de ganhar legitimidade e margem
de manobra como representante do movimento feminista no seio dos partidos, numa
perspectiva eleitoralista. A segunda tendência, minoritária, composta por
feministas “autonomistas” e militantes socialistas do Partido dos Trabalhadores
(PT), investiu na luta ideológica para incluir na pauta das transformações
sociais questões específicas relacionadas às mulheres, apostando no seu próprio
crescimento enquanto movimento social. O Estado e os poderes
institucionalizados foram para essa tendência interlocutores pouco confiáveis,
instrumentos de cooptação. Por conseguinte, ela teve uma posição crítica quanto
à luta pela conquista e ocupação dos espaços políticos tradicionalmente
consagrados. As duas tendências desenvolveram práticas diversas junto a
mulheres das camadas populares, intervindo no campo da educação e da formação,
da saúde, da contracepção e da reprodução e da violência doméstica.
Das
eleições de novembro de 1982 saíram mulheres prefeitas, deputadas e vereadoras.
No Rio e em São Paulo, estados onde o candidatos da oposição se elegeram
governadores, a estratégia de ocupação de espaços na esfera publica conduziu à
criação de conselhos estaduais da Condição Feminina em São Paulo e em Minas Gerais, seguidos de outros estados. Essa primeira etapa da
institucionalização do movimento feminista culminou na criação em 1985 do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), organismo consultivo vinculado
ao Ministério da Justiça ao qual se identificaram ou se ligavam muitas
militantes de diferentes tendências que se haviam mobilizado durante uma
década.
O período 1983-1984, que antecedeu o final da ditadura
militar, se caracterizou, para a tendência feminista pró-institucionalização do
movimento e nos estados onde o PMDB conquistou o governo, pelos esforços para a
ampliação de sua área de influência, pela conquista de espaços nas estruturas
do poder e também pela luta para que todos os organismos administrativos
levassem em conta reivindicações do movimento e se inspirassem nas práticas
feministas, principalmente na área da educação e da saúde. E como esse processo
criou a necessidade de novos quadros, muitas ex-militantes do movimento
assumiram cargos políticos e/ou passaram a desempenhar funções técnicas como
especialistas em “problemas da mulher”. Esse fenômeno, bastante generalizado
entre os intelectuais oposicionistas, despertou críticas nos setores que
continuavam defendendo os movimentos sociais e contestavam a legitimidade
daqueles e daquelas que se autoproclamavam representantes do mesmo, enquanto
negociavam com um governo militar e atuavam dentro de um Estado autoritário.
É impossível entender os caminhos seguidos pela corrente
majoritária do movimento feminista entre 1983 e 1985 sem levar em conta a
situação ambígua na qual se encontrava o PMDB, maior partido de oposição à
ditadura, a partir do momento em que a agremiação passou a ter existência e
peso parlamentar e que, por conseguinte, devia aceitar as regras do jogo em
vigor, fazer compromissos, moderar suas críticas ao regime, engajar-se no
processo de construção de uma “nova república” que não nasceu tão nova quanto
teriam desejado muitos peemedebistas.
Atuação
política e principais grupos
O movimento feminista atuou entre 1975 e 1979 principalmente
como parte integrante de um movimento de pressão pela anistia e pelo
restabelecimento de liberdades democráticas. Mas ele funcionou também como
interlocutor do Estado no que dizia respeito a algumas propostas e iniciativas
do mesmo no tocante à situação feminina: projeto de um novo Código Civil,
comissão parlamentar mista de inquérito (CPI) sobre a situação da mulher
brasileira, Lei do Divórcio, projeto de reforma da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT). Entre 1979 e 1985 sua atuação teve duas vertentes. A primeira se
desenvolveu em torno de práticas inovadoras e objetivos considerados
especificamente feministas (a violência doméstica e o controle da sexualidade e
da reprodução), ou seja, aqueles que questionavam as relações de discriminação
e de dominação socialmente construídas (e atualizadas) com base nas diferenças
biológicas entre os sexos. A segunda vertente atuou como grupo de pressão em
torno de questões menos explosivas — a modificação das leis trabalhistas
referentes ao trabalho feminino, a reivindicação de creches, a denúncia de
discriminações sexistas no processo de socialização e nos manuais escolares, a
modificação do estatuto da mulher no Código Civil. Mesmo quando as diferentes tendências
existentes no movimento definiam objetivos similares em seus programas de ação,
as diferenças quanto às estratégias e táticas adotadas e quanto à definição das
prioridades eram sensíveis.
Seria
impossível apresentar ou mesmo citar todos os grupos feministas que existiram
no Brasil entre 1975 e 1985. Certos grupos, mais ou menos informais, tiveram
uma existência relativamente longa, outros adquiriram importância mas foram
efêmeros, outros ainda passaram por fracionamentos ou fusões, se transformaram
e mudaram de denominação. Entre os que adquiriram visibilidade no Rio de
Janeiro estão o Centro da Mulher Brasileira, o Coletivo de Mulheres, a
Sociedade Brasil-Mulher, o Grupo Ceres, o Grupo Feminista do Rio de Janeiro; em São Paulo, o Brasil-Mulher, o Nós-Mulheres, a Associação das Mulheres, o Pró-Mulher, a Ação
Lésbico-Feminista, a Frente de Mulheres Feministas, o Coletivo Feminista de
Campinas, o Grupo Feminista 8 de Março, o Centro de Informação da Mulher. Nas
regiões Nordeste e Norte cabe citar: em Salvador, Brasil-Mulher; em Pernambuco,
o Ação-Mulher, a Casa da Mulher do Nordeste e o SOS Corpo de Recife; na
Paraíba, o Centro da Mulher de João Pessoa; no Ceará, a União das Mulheres
Cearenses e o Grupo Feminista 4 de Janeiro; no Maranhão, o Grupo de Mulheres da
Ilha de São Luís; no Amazonas, a Casa da Mulher Universitária. Na região Sul
pode-se mencionar: no Rio Grande do Sul, o Grupo de Mulheres de Porto Alegre
Costela de Adão, o Movimento da Mulher pela Libertação, o Grupo Ação-Mulher, o
Liberta; em Santa Catarina, o Amálgama e o Vivências; no Paraná, Brasil-Mulher,
a Frente Democrática da Mulher Londrinense e o Movimento 8 de Março. Na região
central tem-se em Minas Gerais, o Grupo de Reflexão Feminista e o Centro de
Defesa dos Direitos da Mulher; em Goiânia, o Grupo Feminista de Estudos, o
Centro de Valorização da Mulher, o Eva de Novo; em Mato Grosso, a Associação das Mulheres; em Brasília, o Grupo de Mulheres de Brasília, o
Movimento de Emancipação da Mulher e Brasília-Mulher.
Tiveram grande impacto e importância os coletivos feministas
de tipo SOS contra a violência, que surgiram e atuaram entre 1980 e 1983 em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Minas Gerais, principalmente, reagindo contra uma
série de assassinatos de mulheres por seus companheiros e com uma proposta de
conscientizar e dar apoio a mulheres vítimas de violência. Esses coletivos
tiveram vida curta mas inspiraram o projeto de lei que instituiu as delegacias
especiais de Atendimento à Mulher, surgidas a partir de 1985 em diversas
cidades do país e que chegaram a totalizar 141 em 1992. Essas delegacias eram
integradas totalmente por policiais mulheres especialmente capacitadas para o
atendimento às vítimas de violência.
Como principais jornais do movimento, beneficiando-se de uma
difusão nacional, pode-se mencionar o Brasil-Mulher (16 números, editado de 1975 a 1979), o Nós-Mulheres (oito números, editado de 1976 a 1978) e Mulherio (1981-1988). Mas muitos dos grupos e associações mencionados
realizaram e difundiram inúmeros boletins e jornais, a maioria de duração
efêmera e difusão restrita.
No que diz respeito às mulheres do movimento feminista, é
impossível citar, sem incorrer em graves esquecimentos, organizadoras, líderes
e participantes mais destacadas. Por um lado porque seus dez anos de existência
e atuação se deram sob um regime autoritário e, para a maioria das militantes
feministas, a invisibilidade era a melhor proteção contra as ameaças e os
riscos existentes numa conjuntura repressiva. Por outro lado porque, nesse tipo
de mobilização na qual os aspectos informais primam sobre os formais, onde os
grupos se fazem e se desfazem com muita rapidez, seria injusto limitarmo-nos a
citar alguns personagens que, já sendo reconhecidas como intelectuais ou
artistas, ficaram conhecidas como pioneiras do movimento, ou ainda enumerar
apenas aquelas que, anônimas no começo como tantas outras, iriam se afirmando e
adquirindo visibilidade ao longo do tempo, como feministas militantes,
pesquisadoras ou defensoras da questão da mulher em posições
político-institucionais.
Extinção
ou transformação?
A
partir de 1983 o movimento feminista começou a perder forçou enquanto proposta
de mobilização de novo tipo e a enveredar por outros caminhos. Paralelamente a
uma grande desmobilização de associações, grupos e coletivos militantes
independentes em todo o país, houve um processo importante de cooptação de
feministas pelo aparelho de Estado que contribuiu para manter minoritárias, vãs
e marginais quaisquer tentativas de reforço de um movimento não-institucionalizado
ou de um pólo feminista alternativo num momento em que, paradoxalmente, o campo
de possibilidades para inovações se ampliou consideravelmente.
Foi
no bojo do processo de negociações e compromissos que prepararam a legitimação
política de José Sarney como presidente da Nova República (1985-1989) que
surgiu o CNDM, vinculado ao Ministério da Justiça mas com autonomia financeira.
Era composto por conselheiras deliberativas indicadas pelos movimentos de
mulheres e nomeadas pelo governo, por conselheiras técnicas para cada programa
específico de trabalho e por um secretariado executivo. Boa parte dessas
conselheiras era ex-militante de grupos feministas.
Cabe mencionar o otimismo que caracterizou as intervenções de
grande número de feministas presentes ou representadas na Conferência
Internacional de Nairóbi em 1985, encerrando a Década da Mulher, para as quais
a criação do CNDM (objetivo presente já em 1975) atestava uma grande vitória do
movimento. Mas a euforia daquelas cujo sonho se havia tornado realidade
contrastava com o ceticismo de outras com relação à aventura de um feminismo de
Estado, preocupadas com a desmobilização e a desarticulação do movimento, com a
perda de seus aspectos mais libertários e inovadores.
O CNDM, que existiu e teve grande expressão entre 1985 e
1989, apoiou e promoveu toda uma série de iniciativas e eventos, seminários,
conferências e campanhas. Entre seus objetivos figuravam: formular políticas
tendentes a eliminar a discriminação da mulher e a assessorar a elaboração e
execução de programas de governo para a mulher nos níveis federal, estadual e
municipal; elaborar projetos de lei que preservassem os direitos da mulher e
eliminassem os conteúdos discriminatórios da legislação vigente; fiscalizar o
cumprimento da legislação que assegura os direitos da mulher, receber e
examinar denúncias de discriminação e encaminhá-las aos organismos pertinentes;
estimular, apoiar e desenvolver estudos sobre a condição da mulher no Brasil;
apoiar e desenvolver uma relação permanente com o movimento de mulheres. Suas
ações principais foram, na área da legislação, a redação de artigos para a
Constituição de 1988, a elaboração de um novo Código do Trabalho e de
disposições normativas sobre as creches. Nas áreas de educação e cultura, o Conselho
desenvolveu um programa de conscientização sobre a situação das meninas em
escolas públicas, um programa de modificação dos textos escolares, tendo por
objetivo a eliminação dos estereótipos sobre a mulher e o negro, e um
programa de apoio a teses universitárias de mestrado e doutorado sobre mulher;
além disso, produziu e difundiu diferentes tipos de material de sensibilização
sobre as discriminações que atingem as mulheres. Na área da saúde, o Conselho
realizou campanhas nacionais para a prevenção da mortalidade e morbidade
maternas e deu apoio à implementação do Programa de Atendimento Integral à
Saúde da Mulher (PAISM). No campo da violência contra a mulher, o Conselho
organizou encontros nacionais entre policiais das delegacias especializadas, representantes
de organizações não-governamentais (ONGs) e pesquisadoras.
Em 1989 uma crise política entre o novo ministro da Justiça e
o Conselho ocasionou a intervenção deste, a redução de seu orçamento e
capacidade de ação. Após a renúncia de suas integrantes, foram nomeadas novas
conselheiras e técnicas sem passado feminista e sem qualquer ligação anterior
com o movimento. O Conselho se desarticulou, ao mesmo tempo em que se
multiplicaram conselhos estaduais e municipais em dezenas de estados e alguns
municípios, muitos de caráter meramente eleitoreiro. A reorganização do CNDM,
com a reconquista das atribuições perdidas, só aconteceu alguns anos mais
tarde, quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidência da República.
Na década de 1990 o movimento feminista já era assunto de
memória e de história no Brasil. Muitas de suas antigas militantes tornaram-se
profissionais da causa da mulher e passaram a exercer funções em ONGs, nas
universidades e centros de pesquisa, em setores dos serviços públicos que lidavam
com educação, saúde e justiça. Algumas ocupavam cargos eletivos e tornaram-se
profissionais da política.
Por outro lado, a temática do “gênero” ou da construção
social das diferenças entre os sexos pareceu tomar um novo alento, levantada
por uma nova geração de militantes nascidas nos anos 1960 e 1970. No meio rural
é importante mencionar o movimento dos sem-terra durante os anos 1990, no qual
jovens agricultoras se engajaram nas lutas agrárias às quais, pouco a pouco,
foram incorporando questões ligadas à educação discriminatória, à violência, ao
controle da reprodução. No meio urbano outras jovens, oriundas das camadas
médias ou populares, tendo freqüentado cursos universitários ou técnicos
profissionalizantes ministrados por feministas, desempenhavam atividades
profissionais em ONGs específicas ou em serviços públicos administrados por
prefeituras de esquerda (principalmente pelo PT) e trabalhavam em projetos
voltados para as mulheres.
Em
1994 e 1995 o movimento Articulação de Mulheres Brasileiras mobilizou centenas
de brasileiras para redigir um documento para a IV Conferência Mundial da ONU
sobre a Mulher (Pequim, 1995). Nesse período, 91 eventos mobilizaram mais de
oitocentos grupos femininos em todo o país. Segundo pesquisa, esses grupos
tiveram forte participação de mulheres de menos de 35 anos, jovens militantes
que demonstravam uma aguda consciência da problemática de gênero, eram
sensíveis às questões de identidade racial (negras) e sexual (lésbicas), se
mobilizavam e se organizavam, mas não se autoproclamavam “feministas” nem
militantes de um “movimento feminista”.
Anette
Goldberg-Salinas, colaboração especial
MOVIMENTO FEMINISTA (Século XXI)
Na virada para o século XXI, são
vários os diagnósticos e análises sobre o feminismo e as relações de gênero no
Brasil. É possível falar em movimento feminista, levando em consideração sua
baixa presença como movimento social? E como definir o feminismo contemporâneo,
cindido entre diversas correntes, algumas delas incompatíveis?
Por um lado, pode-se afirmar que a
visibilidade do movimento feminista toprnou-se pequena. Por outro, sua
institucionalização vem se ampliando e aumentaram as interações das militantes
e da agenda do movimento com o Estado. Sua atividade nas últimas décadas ficou
bastante relacionada à presença no aparelho de Estado, com a criação de espaços
institucionais como a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher (Sedim), em
2002, que em janeiro de 2003 deu lugar à Secretaria Especial de Política para
as Mulheres (SPM). Uma característica apontada pela maior parte das
pesquisadoras do tema é a profissionalização e fragmentação do movimento, com o
crescimento do número de ONGs relacionadas à defesa dos direitos das mulheres.
Um dos eixos destacados de atuação é o das ONGs voltadas para a saúde da
mulher, como o SOS Corpo, de Recife, e a RedeSaúde, que passou a reunir
filiadas na maior parte dos estados brasileiros e com forte atuação junto ao
Ministério da Saúde, além de financiamentos de organismos internacionais. Um
outro campo de atuação que vem se consolidando é o das ONGs que fazem um
trabalho de advocacy em nome das mulheres, com
acompanhamento parlamentar e de políticas públicas, como CFEMEA, sediada em
Brasília, que existe desde 1989, e THEMIS, que realiza desde 1988 um trabalho de
assessoria jurídica relacionada à violação de direitos das mulheres,
capacitação de ONGs e formação de Promotoras Legais Populares. A atuação da
Geledés, ONG formada por mulheres negras, é, por sua vez, voltada para o
racismo e o “empoderamento” das mulheres das camadas populares. Outro exemplo
da dinâmica assumida pelo movimento nas últimas décadas é o “feminismo
acadêmico”, com a ampliação e consolidação de núcleos de pesquisa, publicações
especializadas, como a Revista Estudos Feministas (REF), sediada na Universidade Federal de
Santa Catarina, e os Cadernos Pagu, do núcleo Pagu da Universidade Estadual de
Campinas, e eventos como os encontros da Rede Brasileira de Estudos e
Pesquisas Feministas (RedeFem), da Rede Feminista Norte e Nordeste de
Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações
de Gênero (Redor) e o Seminário Internacional Fazendo Gênero, realizado na UFSC há cada dois
anos, desde 1994.
As conquistas e limites do movimento
estão presentes nessas diferentes formas de atuação. As mudanças se deram ao
mesmo tempo em que alguns públicos se tornaram mais permeáveis ao discurso
feminista, com perspectivas e experiências renovadas das relações de gênero que
têm impacto sobre a posição da mulher nas diferentes esferas sociais. Nesse
sentido, o maior controle da mulher sobre a sexualidade e a reprodução, com a
dissociação entre sexualidade e reprodução e entre sexualidade e casamento,
mudanças no exercício dos papeis familiares, uma maior atuação no mercado de
trabalho e a diminuição da legitimidade social da violência física contra a
mulher são exemplos importantes de mudanças que ocorreram no Brasil,
acompanhando padrões comportamentais e econômicos de países europeus e
norte-americanos. São, em geral, essas as mudanças que levaram à expressão
“feminismo difuso”, apontando para transformações que são tributárias de
perspectivas feministas, mas que convivem com a pouca visibilidade, nos meios
de comunicação e em públicos mais abrangentes, das perspectivas feministas e
femininas, do movimento e mesmo de uma crítica que reconheça a existência de
formas de opressão que incidem de maneira específica sobre as mulheres. Esse
silêncio segue relacionado às dificuldades para fazer avançar debates
controversos, como a descriminalização do aborto, expondo os entraves
existentes dentro e fora do campo político para a afirmação de direitos e de
uma liberdade qualificada. Além disso, é preciso levar em consideração que as
experiências de mulheres e homens não são homogêneas e a difusão e vivência de
perspectivas de gênero mais igualitárias varia de acordo com classe social,
nível de educação formal, geração e vivência em centros urbanos com maior
densidade populacional ou em pequenas cidades, para citar alguns exemplos.
DIVISÃO DO TRABALHO E POSIÇÃO DA
MULHER NA SOCIEDADE
Se houve avanços na afirmação de
relações de gênero mais simétricas, pesquisas recentes mostram que o maior
acesso à educação formal e ao mercado de trabalho não impediu que as mulheres
continuassem a ter rendimentos inferiores aos dos homens, mantendo uma posição
de subalternidade que mantém-se acentuada quando são negras e, como tal, objeto
de “dupla discriminação”. Entre 1996 e 2006, diminuiu em 10% a diferença
salarial entre homens e mulheres. Ainda assim, em 2006 as mulheres brancas
ganhavam, em média, aproximadamente 63% dos rendimentos dos homens brancos,
enquanto as mulheres negras recebiam, em média, 66% do rendimento dos homens
negros e 32% do que ganhavam os homens brancos.
A posição econômica inferior, por sua
vez, tem estado relacionada a outra temática importante para o movimento
feminista nas últimas décadas, a divisão do trabalho doméstico. O tempo
dedicado à criação dos filhos e a gestão do cotidiano doméstico tem tido
impacto diferenciado sobre a trajetória de homens e mulheres. O número de
famílias chefiadas por mulheres aumentou de 4,2% em 1992 para 23,5% em 2007
(trata-se do universo das famílias em que o arranjo consiste em um casal, com
ou sem filhos). A Lei 11.770, de setembro de 2008, ampliou a licença
maternidade das funcionárias públicas federais de 120 para 180 dias. A
ampliação é opcional para empresas privadas e foi adotada, posteriormente, por
vários estados e municípios. A licença paternidade, no entanto, continuou a ser
de 5 dias. A legitimidade do entendimento de que se deve proporcionar a mãe e
filho a possibilidade de uma amamentação mais prolongada não apagou a
discrepância entre as duas licenças e a imposição, pela lei, de padrões
convencionais para os arranjos que se estabelecem entre mulheres e homens
quanto ao cuidado dispensado aos filhos. A garantia legal de creches, por sua
vez, continuou convivendo no país com um baixo percentual de acesso (estima-se
que apenas aproximadamente 15% das crianças até três anos freqüentavam creches)
e com a realidade de disputa por vagas, precariedade e rotinas que seguem
comprometendo a atuação profissional dos responsáveis pelas crianças
(predominantemente, a das mães). Em todos esses exemplos, tem existido uma
tensão entre a ampliação dos direitos e da autonomia das mulheres, os limites
dessa ampliação e a reafirmação de papeis de gênero que reservam às mulheres a
função de cuidadoras, impondo-lhes rotinas de acúmulo de funções, restrições
financeiras e limitações para o exercício de sua autonomia.
Além da relação entre sexo, posição
no mercado de trabalho e divisão do trabalho doméstico, outros temas tem
permitido avaliar as formas de atuação, conquistas e limites do feminismo no
Brasil nas últimas décadas. A sub-representação das mulheres na política, a
violência doméstica contra as mulheres e o debate sobre a descriminalização do
aborto são alguns desses temas.
GÊNERO E POLÍTICA
A ocupação dos espaços políticos
institucionais não foi, inicialmente, uma prioridade dos movimentos feministas.
No Brasil, a ditadura instaurada em 1964, e que duraria mais de 20 anos,
restringiu ainda mais a participação democrática e a aposta nos espaços
institucionais, acentuando a desconfiança em relação ao Estado. A criação do
Conselho Nacional da Mulher, em 1985, e a atuação das mulheres na Constituinte
foram importantes para consolidar o entendimento de que era preciso uma maior
atenção ao problema da sub-representação feminina nos espaços de poder e à
elaboração de leis e de políticas públicas favoráveis à igualdade de gênero.
As mudanças ocorridas nas últimas
décadas tiveram pouco impacto sobre a presença reduzida das mulheres no campo
político estrito senso. Segundo dados da Inter-Parliamentary Union, em julho de 2009 o Brasil ocupava o
104º lugar no ranking da representação feminina nos parlamentos. O número de
mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados nas últimas eleições foi 32 (6,2%)
em 1994, 29 (5,7%) em 1998, 42 (8,2%) em 2002 e 46 (9%) em 2006. A baixa presença das mulheres nos parlamentos tem sido acompanhada por obstáculos na construção
de suas carreiras, que passam pela exigência ou incentivo para que atuem
“enquanto mulheres”, tratando, por exemplo, de temas entendidos como femininos,
mesmo que não tenham maior potencial para alavancar suas carreiras, dar
visibilidadde à sua atuação nos meios de comunicação de massa ou levá-las a
ocupar posições mais centrais no campo político.
Na década de 1990, foram aprovadas no
Brasil leis que reservam cotas eleitorais para mulheres. A primeira delas, a
lei n. 9100 de 1995, regulava as eleições municipais do ano seguinte e
reservava para as mulheres 20% das vagas nas listas dos partidos políticos. A
lei n. 9504 de 1997 aumentou essa reserva para 30% do número de vagas e a
estendeu às eleições para as assembléias legislativas estaduais e a Câmara dos Deputados.
Algumas peculiaridades se mostram presentes na adoção da lei de cotas no
Brasil: a lei foi adotada ao mesmo tempo em que o número de vagas nas listas
dos partidos foi elevado, as cotas eram para candidaturas e não para assentos,
os partidos políticos não foram obrigados a preencher o percentual de vagas
reservadas às mulheres. Esses fatores, ainda que não isoladamente, ajudam a
explicar porque as cotas para mulheres tiveram pouco impacto sobre os
resultados eleitorais. Realizadas três eleições após a adoção das cotas, o
número de mulheres eleitas continuou abaixo de um terço do percentual de
candidaturas reservadas nas listas dos partidos.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
O combate à violência doméstica
tornou-se prioridade do movimento feminista pelo menos desde a década de 1980. A criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deams), a partir de 1985, a inclusão de tópicos relativos à violência doméstica no primeiro Programa Nacional de Direitos
Humanos, lançado em 1996 (e que incluiu o Programa Nacional de Combate à
Violência Doméstica e Contra a Mulher, entre os anos de 1996 e 2000, período em
que o CNDM esteve vinculado à Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, do
Ministério da Justiça), e o lançamento, em 2007, do Pacto Nacional pelo
Enfrentamento da Violência contra a Mulher são episódios importantes da
consolidação de políticas públicas de combate à violência que coincidem com o
período em que setores do movimento feminista passaram a atuar de maneira
crescente junto ao Estado.
No final da década de 1990 e início
dos anos 2000, o programa “Combate à violência contra as mulheres”, sob a
responsabilidade do CNDM e da Sedim, permitiu o aumento do número de
casas-abrigo para mulheres vítimas de violência, a ampliação do número de Deams
e a realização de pesquisas sobre esses serviços e o perfil das mulheres
atendidas. A partir de 2004, o programa, que passou a ser executado pela SPM
com o nome de Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres, ampliou seu
foco. No mesmo ano, aconteceu a I Conferência Nacional de Políticas para
Mulheres, que produziu diretrizes que orientariam a elaboração do I Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres. Dele, resultaram o serviço nacional Central de Atendimento à Mulher –
Ligue 180 e o anteprojeto de lei que
resultaria na Lei 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, em 2006.
A luta para consolidar a compreensão
de que violência doméstica contra a mulher resulta de relações de gênero
desiguais, que fez parte da atuação do movimento feminista ao longo das décadas
anteriores (envolvendo atuação junto a comunidades específicas, sensibilização
de homens e mulheres para o reconhecimento do problema e atuação junto ao
Estado, levando à mobilização de recursos e à adoção de instrumentos legais),
teve como um de seus principais resultados a aprovação dessa lei que tipificou
a violência doméstica contra a mulher e criou mecanismos para combatê-la. Em
2009, três anos depois da implementação da lei, o debate no âmbito do movimento
e de ONGs voltadas para os direitos da mulher reconheceu os benefícios da lei e
indicou a necessidade de que se ampliassem as condições para sua aplicação.
O DEBATE SOBRE ABORTO
A descriminalização e legalização do
aborto tem sido um tema presente, e controverso, na história dos movimentos
feministas. No Brasil, ganhou espaço entre os movimentos a partir da década de
1970, como parte da defesa da liberdade individual das mulheres e juntamente
com uma atenção crescente à relação entre sexualidade, reprodução e
desigualdades de gênero. A Carta das Mulheres aos Constituintes, de 1987, não
fazia referência direta ao aborto, o que foi considerado um recuo tácito diante
de posições conservadoras presentes na Assembléia Constituinte. Na década de
1990, o movimento agiu, predominantemente, em duas frentes: difundiu a
compreensão de que a descriminalização do aborto era um problema de saúde
pública, procurando sensibilizar públicos mais amplos, e defendeu a garantia do
direito ao aborto nos casos já previstos por lei, em que a gravidez envolve
risco de vida para a mulher ou é resultado de estupro.
A defesa da descriminalização pelas
feministas brasileiras vem sendo feita, em linhas gerais, por meio de dois
argumentos: a defesa da liberdade e da autonomia individual das mulheres
(explicitada pela máxima “nosso corpo nos pertence”) e a defesa de um direito
social, diante das condições em que o aborto clandestino vem sendo realizado no
país, impondo riscos sobretudo às mulheres mais pobres. Nesse debate, duas
divisões tem sido’ igualmente importantes. Uma delas é interna ao movimento e
aponta para a diversidade de perspectivas mesmo quando existe uma posição
favorável ao direito da mulher de interromper a gravidez; a outra aponta para
os conflitos entre a crítica feminista e as perspectivas assumidas pelas
instituições religiosas, sobretudo pela Igreja Católica, com influência sobre
os meios de comunicação e o Estado.
Desde meados da década de 1990, o
embate vem se tornando mais acirrado. Os movimentos “pró-vida” no Brasil se
fortaleceram a partir da visita do Papa Bento XVI ao Brasil, em 2007, e do
lançamento pela Igreja Católica, em 2008, da Campanha da Fraternidade
intitulada “A defesa da vida”. A atuação da entidade “Católicas pelo direito de
decidir”, voltada para uma revisão das posições no campo religioso católico,
tem sido exceção diante de posições contrárias à descriminalização, que vêm
orientando a atuação das igrejas católica e evangélicas junto aos meios de
comunicação e ao Congresso Nacional. Nesse mesmo período, o governo brasileiro
assumiu posições favoráveis à descriminalização, mobilizando a compreensão do
aborto como um problema de saúde pública. Em 2005, a primeira Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres afirmou a existência de
um Estado laico e defendeu a descriminalização. Uma comissão tripartite
instituída pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres e formada por
representantes do Executivo, do Legislativo e da sociedade civil, com a
participação de organizações feministas, elaborou anteprojeto de lei encaminhado
ao Congresso Nacional em 2006, propondo a revisão da legislação brasileira
sobre aborto, presente no Código Penal de 1940. Um dos casos previstos no
projeto foi a má formação fetal incompatível com a vida, objeto de debate em
julho de 2004, quando o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar que
autorizava a mulher a abortar em casos de anencefalia fetal, seguida de
revogação, em plenário, em outubro do mesmo ano. Em 2008, audiências públicas
realizadas pelo STF motivaram um intenso debate sobre o tema.
O projeto de lei 1135/1991, que
previa a descriminalização do aborto, suprimindo o artigo 124 do Código Penal
brasileiro, juntamente com o PL 176/1995 (apenso ao primeiro e que legalizava o
aborto até os 90 dias de gravidez, prevendo a realização dos procedimentos pela
rede pública), foi rejeitado pela Comissão de Seguridade Social e Família da
Câmara dos Deputados, em maio de 2008, e pela Comissão de Constituição e
Justiça, em julho do mesmo ano. A rejeição não impediu que fossem votados em
Plenário, mas assinalou a predominância de posições conservadoras, ligadas às
igrejas católica e evangélicas. Nos últimos anos, posições contrárias à
descriminalização estiveram presentes em projetos e CPIs no Congresso,
investigações sobre clínicas clandestinas e imposição de penas a mulheres que
abortaram.
Flávia Biroli, colaboração especial
FONTES:
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