PROJETO
JARI
Denominação dada ao empreendimento econômico desenvolvido em
caráter privado, a partir de 1967, pelo empresário norte-americano Daniel Keith
Ludwig na região amazônica. Localizado na confluência dos rios Jari e Amazonas,
abrangendo terras do estado do Pará e do então território do Amapá, o Jari foi
planejado para funcionar como um complexo econômico de grandes dimensões,
envolvendo atividades industriais, agrícolas e de extração mineral e vegetal.
Ao iniciar suas atividades no Brasil, Daniel Ludwig era
detentor de uma das maiores fortunas do mundo e comandava um império empresarial
espalhado por mais de vinte países. Suas iniciativas empresariais, iniciadas no
ramo da construção naval e posteriormente diversificadas, notabilizavam-se
pelos altos volumes de capital investido e pela ousadia em projetos de
engenharia, como as obras de dragagem e abertura do rio Orenoco, na Venezuela,
ao tráfego oceânico. O Projeto Jari foi considerado, contudo, o maior de seus
empreendimentos, devido aos altos riscos de um investimento de grandes
proporções numa região isolada da floresta amazônica.
Os
negócios de Ludwig no Brasil tiveram início a partir da aquisição em 1967 da
Empresa de Comércio e Navegação Jari Ltda., possuidora de extensas propriedades
na Amazônia. Sob seu controle a empresa foi reestruturada, originando a holding
Jari Florestal e Agropecuária Ltda., que reunia as inúmeras empresas de Ludwig
na região. Esse complexo era gerenciado pela norte-americana Universe Tankship
Inc., por sua vez subordinada desde 1979 ao Ludwig Institute for Cancer
Research, entidade de direito privado com sede na Suíça.
O exato dimensionamento do território ocupado pelo Jari foi
sempre dificultado pela complexidade que envolve a legalização de terras
naquela região. Legalmente, Ludwig conseguiu comprovar sua propriedade sobre
cerca de um milhão e seiscentos mil hectares de terra, entre títulos de
propriedade plena, títulos de aforamento e títulos de posse legitimáveis. O
empresário reivindicava, no entanto, o direito de propriedade sobre uma área
ainda mais extensa, por ele estimada em torno de três milhões de hectares.
A principal atividade prevista no início do Projeto Jari foi
a extração e produção de madeira destinada à fabricação de celulose. Para isso,
cem mil hectares de floresta nativa foram reflorestados com duas espécies
vegetais importadas: a gmelina arborea e o pinus caribea. No setor
agropecuário, desenvolveu-se a maior área contínua de cultivo de arroz do
mundo, além da criação de milhares de cabeças de gado. No setor de mineração,
destacou-se a extração de caulim, além do domínio sobre importantes reservas de
bauxita, minério de ferro, quartzo, calcáreo e ouro. Para dar sustentação a
todas essas atividades, Ludwig construiu uma extensa rede de infra-estrutura
que incluía dezenas de quilômetros de ferrovias, centenas de quilômetros de rodovias,
um porto e três vilas residenciais.
Para
sede do projeto foi fundado, por iniciativa de Ludwig, o núcleo urbano de Monte
Dourado, localizado em área pertencente ao município paraense de Almeirim. Até
o final da década de 1970, a presença do poder público em Monte Dourado era bastante precária. Em junho de 1978, o prefeito de Almeirim dizia pretender
estabelecer uma subprefeitura em Monte Dourado e promover a ligação rodoviária com a sede do município. Ainda em julho de 1979, o ministro do Interior,
Mário Andreazza, em visita ao Jari, defendeu a adoção de medidas que
efetivassem a presença do poder público na região. Foi somente a partir dessa
época, quando o projeto começava a apresentar problemas financeiros, que Daniel
Ludwig passou a reivindicar o estabelecimento de órgãos estatais no interior de
suas propriedades.
Maior
companhia florestal do planeta e mais extensa propriedade agrícola do mundo
pertencente a uma só pessoa, o Jari envolveu um total de investimentos próximo
de um bilhão de dólares. Por suas dimensões e por ser controlado por um
empresário estrangeiro, foi objeto de inúmeras críticas e denúncias no decorrer
de sua existência. Por um lado, foi criticado como um projeto mal concebido e
mal dirigido do ponto de vista gerencial; de outro, foi visto por muitos como
uma presença estrangeira indesejável no país e identificado como uma ameaça à
soberania nacional. Otávio Ianni se referiu ao Jari como “um enclave
estrangeiro criado com a proteção econômica e política da ditadura”,
caracterizando-o ainda como um produto típico do regime instalado em 1964, que
facilitou a abertura da Amazônia aos grandes negociantes de terra e promoveu
uma política de concentração fundiária na região.
De
fato, durante quase toda a década de 1970 as atividades do Jari foram
facilitadas pelo bom trânsito de Ludwig junto ao governo federal. Em 1974, a Jari Florestal obteve o aval do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) para um
empréstimo de cerca de duzentos milhões de dólares realizado no exterior,
destinado à importação de uma fábrica de celulose e de uma usina termelétrica,
adquiridas no Japão. Além disso, Ludwig conseguiu que a construção dessas
unidades industriais fosse beneficiada com a isenção de impostos, mediante sua
inclusão no programa de Benefícios Fiscais às Exportações (Befiex). Essa
operação gerou protestos de empresários ligados à Associação Brasileira para o Desenvolvimento
da Indústria de Base e ao Sindicato da Indústria da Construção Naval, que
argumentaram que muitos dos equipamentos adquiridos no Japão possuíam similares
nacionais.
Ainda
na década de 1970, denúncias contra as condições de trabalho na área do projeto
resultaram na intervenção de fiscais do governo federal, obrigando Ludwig a
promover melhorias nas condições de habitação dos trabalhadores e a cumprir a
legislação salarial vigente no país. Por outro lado, os efeitos negativos
provocados sobre o meio ambiente pela derrubada de grandes extensões da
floresta amazônica motivaram protestos de grupos ambientalistas de várias
partes do mundo.
Um outro problema enfrentado pelo projeto dizia respeito à
regularização de suas propriedades. Em Marzagão (AP), o Jari estendia seus
domínios sobre uma área que superava os limites determinados pela Lei nº 5.709,
de 1971, que estabelecia que estrangeiros não poderiam deter mais do que 1/4 da
área de um mesmo município, determinando ainda que desse total não mais do que
40% pertencesse a uma mesma pessoa. Diante das denúncias que apontavam tais
irregularidades, Ludwig contra-argumentava que na data em que adquirira as
terras, 1967, a referida lei ainda não havia entrado em vigor. A questão das reais dimensões territoriais do Jari gerou atritos entre a direção do
projeto e alguns órgãos públicos, como o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) e o Grupo Executivo do Baixo Amazonas (Gebam), esse
último subordinado ao Conselho de Segurança Nacional, que promoveram
contestações à titularidade das terras reivindicadas por Ludwig. À frente do
Gebam, o almirante Gama e Silva chegou a propor ao governo federal que
reduzisse em 50% a área ocupada pelo projeto. Em 1974, o Estado-Maior das
Forças Armadas (EMFA) produziu um relatório sobre o Jari que, contudo, não foi
divulgado na ocasião, só vindo a público em 1979, quando foi publicado pelo
jornal Movimento.
No final da década de 1970, com a liberalização política
vivida pelo país e o rompimento do sigilo que habitualmente envolvia as
decisões sobre o Jari, avolumaram-se as críticas e denúncias contra a atuação
de Ludwig no Brasil. Em setembro de 1978, o Movimento e o Coojornal publicaram
reportagens que acusavam o general Golberi do Couto e Silva, então chefe do
Gabinete Civil da Presidência da República, e o então secretário particular do
presidente, major Heitor de Aquino Ferreira, de praticarem tráfico de
influência em favor das atividades de Daniel Ludwig no Brasil. Ainda segundo
Movimento, as atividades do Jari eram responsáveis por 37% do déficit comercial
brasileiro acumulado entre janeiro e outubro de 1978, cujo valor total
alcançava 784 milhões de dólares.
Diante do crescimento do volume de críticas e denúncias
contra a sua atuação, Ludwig viu reduzido o apoio oficial que até então
dispunha. Essa nova realidade ficou evidente quando em 1978 solicitou apoio do
governo para deslanchar uma nova etapa de seu projeto, que previa a duplicação
da produção de celulose e a instalação de uma fábrica de papel de imprensa,
além de novos investimentos em infra-estrutura que incluíam a construção de uma
hidrelétrica. A decisão sobre seu pedido se arrastou até 1980, quando o
presidente João Figueiredo estabeleceu condições para aprová-lo, exigindo que a
maior parte dos novos gastos fossem realizados no Brasil. Contribuiu para essa
decisão a permanência do déficit na balança comercial do país, que o governo
procurava combater estabelecendo restrições às importações, bem como a pressão
exercida sobre o governo pelos empresários nacionais de bens de capital.
A essa altura, o Jari apresentava constantes déficits
operacionais, já que as atividades lucrativas da empresa — reduzidas à extração
de caulim, ao cultivo de arroz e à produção de celulose — apresentavam
rendimentos inferiores aos que haviam sido inicialmente previstos,
incompatíveis com os altos custos envolvidos na montagem e manutenção da
infra-estrutura construída.
Em agosto de 1980, Ludwig enviou uma carta ao general Golberi
do Couto e Silva, relatando as dificuldades pelas quais então passava o Projeto
Jari. Segundo Ludwig, sem o apoio do governo federal o Jari não conseguiria
superar suas dificuldades, mesmo que reduzisse ao máximo os seus custos operacionais.
Nesse caso, considerava a possibilidade de paralisar as operações do projeto ou
transferir o seu controle. Referindo-se à crescente oposição suscitada por sua
atuação no Brasil, denunciava “os viciosos ataques públicos e políticos que têm
se arrastado por quatro anos” à sua empresa e pedia o fim das pressões
exercidas contra as suas atividades.
Em novembro seguinte, Ludwig se viu envolvido em nova
polêmica ao tentar transferir a lavra de bauxita que possuía no Pará,
classificada entre as de melhor qualidade do mundo, para a Alcoa, outra empresa
estrangeira do ramo minerador com atuação no país. Com a transferência, a Alcoa
passaria a deter 13% das reservas totais de bauxita existentes no Brasil,
contrariando a legislação vigente que determinava que as empresas estrangeiras
não poderiam deter mais do que 10% das reservas nacionais de um mesmo mineral.
Sob protestos da Sociedade Brasileira de Geologia, a negociação acabou sendo
suspensa por ordem do ministro das Minas e Energia, César Cals, baseado em relatório
produzido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral.
Diante
das dificuldades do Projeto Jari e percebendo que já não poderia contar com o
mesmo apoio governamental desfrutado no passado, Ludwig decidiu reduzir os
custos do empreendimento, o que acarretou a demissão de milhares de
trabalhadores no início da década de 1980. Ao mesmo tempo, o empresário passou
a reivindicar que o governo federal assumisse a responsabilidade pela
manutenção da infra-estrutura montada pelo projeto e destinasse recursos para
custear seus serviços comunitários, como hospitais, serviço policial, escolas e
estradas. Diante da negativa do governo em atender tais reivindicações, as
relações entre Ludwig e o governo federal ficaram tensas. Na ocasião, o
ministro da Indústria e Comércio, Camilo Pena, declarou que o governo buscaria
encaminhar iniciativas no sentido de garantir a continuidade do projeto, mas
que não agiria intempestivamente. O ministro declarou, então, não ser o Brasil
“uma colônia onde um grande empresário pode impor ordens”.
Por conseguinte, e já com mais de oitenta anos de idade,
Ludwig iniciou contatos com o objetivo de viabilizar a transferência do
controle acionário do Projeto Jari. Em fevereiro de 1981, o empresário
brasileiro Augusto Trajano de Azevedo Antunes, após reunir-se com Ludwig em Nova Iorque, anunciou a intenção de reunir um grupo de empresários nacionais para comprar o
Jari. Azevedo Antunes era presidente da Companhia Auxiliar de Empresas de
Mineração (Caemi) e amigo particular de Ludwig, de quem anteriormente já fora
sócio em uma empresa de seguros.
Apesar
da aprovação do governo à solução apresentada, o ministro César Cals declarou,
então, desconhecer qualquer participação oficial nas negociações, considerando,
num primeiro momento, que a nacionalização do Jari se faria com a transferência
integral de seu controle acionário para as mãos do capital privado nacional. A
evolução dos fatos, no entanto, caminhou em sentido diferente. Em janeiro de
1982, poucos dias antes de ser anunciada oficialmente a transferência do
Projeto Jari para as mãos do capital nacional, veio à público a notícia de que
o Banco do Brasil participaria do pool de empresas que assumiriam o controle
acionário do Projeto. Essa decisão foi tomada após a realização de uma reunião
no palácio do Planalto, na qual estiveram presentes Azevedo Antunes, os
ministros Leitão de Abreu, da Casa Civil, Delfim Neto, do Planejamento, e
Camilo Pena, da Indústria e Comércio, além do presidente do Banco do Brasil, Osvaldo
Colin. O ministro Delfim Neto justificou a participação do governo argumentando
tratar-se de “um projeto de boa qualidade e de grande futuro”. O governo
ressaltava, porém, que sua participação se daria através da transformação do
aval concedido ao projeto na época da construção de sua fábrica de celulose em
participação acionária preferencial, não estando previstos novos aportes de
capital estatal no empreendimento.
Para
viabilizar a nacionalização do Jari, foi formado um pool composto por 23
empresários nacionais, liderados por Augusto Trajano de Azevedo Antunes, que
deu origem à Companhia do Jari. A presidência-executiva da nova empresa ficou a
cargo do empresário Sérgio Franklin Quintela. Segundo o documento de fundação
da companhia, no entanto, a viabilidade do empreendimento seria assegurada com
um aporte de capital da ordem de 240 milhões de dólares nos três anos
seguintes, dos quais 180 milhões ficariam a cargo do governo federal e o
restante por conta dos empresários nacionais que assumiam o projeto.
A
transferência do Jari ao capital nacional foi efetivada durante solenidade
realizada no dia 25 de janeiro de 1982, no palácio do Planalto, que contou com
a presença do presidente João Figueiredo e de diversos ministros de Estado.
Durante a solenidade, o presidente da República classificou a operação como “um
passo histórico no processo de desenvolvimento do país”, que consolidava,
segundo ele, a disposição de seu governo de diminuir “a tutela do Estado sobre
a sociedade e a vida econômica do país”. Para Azevedo Antunes, a nacionalização
da empresa foi “antes de tudo, um bom negócio para o Brasil, pois sua
paralisação vinha comprometendo os interesses políticos, sociais e a própria
imagem do país no exterior”. Antunes ressaltou ainda que o episódio demonstrava
a coragem do empresariado nacional, que promoveu a nacionalização de uma grande
empresa sem o recurso da estatização.
Dos meios oposicionistas e de setores da imprensa, porém,
partiram críticas ao processo de nacionalização do Jari. Segundo essas
avaliações, o negócio envolveu maior volume de recursos públicos que privados,
sem que essa participação de investimentos estatais fosse acompanhada do
correspondente controle oficial sobre a empresa. Sérgio Quintela, por sua vez,
justificou essa presença do capital estatal no empreendimento argumentando que
o processo histórico de formação da poupança no Brasil deu ao poder público um
papel dominante no setor, não havendo um mercado ativo de capitais a que se
pudesse recorrer. Nos meses que se seguiram à nacionalização, Azevedo Antunes
declarou que as dificuldades do Jari só seriam superadas com a ajuda do governo
e Sérgio Quintela cobrou investimentos públicos no interior de sua área.
Em agosto de 1982, Sérgio Quintela deixou a presidência-executiva
da Companhia do Jari afirmando que a nacionalização da empresa estava
plenamente consolidada. Foi então substituído no cargo pelo embaixador Edmundo
Barbosa da Silva.
André
Couto
]FONTES: Estado
de S. Paulo (26/10/80, 19/4/81, 6, 22 e 26/1 e 9/7/82); Folha de S.
Paulo (9 e 31/1 e 25/3/82); Globo (13 e 15/8/82 e 30/6/83); Jornal
do Brasil (21/2 e 12/4/81, 7, 8, 15 e 26/1 e 1 e 10/6/82); Movimento
(18/9 e 4/12/78 e 11/6/79); SAUTCHUK, J. Projeto; Veja (25/5/83).