REFORMA
AGRÁRIA
A
expressão
"reforma agrária" foi cunhada no presente século, vulgarizando-se
mais rapidamente a partir da década de 1940. As "leis agrárias" -
como eram denominados os diplomas legais que interferiam no curso evolutivo da
estrutura agrária, regulando-a, ou alterando-a - datam de tempos remotos,
aparecendo na história desde a Antigüidade Clássica. As mais conhecidas são as
sete leis agrárias surgidas em Roma do século V ao I a.C.: as leis Cássia (486
a.C.), Licínia (376 a.C.), Flamínia (232 a.C.), Semprênia (133 a.C.), Servília
(63 a.C.), Flávia (60 a.C.) e Júlia (59 a.C.). Essas leis visavam a uma melhor
distribuição das terras públicas, concedendo facilidade aos agricultores
pobres para sua aquisição e tentando impedir seu domínio por um pequeno número
de açambarcadores. As concentrações excessivas das terras eram, já a esse
tempo, consideradas prejudiciais ao equilibro da sociedade. As leis propostas
por Tibério Semprênio Graco no ano de 133 a.C. foram, no entanto, as primeiras
a exercer certa influência na contenção da excessiva concentração das terras,
pois proibiam a posse de mais de quinhentas jugera (ou 125 hectares)
das terras públicas e ordenavam a devolução ao Estado das áreas excedentes.
Tibério Semprênio Graco foi, porém vítima de conspiração, sendo assassinada
Pelos mesmos motivos, seu irmão Caio foi levado ao suicídio. E Caio Júlio
César, que promulgou uma nova lei agrária destinada a melhorar as condições dos
pequenos e médios possuidores de terras, foi assassinado no ano de 44 a.C.
Todas essas tentativas infrutíferas para a solução do movimento expansionista,
que continuava produzindo imensos domínios, levaram Plínio o Velho a proferir
a célebre frase Latifundia perdidere Italiam ("Os latifúndios
perderam a Itália"), a qual, por reproduzir uma verdade histórica,
tornou-se universalmente conhecida chegando até os nossos dias.
A
concentração excessiva da propriedade agrária e a formação de grandes fortunas
nas mãos de pequeno número de senhores provocaram a decadência do Império
Romano. A partir de então, as villas foram convertidas em feudos, e os
antigos escravos em arrendatários e em colonos. As cidades entraram em colapso
e as unidades agrárias se tornaram auto-suficientes, produtoras dos bens
necessários à alimentação, ao vestuário e às demais necessidades elementares.
A pequena produção artesanal e as manufaturas domésticas passaram a constituir
um complemento da diminuta renda retirada do cultivo da terra e reduzida a
quase nada pelos tributos exigidos pelos senhores.
O
regime rural sofreu um retrocesso, e as leis agrárias, que não haviam
conseguido evitar o declínio da economia romana, eram agora aplicadas a fim de
que os colonos-parceiros (colonus) e os rendeiros, mais tarde
transformados em servos, se tornassem submissos aos senhores feudais.
Constantino, o primeiro imperador cristão, obrigou, por uma lei do ano de 332
de nossa era, a adscrição dos cultivadores aos feudos. No ano de 371, o
imperador Valeriano estabeleceu: "Não consideramos que os coloni disponham
da liberdade de abandonar a terra à qual estejam vinculados por sua posição e
nascimento. Se o fizerem, que sejam trazidos de volta, presos e
castigados."
Durante
toda a época feudal, as leis agrárias foram em geral extremamente opressivas
para os camponeses, ao contrário das leis romanas, e tiveram por objetivo
reforçar a dependência dos cultivadores aos senhores da terra. Durante o
último período da Idade Média, passaram a ter por finalidade central favorecer
a concentração agrária e facilitar a expansão latifundiária à custa da
destruição dos campos abertos e dos pastos comuns, como foi o caso do movimento
dos enclosures, iniciado na Inglaterra e estendido à Europa continental.
As "leis bárbaras" da Baixa Idade Média e as "leis sangüinárias"
da Alta Idade Média são exemplos de ferocidade dos grandes proprietários na
prevenção ou na repressão das freqüentes insurreições camponesas que balizaram
a história agrária européia. As jacqueries, como ficaram
conhecidas essas insurreições, causadas pela situação de miséria a que estavam
reduzidos os camponeses dos antigos Estados alemães e da França, foram todas
cruelmente esmagadas. As leis que se seguram a esses movimentos, numa época em
que cresciam indiscriminadamente as populações desocupadas, entregues ao
banditismo e à mendicidade, não produziram resultados positivos. Somente a
emigração, acentuada principalmente durante o século XIX, encaminhada para os
Estados Unidos e para a Austrália, pôs termo a essa situação.
Nos
países do Novo Mundo, duas teorias fundamentais forneceram o substrato da legislação
agrária, das correntes de pensamento e dos movimentos políticos que orientaram
o povoamento e a ocupação da terra. De um lado, colocavam-se os partidários da
pequena propriedade, a que se filiavam Thomas Jefferson e outros líderes da
Revolução Americana; e de outro lado, os partidários das grandes propriedades,
que fundaram no Sul dos Estados Unidos os latifúndios escravistas. A Lei do Homestead,
sancionada nos Estados Unidos em 1862, consagrou os ideais jeffersonianos
de uma sociedade democrática baseada nas pequenas propriedades agrárias. Ao
mesmo tempo, a vitória dos estados do Norte contra os estados do Sul, em 1865,
marcou o fim da escravidão nos Estados Unidos, constituindo um golpe na
economia latifundiária, baseada no sistema de plantations. Essa
vitória, como a história comprovou, teve importância decisiva nos rumos
democráticos da nação norte-americana, possibilitando, pelo estímulo à distribuição
multifamiliar da propriedade e da utilização da terra, pelo enorme afluxo dos
emigrantes europeus e pela formação acelerada do mercado interno, o rápido
crescimento da indústria e, como conseqüência, logo depois, um lugar relevante
na economia mundial.
As leis agrárias brasileiras
No
Brasil, a opção das forças sociais dominantes, concretizada desde as
Ordenações do Reino até as escassas leis agrárias editadas no curso de nossa
formação nacional, foi pela implantação de grandes domínios territoriais,
maiores ainda no Norte do que no Sul "As concessões no Norte abrangiam em
geral uma maior extensão territorial do que no Sul", afirma Felisbelo
Freire em sua História territorial do Brasil. E explica:
"Para a Bahia e Pernambuco afluía de preferência quem queria tirar da
terra a renda por meio de escravos e do agregado. O proprietário territorial
que vivia na capital, no gozo da Corte, tinha quem desbravasse as florestas e
amanhasse suas terras. No Rio, em São Paulo e no Espírito Santo,
principalmente no século XVI, é o próprio lavrador quem, ao lado de seu
escravo, vai fazer o trabalho agrícola."
Já
a Carta Patente dada a Martim Afonso de Sousa em 1530 permitia as doações de
terras nos arredores de São Vicente sem quaisquer exigências quanto à
qualidade dos beneficiados, que poderiam ser apenas as "pessoas que
consigo levar", ou as "que na dita terra quiserem viver",
contanto que dentro de dois anos a aproveitassem. E essa cláusula indiscriminada
na distribuição das terras ainda fica mais clara na Carta de Doação ao mesmo
Martim Afonso, quando determina que "o dito capitão governador e os que
após ele vierem ... darão e poderão dar e repartir todas as ditas terras de
sesmaria a quaisquer pessoas de qualquer qualidade e condição".
Entretanto,
nas concessões feitas ao Norte havia sempre a exigência de que as terras fossem
entregues a "homens de qualidade e de posses". As que deveriam ser
aproveitadas para "engenhos daçuquares" deveriam caber “a pessoas que
tenhão possibilidade para os poderem fazer no tempo que lhes limitardes".
Essa
diferenciação geográfica, que iniciaria e reforçaria a diferenciação social
crescentemente acentuada no futuro entre a grande e a pequena propriedade,
implantara-se não por acaso, mas por corresponder aos interesses e à visão
dominantes na época dos colonizadores portugueses. Portanto, a primazia dada
ao instituto sesmeiro, como forma supostamente adequada à extensão territorial
do Brasil, não pode ser explicada como a solução "inevitável", mas
tão-somente como a que mais convinha aos planos da metrópole.
Comparando
os sistemas de colonização dos ingleses com os dos espanhóis e portugueses,
Leroy-Beaulieu, em sua obra clássica (1891), mostra que os primeiros, desde o
começo do século XVI, possuíam conhecimentos econômicos bem mais desenvolvidos
do que os dois últimos. O que os ingleses buscavam "antes de tudo eram
terras para cultivo, a fim de dar ocupação aos braços que a transformação
agrícola deixava sem trabalho na mãe-pátria". Todavia, não foram os
"bons propósitos" dos colonizadores ingleses que determinaram o
sistema liberal de distribuição das terras nas colônias inglesas da América do
Norte, mas sim as convicções democráticas dos líderes da Revolução Americana.
Entre
os colonizadores, o medo de encarar o problema da apropriação das terras encontrou
dois tipos de defensores que se opunham entre si encarniçadamente: de um lado,
os que preconizavam a formação de pequenas propriedades através da aquisição
gratuita ou a baixos preços das terras públicas ou privadas em disponibilidade,
e do lado oposto, os que defendiam a necessidade de dificultar a sua aquisição
por todos os meios, inclusive o da venda a preços altos, a fim de garantir a
abundância de braços para o trabalho nas grandes explorações agrícolas. Essa
última corrente, que teve numerosos defensores em todos os países de
colonização espanhola ou portuguesa, evoluiu de forma ainda pouco definida até
adquirir contornos mais precisos nas teorias de Edward Gibbon Wakefield,
aplicadas à colonização da Austrália.
Wakefield
teve vários predecessores no Brasil, e sob a inspiração de suas teorias é que
foi elaborada a primeira lei agrária promulgada no país - a de nº. 601, de 18
de setembro conhecida como Lei de Terras.
Os
princípios da "colonização sistemática" estabelecidos por Wakefield
eram os seguintes, na versão de Leroy-Beaulieu:
"1º.
- A prosperidade das novas colônias depende principalmente da abundância de
mão-de-obra que os capitalistas tenham à sua disposto, em proporção ao
território ocupado.
2º.-
Pode-se importar na colônia trabalhadores da metrópole e tomar medidas para os
constranger a viver de salários pelo menos durante dois ou três anos.
3º.
- Para impedir os assalariados de tornarem-se proprietários muito cedo, é
preciso vender as terras a um preço suficientemente elevado (at a
sufficiently high price).
4º.-
A totalidade do produto das vendas das terras deve reverter para o fundo de imigração,
destinado a transportar trabalhadores da metrópole para a colônia. Somente
empregando para tal fim a totalidade, sem restrição, do produto da
venda das terras, é que se pode manter o exato equilíbrio entre a extensão da
terra cultivada, a quantidade de mão-de-obra disponível e a soma dos capitais.
5º.
- O preço da terra deve ser uniforme e fixo, sem distinção de qualidade,
variando somente com a extensão; a venda em hasta pública fica proibida.
6º.
- O sistema assim praticado produzirá a concentração da população e evitará sua
dispersão, o que é comum nas novas colônias."
A
nossa Lei de Terras incluía pelo menos dois desses princípios. Estabelecia a
venda das terras fora da hasta pública e a preços superiores a um mínimo, os
quais eram na época considerados elevados e dificultavam a aquisição; em
seguida, destinava o produto das vendas à ação de colonos livres. Que os preços
eram elevados o mostram os parcos resultados das vendas efetuadas durante os
dez ou 20 anos seguintes.
Durante
toda a nossa história, a partir da Independência, as camadas mais cultas da nação
brasileira estiveram divididas em relação aos sistemas de posse e uso da
terra. Havia, obviamente, as forças conservadoras, as oligarquias
escravocratas e Pós-escravocratas, que sustentavam a permanência da grande
propriedade latifundiária como fundamento insubstituível da ordem econômica e
social do país. Mas, em oposição ao ideário conservador, crescia na opinião
pública a idéia de que os caminhos para um progresso econômico e social
estável e contínuo somente seriam abertos mediante a ampla distribuição da
propriedade agrária às maiorias da população do campo, nos moldes seguidos no
século passado pela sociedade norte-americana.
Essas
duas posições antagônicas sempre estiveram em confronto em todas as graves situações
da vida brasileira. Esse confronto teve lugar mais uma vez na elaboração da Lei
de Terras, apresentada ao Parlamento em 1843, discutida durante sete anos e
aprovada somente em 1850. A regulamentação da lei, contudo, só ocorreu em
1854: houve, portanto, um decurso de 11 anos entre sua apresentação no
Parlamento e sua vigência regulamentar, prazo suficiente para revelar as
resistências de ambos os lados, os postulantes de dispositivos liberalizantes
e os frenadores do processo evolutivo da estrutura agrária.
Em
meados do século XIX, quando o tráfico de escravos afinal pôde ser proibido,
apesar de sua primeira tentativa legal datar de 30 anos antes, os problemas
candentes do lado dos grandes proprietários de terras eram a avalanche das
posses (que a Lei de Terras tratou de impedir) e a imposição de uma lei de locação
de serviços que coagisse os ex-escravos e as multidões de ociosos (os que
fugiam das modalidades servis de trabalho no campo) a aceitar o trabalho
"livre".
As
oligarquias rurais fizeram valer sua força política obtendo duas vitórias na
frente legislativa: uma nova lei de locação de serviços “aprimorada", em
1837, e uma primeira lei agrária, proibindo as concessões gratuitas de terras
públicas, em 1850.
Mas,
ao mesmo tempo em que o poder conservador impunha sua presença, o desenvolvimento
objetivo da economia nacional fazia também crescer a participação no conjunto
da estrutura agrária de uma força que surgia: a pequena propriedade. Até
então só existente "por tolerância" - no dizer de Joaquim Nabuco - a
pequena propriedade conquistava agora um lugar próprio na economia e na sociedade
rural.
Como
observa Caio Prado Júnior, "a pequena propriedade não representou no
passado, como não podia representar, um elemento ponderável no conjunto da
economia brasileira. É somente no século XIX, e mercê de circunstâncias novas
e específicas dessa fase moderna de nossa evolução, que ela começa a tomar
vulto. O crescimento e conseqüente adensamento da população, a desagregação do
regime servil, as crises atravessadas pelo sistema da grande exploração e sua
ruína em diversas regiões do país figuram entre as circunstâncias principais
que favorecem a eclosão de uma nova economia, de caráter camponês e fundada na
pequena propriedade."
A
crise de superprodução cafeeira, no começo do século, e a Grande Depressão dos
anos 1930 contribuíram para aprofundar a grave contradição que se desenvolvia
no campo entre as forças conservadoras e as forças progressistas. Essa
contradição, latente em toda a nossa história, começou a externar-se mais
nitidamente a partir daqueles anos, com as dificuldades econômicas surgidas no
campo, as quais provocaram em nosso país uma fragmentação maior dos
latifúndios, o crescimento da pequena propriedade e a intensificação do êxodo
rural.
A penetração do capitalismo
O
movimento insurreciorial de 1930, inspirado em idéias liberais, propiciou a
ruptura da máquina administrativa que se tinha tornado obsoleta e se havia
constituído num empecilho às relações sociais de tipo capitalista, que se
expandiam com maior ímpeto. A crise de superprodução cafeeira (a produção
atingira 29 milhões de sacas, e a expectativa de exportação não chegava sequer
à metade) enfraquecera o poder econômico e o poder político das oligarquias
cafeeiras e de outras oligarquias menores. No Nordeste, muitos dos
"coronéis" que mobilizaram seus jagunços contra o avanço das
tropas tenentistas foram depois desarmados e reduzidos quase à impotência.
Criavam.-se, pois, novas bases para as tentativas de solução das tensões
sociais do campo às custas da restrição do poder até então intocável do
sistema latifundiário.
Tudo
isso iria motivar a introdução, no corpo da Constituição de 1934, de um novo
conceito da propriedade particular, que iria até à permissão de seu uso no
interesse social. No projeto enviado à Assembléia Constituinte pelo Governo
Provisório admitia-se, pela primeira vez em nossa história legislativa, que
"a propriedade tem, antes de tudo, uma função social, e não poderá ser
exercida contra o interesse coletivo". No texto redigido por iniciativa
do governo, declarava-se que "a propriedade poderá ser expropriada por
utilidade pública ou interesse social, mediante justa e prévia indenização em
dinheiro", acrescentando-se "ou por outra forma estabelecida em lei
especial, aprovada por maioria absoluta dos membros da Assembléia". Com
essa possibilidade, "a indenização prévia em dinheiro" podia ser
substituída por outra forma de pagamento, se a maioria da Assembléia assim
decidisse.
Mas
já na redação final da Constituição, verificar-se-ia que a derrubada do
sistema político apoiado nas oligarquias rurais não havia alcançado os
objetivos pretendidos. Eis o texto aprovado: "É garantido o direito de
propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou
coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou
utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante justa e prévia
indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina,
poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem
público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior. "
Na
constituição de 1937, estabelecida pelo golpe do Estado Novo, o texto foi
modificado no sentido ainda de assegurar “o direito de propriedade,
salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante
indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas
leis que lhe regulamentarem o exercício".
Desde
1934, passando por 1937 até chegar à Carta Constitucional de 1946, criou-se, e
manteve-se o instituto do usucapião, reconhecendo-se o direito à terra ao
posseiro de pequena área que a mantivesse cultivada por certo número de anos.
Na
Constituição de 1946, apesar de elaborada e aprovada por uma Assembléia Constituinte
eleita num período de ascensão do movimento democrático mundial do segundo
pós-guerra, quando começavam a ser adorados em muitos países modelos diversos
de reformas agrárias, manteve-se, em relação ao direito de propriedade, o
mesmo espírito das constituições anteriores. Num dos parágrafos do artigo 141,
tornam-se ainda mais rígidos os termos da desapropriação, exigindo-se
que fosse efetivada "mediante prévia e justa indenização em dinheiro”.
Contudo,
passara-se a encarar a propriedade sob um novo ângulo, considerando-se, no
artigo 147, que "o uso da propriedade será condicionado ao bem-estar
social. A lei poderá, com observância do disposto no artigo 141 parágrafo 16,
promovera justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos".
Tal
dispositivo prestar-se-ia a ser interpretado como uma abertura para o
reconhecimento legal de uma modificação da estrutura agrária, muito embora tal
possibilidade continuasse muito remota, dados os obstáculos que se ergueriam
com a indispensabilidade da indenização prévia em dinheiro.
Reformas agrárias no mundo contemporâneo
A
Revolução Mexicana de 1910 desempenhou um papel pioneiro na seqüência de movimentos
radicais pela modificação da estrutura agrária ocorridos no mundo contemporâneo.
A lei expedida por Venustiano Carranza em 6 de janeiro de 1915, promovendo a expropriação
das terras, constituiu a base das reformas que resultaram na divisão dos latifúndios
e na formação das pequenas propriedades entregues gratuitamente aos camponeses
insurretos. As terras pertencentes aos inimigos da Revolução Mexicana foram
desapropriadas sem indenização, e as demais, mediante pagamento em bônus.
Cerca de quatrocentos mil hectares passaram às mãos dos peões, organizados em ejidos,
unidades de trabalho em que a propriedade era comum e o usufruto
individual.
Quando
já estava chegando ao fim a Primeira Guerra Mundial, irrompeu na Rússia, em
outubro de 1917, a Revolução Socialista. Um de seus objetivos programáticos,
cumprido logo após sua vitória, foi a nacionalização da terra. Pelo decreto de
8 de novembro daquele ano (25 de outubro do calendário antigo), foram
expropriadas todas as propriedades agrárias existentes no país. Os principais
pontos do decreto eram os seguintes: a) "a propriedade privada da terra
fica abolida, imediatamente, sem compensação"; b) todas as grandes
propriedades, "com todo o seu gado, implementos, construções e todas as
benfeitorias" passam, temporariamente, ao controle dos comitês locais de
camponeses; c,) "todos os danos causados à propriedade confiscada, que
desde agora passa a ser propriedade de todo o povo, é considerado crime
punível pelos tribunais revolucionários"; d) as terras "com formas de
cultivo altamente desenvolvidas devem ser mantidas intactas e cultivadas pelo
Estado ou pelas comunidades". Cada aldeia teria completa liberdade para
decidir a forma de exploração da terra: "familiar, granja, comunidade ou
cooperativa". Nessa ocasião, cerca de 150 milhões de hectares foram
entregues aos camponeses.
A
lei de socialização da terra de 19 de fevereiro de 1918 confirmou a abolição
total da propriedade privada da terra, pondo esta e suas benfeitorias à
disposição das autoridades federais. A Constituição soviética de 1936 ratificou
a propriedade pública da terra.
Em
alguns países europeus, a vitória da revolução socialista soviética estimulou
movimentos insurrecionais de camponeses que terminaram por ser esmagados.
Mas um novo conceito de propriedade foi introduzido na Constituição de Weimar,
promulgada em 11 de agosto de 1919 na Alemanha, após a implantação do regime
republicano e a derrota sofrida pela revolta espartaquista. Nessa ocasião, a
tradicional concepção privatista da propriedade territorial vinda do direito
romano, incorporada ao código napoleônico de 1802 e daí transplantada para a
legislação da maioria dos países, passou por uma importante reviravolta, sendo
substituída pela nova noção de que o "direito de propriedade é subordinado
ao interesse social".
Logo
após o fim da Segunda Guerra Mundial, o problema da terra readquiriu extraordinária
amplitude, gerando profundas tensões em muitos países. Entre 1944 e 1948,
foram implantadas reformas agrárias em sete países do leste da Europa: Alemanha
Oriental, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e Iugoslávia. Embora
houvesse semelhança no modo de sua implantação, na expropriação das grandes
propriedades e na distribuição e reagrupamento das explorações, cada país
obedeceu às suas diferentes particularidades históricas, com o predomínio em
uns da proporção das explorações privadas, e em outros, das explorações
estatais ou cooperativas.
A
reforma agrária na Itália teve lugar em 1950, com a expropriação de algumas
áreas prioritárias, mediante indenização por bônus resgatáveis no prazo de 25
anos. Além da distribuição de terras, a reforma teve por objetivo a
realização de obras de infra-estrutura, desde a construção de casas até a de
estradas, bem como a recuperação de terrenos inaproveitados.
Na
Turquia, a lei de reforma agrária, datada de 1945, atingiu as propriedades de
tamanho superior a quinhentos hectares, cuja desapropriação seria paga em
bônus com o prazo de 20 anos.
A
reforma agrária no Japão foi instituída em 1945 por determinação das forças de
ocupação norte-americanas. A lei estabelecia que as terras fossem
distribuídas por comissões locais escolhidas pela população, as quais teriam
poderes para decidir sobre as terras a serem adquiridas e sobre sua
distribuição aos camponeses. Até 1950 haviam sido transferidos no Japão
1.8000.000 hectares a arrendatários e outros cultivadores diretos. Cerca de
três milhões de famílias rurais foram beneficiadas com a posse de terras.
A
lei da reforma agrária da China, aprovada em 28 de junho de 1950, esclarecia
sua finalidade no artigo 1º. "Abolir o sistema de propriedade da terra
baseado na exploração feudal da classe dos latifundiários e realizar o sistema
da propriedade camponesa, com o fim de liberar as forças produtivas das regiões
rurais e de desenvolver a produção agrícola, para abrir caminho à industrialização
da nova China". O capítulo II da lei, que tratava dos confiscos e
requisições, dispunha que seriam expropriados os bens dos latifundiários, tais
como terras, animais de trabalho, produtos agrícolas excedentes e edifícios
existentes no campo, ressalvando que os bens restantes não deveriam ser
confiscados. Também deveriam ser preservados e protegidos os estabelecimentos
industriais e comerciais, bem como as terras dos camponeses ricos. Nos
primeiros três anos, a reforma agrária foi realizada em 70% do território
chinês, sendo distribuídos perto de 50 milhões de hectares de terras a quase
trezentos milhões de camponeses.
Outras
reformas agrárias importantes realizadas na Ásia foram as da Índia, do Egito,
da República da Coréia (Coréia do Sul), da República Democrática da Coréia
(Coréia do Norte) e da Birmânia.
Reformas agrárias na América
Latina
Depois
da Revolução Mexicana de 1910, que precedeu a lei agrária de 1915, ponto de
partida das reformas da estrutura agrária que se seguiram, ocupou lugar
importante na história latino-americana a Revolução Boliviana de 1952, que iria
ensejar a extinção das relações feudais de trabalho no país. Mas somente em
1959, com a lei de reforma agrária decretada em Cuba no mês de maio, logo após
a queda do regime de Batista, se implantaria na América Latina uma mudança na
estrutura territorial que acabaria por orientar-se no sentido socialista. A
lei de 1959, em seu artigo 1º. proscrevia o latifúndio, limitando a propriedade
da terra, fosse por pessoa natural ou pessoa jurídica, ao máximo de 30 caballerías
ou 402,9 hectares. As terras que excedessem aquele limite seriam expropriadas,
com exceção dos seguintes casos: a) as áreas utilizadas no plantio da
cana-de-açúcar cujos rendimentos se mantivessem acima da média nacional; b) as
áreas aproveitadas na criação de gado que não fossem inferiores a certos
padrões econômicos considerados rentáveis, e c) as áreas de cultivos de arroz e
de outros produtos que não estivessem abaixo das médias nacionais. A lei proibia
os contratos de trabalho ou de arrendamento pagos em produtos, assim como
vedava a propriedade por parte de empresas estrangeiras, com exceção das
explorações menores de 30 caballerías julgadas convenientes ao
desenvolvimento da economia nacional.
As
terras expropriadas foram indenizadas em bônus, com o prazo de 20 anos e juros
de 4%. As terras disponíveis seriam repartidas, segundo a lei, na seguinte
ordem: a) aos camponeses desalojados das terras que antes cultivavam; b) aos
camponeses residentes na região que explorassem terras inferiores ao
"mínimo vital", e c) aos assalariados agrícolas que trabalhassem nas
terras postas em disponibilidade. As novas propriedades seriam indivisíveis,
só poderiam ser vendidas ao Estado, e, sendo transmissíveis por herança, não
podiam caber a mais de um herdeiro. Uma nova lei de reforma agrária foi
promulgada em 1963, expropriando as terras de dimensões superiores a 67,10
hectares sob o argumento de que havia, em numerosos casos, negligência no
aproveitamento das terras por parte dos seus usuários. Escapavam da aplicação
dessa lei, a juízo do Instituto Nacional de Reforma Agrária, as propriedades
que se tivessem revelado capazes de manter cultivos com alta produtividade e
cujos usuários houvessem demonstrado disposição de cooperar nos planos de
produção governamentais.
A Aliança para o Progresso
A
década de 1960 foi cenário de grande número de conflitos na área rural de
muitos países da América Latina. As tensões sociais pareciam agravar-se continuamente,
não faltando quem as relacionasse com os desdobramentos da Revolução Cubana e
da reforma agrária que a ela se seguiu. Para vários governos
latino-americanos, bem como para o governo dos Estados Unidos, através de
diversas agências e programas então em vigor, entre os quais a Aliança para o
Progresso, tornou-se evidente a necessidade de apressar a implantação de
reformas agrárias, as quais se apresentavam como a solução ideal para todos
aqueles .conflitos e tenções.
Para
o debate dos problemas relacionados com a posse e o uso da terra em toda a
América Latina, foi convocada uma reunião que se realizou em Punta del Este,
Uruguai, em agosto de 1961, sob os auspícios da Organização dos Estados
Americanos (OEA), da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), da Food
and Agriculture Organization (FAO), Organização para a Agricultura e a Alimentação
das Nações Unidas, e com a participação de todos os governos americanos. Dessa
reunião surgiu um importante documento, a Carta de Punta del Este, por
meio do qual se estabeleceu um solene compromisso firmado por todos os
delegados dos governos que se fizeram representar. Um dos pontos desse
compromisso consistia em "impulsionar, respeitando as particularidades de
cada país, programas de reforma agrária integral, encaminhada à efetiva
transformação onde for necessária a modificação da estrutura dos injustos
sistemas de posse e uso da terra, a fim de substituir o regime de latifúndios e
minifúndios por um sistema justo de propriedade, de, maneira que,
complementada por crédito oportuno e adequado, assistência técnica,
comercialização e distribuição dos seus produtos, a terra se constitua, para o
homem que a trabalha, em base de sua estabilidade econômica, fundamento do seu
crescente bem-estar e garantia de sua liberdade e dignidade".
Em
outubro de 1961, realizava-se em Washington, por convocação da Organização dos
Estados Americanos, a Reunião de Especialistas de Alto Nível em
Problemas Agrícolas, com o fim de pôr em execução as resoluções da Carta de
Punta del Este, inspirada pela Aliança para o Progresso. O informe final
dessa reunião abordava os mais variados aspectos da política agrícola, dando
especial ênfase à reforma agrária, a qual era definida em termos
concretos como "um conjunto de medidas destinadas a modificar as
estruturas agrárias vigentes, incluindo a mudança das relações jurídicas entre
o homem e a terra, com o fim de obter um uso mais eficiente dos recursos, uma
renda média mais elevada e uma mais eqüitativa distribuição da renda".
O
citado informe declarava ainda: "Houve acordo unânime em admitir que os
atuais sistemas de apropriação da terra, que se caracterizam na maioria dos
países pela desigual e injusta distribuição da propriedade, dão origem a
diversos problemas econômicos e sociais que direta ou indiretamente estão limitando
o desenvolvimento mais acelerado da agricultura e da economia em geral. A
realização de uma reforma agrária que conduza à modificação da relação
jurídica entre o homem e a terra de maneira que se obtenha uma distribuição
mais eqüitativa da riqueza juntamente com uma elevação dos níveis de produção,
de produtividade e de vida é, portanto, o requisito essencial para acelerar o
desenvolvimento econômico e social da maior parte dos países da América
Latina."
Sob
a influência das diretrizes difundidas pela Aliança para o Progresso e
especialmente após as decisões tomadas em 1961 em Punta del Este, nos anos que
imediatamente se seguiram pelo menos 11 países, inclusive o Brasil, aprovaram
leis de reforma agrária: Costa Rica e Colômbia, em 1961; Chile, Guatemala, Panamá
e República Dominicana, em 1962; Nicarágua, em 1963; Peru, Equador e Brasil,
em 1964. A Venezuela já tinha sancionado sua lei de reforma agrária desde
1960.
Por
essa ocasião, em alguns países latino-americanos começaram a eclodir
movimentos de rebeldia no campo, destacando-se por suas grandes proporções e
violência o levante ocorrido no Peru, com a participação de trezentos mil
camponeses. Esses movimentos foram esmagados pelos governos, estendendo-se as
medidas de repressão a vários outros países, nos quais passaram a ser obstadas
as ações reivindicatórias e as organizações dos camponeses. As leis de reforma
agrária, que por algum tempo haviam sido apontadas como solução para as
tensões sociais existentes, tiveram sua execução retardada. De 1962 a 1966,
foram derrubados na América Latina por golpes de Estado nove presidentes
civis, e a maioria dos regimes militares instaurados tinha a respeito da
reforma agrária opiniões contrárias àquelas defendidas pelas situações que os
antecederam.
Em
1967, uma nova reunião realizada em Punta del Este emitiu uma Declaração dos
presidentes americanos que continha referências à reforma agrária, mas
enfatizava especialmente "medidas de desenvolvimento rural".
A reforma agrária no Brasil
Do
confronto no plano político entre as forças que se colocavam a favor da reforma
agrária e as que historicamente ofereciam resistência à sua execução resultou
que, durante mais de cem anos, a contar da Lei de Terras de 1850, não se
conseguiu em qualquer nível de governo aprovar uma nova lei que introduzisse
alterações de certa importância no regime jurídico da posse e do uso da
terra no Brasil. Cerca de duzentos projetos, segundo se tem divulgado, foram
apresentados aos órgãos legislativos nesses cem anos, sem que obtivessem
aprovação. Outras fontes indicam que entre 1947 e 1962 foram apresentados ao
Congresso brasileiro pelo menos 45 leis sobre reforma agrária, que tampouco
foram aprovadas.
Em
1946, nos debates travados na Assembléia Constituinte em torno do projeto da
nova Constituição, afinal aprovada em 19 de setembro daquele ano, quatro
emendas apresentadas pela liderança da bancada comunista propunham alterações
no parágrafo 21 do artigo 159 e nos parágrafos 4º. 17 e 18 do artigo 164. A
primeira emenda estabelecia alguns limites ao direito de propriedade, a segunda
condicionava o uso desse direito ao bem-estar social, a terceira sugeria
"as medidas necessárias para o fracionamento dos latifúndios e para o
desenvolvimento das pequenas propriedades" e a quarta determinava que
"as terras aproveitáveis para exploração agrícola e pecuária, não
utilizadas, nas zonas de maior densidade demográfica e à margem das estradas
de ferro e de rodagem, bem como as terras beneficiadas por obras e as grandes
propriedades mal utilizadas ou abandonadas, [passassem] ao Estado, mediante
lei especial, para que, da mesma sorte que as terras devolutas, sejam
distribuídas gratuitamente aos camponeses sem terra".
Em
nenhuma dessas emendas havia referência à expressão reforma agrária, mas ela
constava dos termos em que foi feita a apresentação oral das propostas. De
fato, aí, a necessidade de se alterar o texto do projeto original da
Constituição era justificada por motivos conceituais, de vez que, segundo os
comunistas, "o conceito de propriedade, como atualmente está na
Constituição, é ainda obstáculo terrível para qualquer reforma agrária".
As emendas não foram aceitas.
O
tema da reforma agrária voltaria ao Congresso nos anos que imediatamente se
seguiram ao da aprovação da Constituição de 1946. Nos anos de 1947, 1948 e
1949, foram apresentados os projetos de reforma agrária de Nestor Duarte,
Fernando Ferrari, Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti, José Joffily e
Mílton Campos.
Na
mensagem ao Congresso Nacional do ano de 1951, o presidente Getúlio Vargas previa
a urgência de "uma lei agrária adaptada às nossas realidades presentes e
que complete as medidas de amparo à agricultura cogitada pelo meu
governo". Mas na mensagem do ano de 1953, Getúlio Vargas anunciou que
"a Comissão Nacional de Política Agrária começou a formular sugestões
acerca dos aspectos mais importantes daqueles problemas, como as diretrizes
básicas para uma reforma agrária no Brasil já por mim aprovadas"
De
acordo com essas diretrizes, "o objetivo fundamental da reforma agrária no
Brasil era enseja.r aos trabalhadores da terra o acesso à propriedade, de modo
a evitar a proletarização das massas rurais e anular os efeitos anti-econômicos
e anti-sociais da exploração da terra". Mas, para que não se
interpretasse equivocamente esse objetivo, acrescentava-se que "a
legislação de terras deverá ter em conta, tanto quanto possível, a
tradição e os costumes de cada região", além do que "não se deverão
fragmentar indistintamente as terras, quando daí resulte uma depreciação
econômica da região pela qualidade de suas culturas e tipo de exploração
agrícola".
A
principal dificuldade a ser vencida era o sistema de desapropriação das terras
que, de acordo com o artigo 147 da Constituição de 1946, deveria ser efetuada
"mediante prévia e justa indenização em dinheiro" Por isso,
afirmava-se nas diretrizes que "a indenização por desapropriação dos
latifúndios improdutivos deverá fugir à regra do artigo 141, parágrafo 16 da
Constituição Federal e enquadrar-se no seu artigo 147, ainda que, para tanto,
seja necessário uma emenda constitucional".
Datado
de 18 de setembro de 1952, o despacho do presidente Getúlio Vargas, aposto ,ao
texto integral das referidas diretrizes, foi o seguinte: "Aprovo, em tese,
as diretrizes adotadas pela Comissão Nacional de Política Agrária e louvo o
trabalho, já iniciado, no sentido da elaboração de projetos de lei consubstanciando
os resultados de seus estudos. Sugiro que também seja dada preferência à desapropriação
das terras próximas aos centros populares, necessárias às culturas
indispensáveis ao abastecimento das cidades e que são as mais suscetíveis de
especulação imobiliária".
A
Comissão Nacional de Política Agrária produziu alguns estudos sobre os
problemas da agricultura brasileira e conseguiu sobreviver à crise que se
seguiu à morte do presidente Getúlio Vargas, mas não conseguiu dar nenhum
passo no sentido do cumprimento dos fins propostos em suas diretrizes. Em
1956, com a posse do governo Juscelino Kubitschek, iniciou-se uma reformulação
da estratégia agrícola, dentro da qual a reforma agrária deixaria de ser uma
solução cogitada para os problemas do campo. Em substituição a ela, a meta do
governo passou a ser a "racionalização da agricultura".
Entretanto,
ainda na mensagem ao Congresso do ano de 1955, enviada pelo governo Café
Filho, a reforma agrária era mencionada num tópico destacado: "É de
inegável interesse nacional a revisão do sistema jurídico-social que
disciplina as relações entre a propriedade rural e o homem do campo. Um
reexame do problema agrário brasileiro, com fundamento nas estatísticas mais
atualizadas, confirma a profunda desigualdade que ainda prevalece na distribuição
da terra economicamente útil." E a justificativa segundo a mesma mensagem,
era de que, "admitindo, por outro lado, que a cada estabelecimento
agropecuário correspondesse um proprietário com a respectiva família (e
muitos proprietários possuem e exploram vários estabelecimentos), pode-se
finalmente concluir que apenas uma terça parte das famílias rurais do país têm
acesso à terra. A proporção de duas famílias proprietárias para quase cinco
sem tal condição, que se alcança com base no recenseamento mais recente,
acentua o desequilíbrio já revelado pelo recenseamento geral de 1940, que
registrou a existência no Brasil de 1.904.559 estabelecimentos agropecuários
para uma população rural de 28.356.133 habitantes. Verifica-se que, à época,
se contavam em nosso país duas famílias rurais proprietárias de terras para
quatro não proprietárias".
Na
mensagem de 1956, já do governo Kubitschek, a nova meta agrícola era assim
apresentada: "0 incremento da produção agrícola nos dois setores
tradicionais - exportação e abastecimento interno - pressupõe medidas
consubstanciadas em linhas gerais no plano de racionalização da agricultura,
que apontei como ponto básico do programa de desenvolvimento nacional. A
racionalização da agricultura, como entende o governo, deve fundar-se em um
complexo de fatores de natureza científica, técnica, industrial e comercial.
Sintetiza programas específicos de aperfeiçoamento e modernização dos métodos
de cultivo, mecanização, conservação e enriquecimento do solo, irrigação e
drenagem, defesa sanitária e racionalização dos processos distributivos dos
produtos rurais."
Mais
uma vez o tema da reforma agrária chegou ao Congresso Nacional através da
mensagem dirigida pelo governo de João Goulart, que já a havia preconizado antes,
num discurso pronunciado em 1958. Eram as seguintes as referências inseridas
na mensagem de 1962: "Quer na imprensa, quer por onde ando, nos diferentes
pontos do território nacional, nos comícios que freqüento, nas assembléias
sindicais a que compareço, quer nas audiências que concedo, quer nas conversas
que mantenho com cidadãos de todas as classes, quer nas milhares de cartas e
mensagens a mim dirigidas, o reclame da reforma é permanente, sobretudo da
reforma agrária." E mais adiante: "A reforma agrária é uma
idéia-força irresistível, que já não pode ser protelada, pois sua urgência e
'necessidade estão na consciência de todas as camadas da população. Urge
efetivá-la, tornando financeiramente possível, sem sobrecarregar demasiado o
país com o Ônus do investimento necessário. Será preciso reduzir ao mínimo o
custo financeiro da reforma, por meio de legislação que fixe o critério do
valor para a desapropriação com o fim social e estabeleça a alternativa para a
prévia indenização em dinheiro."
Também
na mensagem de 1963, o presidente João Goulart insistiu no problema agrário,
afirmando: "Subutilizamos terra, mão-de-obra e às vezes também capital,
pela irracionalidade das formas de organização da produção. Grande parte da
população do campo está submetida a precárias condições de vida sem que se lhe
dê oportunidade de usar a sua capacidade de trabalho em benefício próprio.
Considero dever de meu governo, inspirado nos sentimentos cristãos e
democráticos do povo brasileiro, promover a implantação de uma justa reforma
agrária, e estou certo de que não me faltará a cooperação patriótica do
Congresso Nacional para saldarmos esse compromisso que assumimos com o
povo."
Pouco
tempo depois de apresentada essa mensagem, que levou a data de 15 de março de
1963, foi enviada ao Congresso uma outra mensagem para tratar especificamente
da reforma agrária e como justificação do anteprojeto que fixava as
diretrizes para as mudanças da estrutura da propriedade da terra. Julgava o
governo, entretanto, que nada seria possível fazer sem que se alterassem os
dispositivos constitucionais que exigiam fossem as desapropriações indenizadas
mediante pagamento prévio em dinheiro.
Uma
emenda à Constituição foi, na ocasião, redigida pela bancada trabalhista, nos
seguintes termos: "O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar
social e para isso a lei poderá inclusive dispor sobre ajusta distribuição da
propriedade com igual oportunidade para todos, e para este único efeito regular
a desapropriação dos bens indispensáveis, assegurando ao proprietário
indenização justa mediante títulos da dívida pública, resgatáveis em prestações
sujeitas à correção do valor monetário em limite não excedente a 10% ao
ano."
Em
maio de 1963, depois de demoradas negociações e após terem sido examinadas por
outras bancadas diversas fórmulas substitutivas, a emenda apoiada pelo governo
foi derrotada em plenário.
Em
31 de março de 1964, o presidente João Goulart foi deposto e, com o regime militar
que o substituiu, assumiu a chefia do governo o marechal Humberto Castelo
Branco. O novo governo retomou em seu programa de ação a idéia das reformas de
base, propostas em governo anteriores. Em mensagem de 21 de outubro de 1964,
foi apresentado ao congresso não apenas um projeto de lei, como também uma
emenda que alterava em parte os artigos 141 e 147 da Constituição e tomava
possível a "desapropriação da propriedade territorial rural mediante
pagamento da prévia e justa indenização em títulos especiais da dívida pública,
com cláusula de exata correção monetária". A emenda constitucional tomou o
nº. 10 e foi aprovada em 9 de novembro de 1964.
Quanto
à lei que dispunha sobre a reforma agrária, passou a denominar-se Estatuto da
Terra e tomou o nº. 4.504, sendo aprovada em 30 de novembro de 1964. Estavam
abertas, por esses diplomas legais, as possibilidades de execução da reforma
agrária, de vez que as principais barreiras que a dificultavam ou impossibilitavam
haviam sido removidas.
Na
exposição de motivos apresentada pelo governo Castelo Branco, a necessidade da
reforma agrária era assim justificada: "O incremento da demanda de
alimentos em face do crescimento da população e das profundas modificações
organizacionais geradas pela industrialização e pela concentração urbana
conduziram em todos os países à modificação das estruturas agrárias. A
sensível diferença, outrossim, no ritmo da melhoria entre as condições de vida
da população rural e urbana estava impondo uma participação mais ativa
do poder público na remoção dos obstáculos ao progresso social dos
assalariados rurais. Representando cerca de 52% do contingente demográfico
ativo na agricultura, essa população sem terra tem estado praticamente
alijada dos benefícios do nosso progresso, formando um vazio sócio-econômico
mais sério que os nossos vazios geográficos."
"As
contradições e desigualdades da estrutura agrária do Brasil se vinham
agravando. Dados do censo agrícola de 1960 demonstram que menos de 1% dos
estabelecimentos absorvia a metade da área total: ao revés, mais de 50% dos
pequenos imóveis rurais ocupavam menos de 1/4 dessa área. Comparativamente à
situação verificada pelo censo agrícola de 1950, a posição relativa dos
estabelecimentos de menos de cem hectares permaneceu mais ou menos a mesma,
enquanto aumentou o número das propriedades de menos de dez hectares,
revelando um desfavorável parcelamento dos estabelecimentos de dimensões
médias."
"Essa
distorção fundiária pode ser ainda avaliada pelo aumento da percentagem da área
ocupada pelos estabelecimentos rurais que se enquadram nos extremos das classes
de área. Dados referentes ao último período intercensitário revelam,
na verdade, um inconveniente aumento da ocupação de área tanto no que tange às
propriedades maiores de dez mil hectares como nos estabelecimentos com
superfícies inferiores a dez hectares. Particularmente com relação a
esses últimos, o aumento verificado - mais de 76% - identifica uma
inconveniente anomalia estrutural que cabe à reforma agrária corrigir."
E
finalizava esse raciocínio acrescentando o argumento decisivo:
"Impossibilitado de ter acesso à terra própria, além da produtividade
reduzida, o trabalhador rural não cria para si condições de melhoria de padrão
de vida. Não introduz práticas novas, não absorve qualquer técnica tendente a
aumentar a eficiência. Sem possuir terra, não pode exigir a concessão das
facilidades creditícias de assistência técnica, de mecanização e de
aperfeiçoamento do sistema de escoamento dos produtos agrícolas. A
experiência universal mostra que a modificação da estrutura agrária dos países
que realizaram reformas agrárias bem-sucedidas cria condições novas para o
trabalho rural e força a modificação dos sistemas creditícios e de
mecanização."
A ação da contra-reforma
As
forças conservadoras, contrárias por tradição e por definição às medidas
propostas pelo novo governo, reagiram prontamente no sentido de impedir sua
execução. As divergências surgiram dentro das próprias correntes que apoiavam
o regime. Olavo Bilac Pinto, presidente da União Democrática Nacional, e os
três governadores mais identificados com o regime recém-instaurado - Carlos
Lacerda, do então estado da Guanabara, Ademar de Barros, de São Paulo, e José
de Magalhães Pinto, de Minas Gerais - ofereceram frontal oposição à iniciativa
da Presidência, da República.
Várias
entidades rurais manifestaram seu protesto contra a alteração da Constituição
Federal e a aprovação da Lei n°. 4.504. Antes mesmo da apresentação
da mensagem, a Sociedade Rural Brasileira, a Federação das Associações Rurais
do Estado de São Paulo e a Associação Paulista de Criadores de Bovinos, ao lado
de outras organizações, assinaram um manifesto, publicado em O Estado de São
Paulo de 22 de setembro de 1964, opondo-se "aos estudos que se vêm
realizando para uma reformulação do problema agrário brasileiros e
declarando-se contrárias "a qualquer alteração do parágrafo 16 do artigo
141 da Constituição". A Federação das Associações Rurais do Estado de
Minas Gerais (FAREMG) propunha a realização de uma marcha sobre Brasília
visando a impedir a tramitação da emenda.
A
nova legislação aprovada, levando de vencida a forte oposição movida contra
ela, representaria um passo avançado no plano jurídico e também no plano
político para a concretização de idéias que jamais puderam ser aceitas na
história do Legislativo brasileiro. A Emenda n°. 10, além de
possibilitar a indenização pela expropriação de terras, através de títulos da
dívida pública, transferiu para a União o Imposto Territorial, elevou a cem
hectares a prioridade dos posseiros na aquisição de terras devolutas e reduziu
o limite para a concessão de terras públicas sem autorização do Senado, além
de ampliar para cem hectares o limite para o direito de usucapião. Anos
depois, uma nova emenda constitucional, editada pelo Ato Institucional nº. 9,
de 25 de abril de 1969, viria facilitar ainda mais o pagamento das terras
desapropriadas, suprimindo a palavra "prévia" das condições impostas
às indenizações.
Mas
as condições políticas favoráveis para a implantação da reforma agrária, apesar
de todo o instrumental jurídico, de que passou a dispor, haviam-se modificado,
tanto interna como externamente. Em 1967, realizava-se em Punta del Este uma
segunda reunião, da qual surgiu a Declaração dos presidentes americanos,
em que a reforma agrária, como meta política, era deslocada do elenco de
prioridades para posição inteiramente secundária. Também em 1967, o governo
brasileiro editava a Carta de Brasília, na qual a mensagem de
política agrícola, deixando de lado a reforma agrária, dava ênfase especial ao
desenvolvimento rural baseado na "revolução tecnológica".
O
balanço dos vários lustros decorridos a promulgação do Estatuto da Terra mostra
que, embora tendo conquistado um arsenal jurídico de que nunca pudera antes
dispor e de se terem tornado ainda mais graves e mais presentes as razões
para sua execução, a reforma agrária continuou a ser protelada, enfrentando no
Brasil sérias dificuldades e enormes resistências por parte de poderosas
forças conservadoras. Essas forças têm atuado eficazmente para impedir até
mesmo as mais simples mudanças no gênero de vida das populações rurais, desde
a melhoria das tradicionais e opressivas relações de trabalho, até a democratização
da estrutura da propriedade agrária e da distribuição da renda.
A
reforma agrária nos anos 1970
Nos anos 1970 verificou-se uma rápida e
intensa modernização da agricultura brasileira, com forte apoio do Estado,
através de subsídios e incentivos fiscais. Em resultado, alterou-se a base
produtiva das áreas tradicionais de produção agrícola do país, o que provocou a
progressiva expulsão dos trabalhadores do interior das fazendas, fazendo
crescer o número de assalariados temporários (“bóias-frias”, “clandestinos”,
“volantes”). Nas regiões Norte e Centro-Oeste, intensificou-se o processo de
ocupação das fronteiras, principalmente através de grandes empreendimentos
agropecuários, que atraíram para essas regiões capitais do Centro-Sul, ligados
ao setor industrial e financeiro. Além disso, projetos de colonização oficiais
ou privados contribuíram para a ocupação da área, que se viu dominada por
conflitos por posse da terra, que, no entanto, ocorriam de forma bastante
atomizada.
A
importância que a luta por terra assumia de norte a sul do país constituiu o
mote para que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)
retomasse a bandeira da reforma agrária, que sintetizara as lutas do período
anterior ao golpe, e a traduzisse, progressivamente, nos termos do Estatuto da
Terra, lei de reforma agrária aprovada nos primórdios do regime militar. A
demanda de redistribuição fundiária também esteve presente na origem da
Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do trabalho que a Igreja passou a
desenvolver no campo, principalmente através das comunidades eclesiais de base.
No final da década e no início dos
anos 1980, à resistência de “posseiros” e “foreiros” na terra somou-se uma
nova forma de luta: as “ocupações”, que começaram a ter lugar no coração da
moderna agricultura brasileira: o sul do país. Ficava evidente que, ao
contrário do que muitos analistas queriam fazer crer, a modernização agrícola
não resolvera o problema fundiário, nem tirara a demanda por reforma agrária da
agenda política. Não só as entidades de representação dos trabalhadores a
colocavam na ordem do dia, como se buscava criar uma mobilização nacional a seu
favor. Um dos indicativos disso foi a criação da Campanha Nacional pela Reforma
Agrária (CNRA), coordenada pelo Instituto Brasileiro de Análise Sócio-Econômica
(IBASE) e envolvendo diversas instituições da sociedade civil.
Os
anos 1980 e 1990 e a intensificação da luta pela terra
O
governo do general João Batista Figueiredo (1979-1985), já no final do regime
militar, não podendo deixar de enfrentar a gravidade que os conflitos assumiam,
criou um Ministério Extraordinário dos Assuntos Fundiários, iniciativa que
traduzia o reconhecimento, pelo Estado, da existência de um problema agrário no
país, mas também reafirmava uma opção pelo seu tratamento. A escolha do
general Danilo Venturini para ocupar a pasta, acumulando o cargo com a
Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, indicava que o tema permanecia
sob controle militar. Essa iniciativa reforçava a tendência a uma forma de
percepção dos conflitos, visível desde a criação do GETAT (Grupo Executivo das
Terras do Araguaia-Tocantins), organismo diretamente subordinado ao Conselho de
Segurança Nacional.
Uma
das bandeiras da campanha pela redemocratização do país e da Aliança
Democrática foi a reforma agrária. O governo civil, eleito indiretamente em
janeiro de 1985 (Tancredo Neves/José Sarney), logo nomeou uma comissão
destinada a elaborar uma proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária. Ao
mesmo tempo em que essa comissão trabalhava, o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) realizava seu I Congresso, em Curitiba, e a Contag preparava o
seu IV Congresso Nacional. Em ambos eventos, a reforma agrária era questão
central. As centrais sindicais também a inscreviam em suas plataformas. Sarney,
que assumiu o governo em função da morte de Tancredo Neves, quando compôs seu
ministério, não só criou um Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário
(Mirad), como nomeou para ocupá-lo o advogado paraense Nelson Ribeiro, ligado à
Igreja e defensor da reforma agrária. Para presidente do INCRA foi escolhido
José Gomes da Silva, um dos redatores do Estatuto da Terra, fundador da
Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e amplamente reconhecido como
um ardoroso partidário dessa bandeira.
Num
clima de intensificação do debate sobre a necessidade da reforma agrária, como
condição para redemocratização do país, a proposta do Programa Nacional de
Reforma Agrária (PNRA), anunciada na plenária do IV Congresso Nacional dos
Trabalhadores Rurais, foi um fato político relevante, na medida em que foi lida
pelo sindicalismo rural como uma sinalização clara sobre as intenções do novo
ministério de levar adiante transformações fundiárias no país. A proposta
levava ao limite o potencial reformista do Estatuto da Terra: a desapropriação
por interesse social era considerada o principal instrumento da reforma
agrária; as indenizações seriam feitas de acordo com o valor declarado para
fins de cobrança do imposto territorial rural, tendo, portanto, um claro
caráter punitivo; o programa básico era o de assentamentos e a regularização
fundiária, a colonização e a tributação apareciam como complementares. Em
termos de abrangência, partindo de um cálculo que estimava a existência de dez
milhões e meio de trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra, a proposta
era assentar, em quinze anos, sete milhões de trabalhadores rurais, os demais
permanecendo empregados na agricultura empresarial como assalariados
permanentes ou temporários.
O
anúncio da proposta teve como uma de suas conseqüências evidenciar distintas
concepções que existiam no interior das forças que lutavam pela reforma
agrária. Considerando aqui somente duas delas, o sindicalismo rural e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o primeiro se dispôs a dar um
crédito ao novo governo, apoiar a proposta de plano e aguardar as
desapropriações prometidas. O MST, apoiado pelos sindicatos ligados à CUT, ao
mesmo tempo em que procurava manter um canal aberto de diálogo com o governo,
pautou sua ação pela pressão aberta, através das ocupações de terra, procurando
criar fatos políticos que obrigassem o governo a acelerar as desapropriações.
Do
ponto de vista dos proprietários de terra, a reação foi imediata: um mês após o
anúncio da proposta, realizaram um grande congresso em Brasília cujo resultado
foi a criação da União Democrática Ruralista (UDR). Esta entidade voltou todos
os seus esforços no sentido de combater politicamente o plano de reforma do
governo e, através do uso da violência, repelir as ocupações de terra.
Nesse
contexto, logo ficou patente que a proposta do PNRA contava com pouco apoio no
interior do governo. Depois de cinco meses de intensos debates, a versão final
do plano, bastante distinta da original, foi aprovada: privilegiavam-se as
negociações caso a caso; criou-se a figura do “latifúndio produtivo”, não
passível de desapropriação; suprimiu-se a definição de áreas prioritárias de
reforma agrária, o que levava a desapropriações pontuais e inviabilizava a
constituição de “áreas reformadas”, e não se tocou em fórmula de
cálculo para a “justa indenização” nos casos de desapropriação por interesse
social. Abriam-se, assim, os caminhos para que os proprietários atingidos
pudessem recorrer à justiça e muitas das desapropriações realizadas ficaram às
vezes durante anos pendentes de decisões judiciais, inviabilizando
assentamentos.
A
nova frente de luta foi a Constituinte. A proposta de emenda popular pela
reforma agrária, com apoio de diversas entidades como CNRA, Contag, CUT, CNBB,
MST, Cimi, CPT conseguiu mais de um milhão e meio de assinaturas. Realizou-se
uma Caravana Nacional pela Reforma Agrária com a participação de mais de dez
mil trabalhadores, mas nada disso foi capaz de neutralizar a pressão das
entidades de representação dos interesses ligados à propriedade da terra e
alterar a correlação de forças no Congresso Nacional. Se a nova Constituição
avançou no sentido de inscrever a reforma agrária como um tema do capítulo
referente à ordem econômica e social, assegurando que a propriedade deveria
atender à sua função social e definindo o que se entendia por tal, também
trouxe consigo uma série de mecanismos dificultadores de medidas
desapropriatórias, como o que previa que as desapropriações deveriam ser feitas
mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula
de preservação do valor real, e o que tornava insuscetíveis de desapropriação
as propriedades pequenas e médias, bem como as produtivas (as definições seriam
objeto de lei complementar).
Em
que pesem as pressões das entidades de apoio e representação dos trabalhadores
rurais, articuladas na CNRA, e a continuidade e expansão dos conflitos por
terra em todo o país, foram necessários cinco anos para que a regulamentação da
constituição fosse feita. O próprio Mirad foi extinto nesse interregno e o
INCRA novamente subordinado ao Ministério da Agricultura.
Quando a discussão se iniciou,
rapidamente se rearticularam os interesses ligados à propriedade da terra. A
Lei Agrária (Lei nº 8629, de 25 de fevereiro de 1993) significou o resultado
possível da disputa entre a “bancada ruralista”, representando a propriedade
fundiária, e a bancada que procurava falar em nome dos trabalhadores do campo,
composta principalmente por deputados do Partido dos Trabalhadores (PT),
originários quer de entidades sindicais, quer do MST. A lei manteve a definição
constitucional do que é função social da propriedade e introduziu alguns
critérios, definidos em termos de módulos, de tamanho de propriedade,
eliminando do texto legal a categoria “latifúndio”. A nova lei acabou por
manter uma tensão entre os requisitos para cumprimento da função social e a
deliberação de que terras produtivas não podem ser desapropriadas. Abriu também
uma brecha para que os proprietários pudessem discutir na justiça não só o
valor das indenizações estabelecidas, como também o seu mérito, dificultando a
consolidação dos assentamentos a serem feitos nessas terras.
Se,
do ponto de vista dos espaços legais, os anos 1980 e 1990 marcaram retrocessos
na legislação, dificultando a viabilização da reforma agrária “ampla,
geral e massiva” demandada pelos trabalhadores por ocasião da
redemocratização do país, os conflitos fundiários e as ocupações de terra,
dirigidas principalmente pelo MST, têm mantido o tema na agenda política e
mobilizado a opinião pública para sua discussão. No governo Fernando Henrique
Cardoso, as ocupações se intensificaram e, em função disso, foi reeditada a
experiência de criação de Ministério Extraordinário de Política Fundiária. Uma
das primeiras medidas foi a realização de um censo dos assentamentos, em
dezembro de 1996.
As
grandes manifestações do MST, que culminaram numa marcha para Brasília (abril
de 1997) e num grande ato público que reaglutinou as forças de oposição ao
governo, deram maior visibilidade ao tema e indicaram um movimento de busca de
conquista de adesões na sociedade. Novas medidas regulamentadoras se seguiram,
procurando agilizar o processo de desapropriação (Decreto nº 2250, de 11 de
junho de 1997) e procurando evitar indenizações superestimadas para as terras
desapropriadas (Medida Provisória nº 1577, de 11 de junho de 1997). Ao mesmo
tempo, as forças ligadas aos interesses da propriedade da terra novamente se
reaglutinaram e procuraram se impor, mostrando que o tema da reforma agrária,
no limiar do século XXI, ainda polariza fortemente a sociedade brasileira.
Durante
todo esse percurso, a reforma agrária foi ganhando novos conteúdos. Para além
da discussão que marcou sua trajetória no Brasil, nos anos 1950 e 1960, como
caminho para produção de alimentos a baixos preços e mercado consumidor para
produtos industriais, na década de 1980 ela incorporou fortemente a dimensão
ambiental, principalmente em função da luta dos seringueiros do Acre, que
resultou na constituição das reservas extrativistas. Nos anos 1990, ela se
articulou com o tema do combate à fome e à miséria que, no Brasil, incidem
principalmente sobre as áreas rurais, e com a criação de empregos, crucial num
momento em que o país se debate com índices crescentes de exclusão do mercado
de trabalho. A reforma agrária vem sendo cada vez mais trabalhada, em especial
pelo sindicalismo rural, como um dos eixos de um modelo de desenvolvimento
baseado na agricultura familiar.
As
desapropriações realizadas desde o início dos anos 80 geraram diversos
assentamentos em diferentes pontos do país. Embora pulverizados, na medida em
que a lógica que os gerou foi muito mais a de atuar sobre conflitos mais graves
do que a de produzir áreas reformadas que os potencializassem, esses
assentamentos vêm se constituindo num interessante laboratório para a análise
das possibilidades econômicas, sociais e políticas de uma reforma agrária. Em
janeiro de 1997, segundo dados do INCRA, havia ainda 25371 famílias acampadas e
cadastradas, esperando para serem assentadas.
Alberto
Passos Guimarães /Leonilde Servolo de Medeiros
colaboração especial
FONTES:
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