SOLIDARISMO
CRISTÃO
O
solidarismo cristão pretendeu apresentar-se como uma alternativa histórica
entre os grandes sistemas políticos e os campos ideológicos que polarizavam a
consciência nacional no fim da década de 1950 e início da de 1960. Se se
quisesse precisar com maior exatidão a época de seu aparecimento oficial,
poder-se-ia escolher o ano de 1963, data da publicação do Manifesto
solidarista.
Quem introduziu o solidarismo cristão no Brasil foi o padre
Fernando Bastos de Ávila, professor de sociologia da Pontifícia Universidade
Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
As origens
Foi em 1956, no auditório da igreja Nossa Senhora da Paz, num
curso para o clero que, pela primeira vez, o padre Ávila expôs a idéia do que
mais tarde ele próprio chamaria de solidarismo cristão. A sacerdotes de várias
partes do Brasil, ministrava uma introdução à sociologia religiosa, cadeira que
o interessava particularmente no doutorado em ciências políticas e sociais que
acabara de fazer em Louvain, Bélgica. Dom Hélder Câmara, então bispo auxiliar
do Rio de Janeiro e promotor do curso, também participava das aulas.
A
certa altura do curso, o padre Ávila explicitou uma idéia que constituía a
intuição nuclear de suas reflexões. A idéia, que figurou inclusive no
quadro-negro, era a seguinte: os grandes sistemas que hoje se defrontam podem
ser distribuídos sobre um contínuo político-ideológico — traçou na pedra um
risco horizontal —, compreendido entre dois extremos. De um lado, estaria o
individualismo atomicista e de outro, o coletivismo monolítico, caracterizando
as formas típicas respectivamente do capitalismo liberal e do socialismo
totalitário — fez dois tracinhos verticais limitando o risco horizontal. Partindo
dos extremos da esquerda e da direita, vários traços perpendiculares
simbolizavam as diversas formas de neo-socialismo e de neocapitalismo. De ambos
os lados essas formas convergiam para um centro de equilíbrio, ou seja, para um
sistema eqüidistante do individualismo e do coletivismo, sistema no qual os
indivíduos nem ficariam isolados nos seus egoísmos competitivos, nem esmagados
pelo Estado totalitário. E qual seria esse sistema? — traçou uma grande
perpendicular bem no centro do contínuo. Seria o sistema que privilegiasse as
comunidades reais. Nestas, os indivíduos se transfiguram em pessoas que se
associam livremente, são acolhidas na sua irredutível originalidade e encontram
a mais eficaz resistência contra a massificação e absorção totalitária. O padre
Ávila chamou esse sistema de comunitarismo personalista, ou então, para evitar
ressonâncias perturbadoras, de solidarismo cristão.
O termo solidarismo, guardado na memória, fazia parte de suas
lembranças das aulas de ética social, quando, aluno do padre Eduardo Magalhães
Lustosa, em Nova Friburgo (RJ), ouvira-o falar do solidarismo do padre Heinrich
Pesch.
As fontes remotas
Heinrich
Pesch, nascido em Colônia, na Alemanha, em 1854, foi professor de política
social e de economia na casa de estudos que os jesuítas alemães, expulsos de
sua pátria, mantinham na cidade holandesa de Valkenburg. Aí Pesch morreu em
1926. Suas obras principais foram Liberalismus, sozialismus und cristliche
gesellschaftsordnung e Lehrbuch der nationalokonomie. Entre muitos alunos, teve
dois outros jesuítas, os padres NellBreuning e Gundlack, que vieram a ser os
assessores de Pio XI na elaboração da encíclica Quadragessimo anno, a qual,
precisamente, procurou oferecer um sistema eqüidistante entre o liberalismo
capitalista e o socialismo. O documento pontifício estruturava seu modelo
socioeconômico em torno da idéia da corporação como instância intermediária
entre os indivíduos e o Estado. Foi o que valeu ao sistema proposto pela
encíclica o nome de corporativismo cristão.
Encontrou o padre Ávila na biblioteca da PUC as obras de
Pesch, aliás com o nome do padre Lustosa, provavelmente o único que as lera no
Brasil. Foi no estudo dessas obras que as idéias do introdutor do solidarismo
no Brasil foram se definindo, e foram elas que o levaram a optar pelo termo
solidarismo cristão, em vez do termo comunitarismo personalista. A corporação
não esgotava a imensa variedade de corpos e intermediários onde se revela a
contextura essencialmente orgânica da sociedade e a condição essencialmente solidária
das pessoas e dos grupos que a compõem.
A preparação próxima
A
preparação das aulas da cadeira de doutrina social da Igreja, que lecionava na
PUC e na Associação de Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE), obrigava o padre
Ávila a aprofundar e a explicitar melhor a idéia germinal da solidariedade. O
homem é um ser social, no sentido de que ele só se realiza em referência ao
contexto da sociedade. Mas isto não diz tudo sobre a realidade do homem. O
homem não é apenas um ser social, mas um ser solidário, o que acrescenta algo
de decisivo ao conceito de social. O que caracteriza a condição solidária é o
fato de cada elemento de um sistema social se realizar tanto mais na linha de
sua própria perfeição ontológica quanto mais investe seus recursos na promoção
da originalidade dos outros elementos. O modelo paradigmático da condição
solidária é a forma mais primitiva de comunidade humana, que é a família.
Aos poucos o padre Ávila foi descobrindo e compreendendo
melhor que a sociedade é uma integração solidária de comunidades, como a
comunidade é a integração solidária de pessoas. Nesse contexto de idéias, não
podia aceitar que a força propulsora da história fosse a apetência egoísta do
lucro, ou o conflito racial, ou a luta de classes, mas sim o trabalho assumido
como projeto comunitário.
Sobre
as notas preparadas para as aulas, redigiu um texto que foi publicado com o
título de Neocapitalismo, socialismo e solidarismo. O trabalho teve alguma
aceitação, sendo bem apreciado pelo próprio cardeal dom Jaime de Barros Câmara.
Mas havia uma crítica, cuja pertinência sentia agudamente: o solidarismo
cristão, no seu aspecto negativo, enquanto repúdio aos extremos, era lúcido,
mas não oferecia uma clara alternativa positiva. Padre Ávila trabalhou ainda
dois anos sobre o tema e, em 1965, lançou novo livro intitulado Solidarismo, no
qual pretendia responder à crítica.
O destino político do solidarismo cristão
Sem ser um líder político, o padre Ávila alimentou por algum
tempo a ilusão de que o solidarismo cristão poderia oferecer base doutrinar e
ideológica a um partido identificado com a democracia cristã. O início da
década de 1960 foi marcado por intensa radicalização política no Brasil. A
democracia cristã, que tivera alguma chance histórica, perdia afirmação política,
como sói acontecer com partidos de centro numa conjuntura de forte polarização
ideológica. Faltava-lhe também coragem na explicitação de suas bases
doutrinais.
Houve políticos que voejaram em torno da idéia solidarista,
entre cujos sobreviventes se destaca a figura do atual senador Jarbas
Passarinho que, no prefácio da segunda edição da Pequena enciclopédia de moral
e civismo, do padre Ávila, ainda se declara solidarista e discípulo do autor.
A sedução da esquerda dominou cada vez mais a democracia
cristã. O solidarismo cristão foi considerado um reformismo canhestro, um
neocapitalismo camuflado, sem viabilidade política num momento de exigências
radicais. Na realidade, o radicalismo veio, mas sua doutrina não foi nem o
solidarismo cristão, nem o socialismo de esquerda, mas a doutrina da segurança
nacional.
O solidarismo cristão penetrou um pouco no meio universitário
do Rio de Janeiro, e mais particularmente na PUC, onde foi criado, sem a
participação do padre Ávila, o Movimento Solidarista Universitário (MSU). Este,
às vésperas da crise de 1964, conseguiu conquistar os diretórios de todas as
faculdades e escolas da PUC, menos um: o da Escola de Sociologia e Política,
dirigida pelo padre Ávila. A idéia do solidarismo cristão vingou mais no Rio
Grande do Sul, onde ainda existem fiéis que de vez em quando insistem com o
promotor do movimento para relançá-lo.
Um
candidato ao doutorado em filosofia do direito, Albino Lima, da Faculdade
Nacional de Direito, apresentou até uma tese sobre o solidarismo cristão. O solidarismo
cristão passava de uma opção política para um tema de consumo acadêmico. Ficou
registrado apenas em referências passageiras nas obras de João Camilo de
Oliveira Torres e de Antônio Carlos Vilaça.
Entretanto, perdido como chance política, o solidarismo
cristão não se perdeu inteiramente como idéia. Ficou a sua mensagem central de
valorização da comunidade. Hoje só se fala em comunidade, desde a comunidade
nacional até as comunidades eclesiais de base. O solidarismo cristão contribuiu
para reavivar a consciência perdida desse valor.
Em abono a essa afirmação, é importante a transcrição do
Manifesto solidarista: “O solidarismo é uma doutrina portadora de uma dinâmica
tendente a projetá-la em um movimento e a encarná-la em um sistema. Como
doutrina, o solidarismo tem como categorias básicas a pessoa humana e a
comunidade humana. A pessoa, como ser racional, livre, social é portadora de
uma vocação a um destino transcendente ao mero processo histórico em que está
envolvida e do qual participa como agente consciente. O solidarismo não é uma
doutrina imanentista. Mas não é também uma doutrina ‘evasionista’. Para ele, a
pessoa humana realiza seu destino transcendente, como quer que ele seja
concebido, pela sua fidelidade à vocação terrena, pela sua presença no momento
histórico. Para ele, a pessoa humana, como ser racional, livre e social é
sujeito de deveres e direitos, que decorrem de sua mesma natureza,
independentemente, de sua condição social, política, econômica, ideológica,
étnica ou cultural.
A
pessoa humana tem direitos naturais à vida digna, à educação, ao trabalho, à
liberdade, à propriedade. O solidarismo entende esses direitos não como meras
outorgas legais, mas como possibilidades concretas. Vale dizer que, segundo o
solidarismo, a pessoa humana, pela sua suprema dignidade de ser humano, tem as
condições concretas e reais que lhe possibilitem viver dignamente, trazer à
plenitude, pela educação, seus talentos diversificados, trabalhar honestamente,
afirmar sem coerções seus desejos e opiniões, exercitar sua liberdade de
opções, possuir, e, pela propriedade, realizar-se mais plenamente como ser
humano.
O solidarismo sabe que as estruturas sociais vigentes não
oferecem possibilidades reais para a realização destes direitos. Por isto, ele
é essencialmente um protesto que se traduz num programa de reformas. O
solidarismo não é mero moralismo. É reformismo radical. Radical, porque quer
construir a reforma das estruturas a partir da raiz — a partir da consciência.
Assim, professa que a pessoa humana, além de direitos naturais, tem também
deveres morais de consciência que se resumem nos deveres de justiça, de amor,
de verdade, de lealdade, de solidariedade. Faltar a estes deveres não é para o
solidarismo apenas uma questão de infração passível de pena ou multa. É uma
culpa moral, pela qual todo homem é responsável perante o tribunal
incorruptível da consciência. Para um cristão é um pecado, pelo que é
responsável perante Deus.
O
reformismo solidarista se baseia na segunda categoria da doutrina: a
comunidade. A reforma solidarista é uma reforma comunitária. O solidarismo
pretende deferir às comunidades reais, em todos os níveis em que se realizam, a
hegemonia do processo histórico. Esta não pode caber nem ao capital nem ao
Estado, órgão de poder de um partido único. Os destinos políticos conferidos às
comunidades nacionais, estaduais e municipais. O solidarismo é nacionalista,
estadualista e municipalista. Os destinos sociais e econômicos, deferidos às
comunidades locais, às comunidades de vizinhança, às comunidades de trabalho,
às comunidades de grupos. A grande ênfase do solidarismo sobre a comunidade se
explica. A comunidade é aquela realidade social da qual a pessoa humana
participa na especificidade do seu ser, enquanto ser racional e livre. Como ser
racional e livre, o homem pensa e quer. A comunidade é o lugar natural onde os
homens pensam e querem juntos. Projetam e decidem juntos em função do bem
comum. Este é concebido precisamente como o conjunto de condições concretas,
nas quais e pelas quais cada pessoa humana pode realizar os seus direitos
naturais, obedecendo a seus deveres naturais. Da comunidade o homem participa
não pelo que tem, mas pelo que é. A comunidade é a grande descoberta e a grande
força do solidarismo. Este é portador da certeza inabalável de que, à medida
que as comunidades reais assumirem em suas mãos os seus próprios destinos,
através de seus representantes legítima e honestamente escolhidos, haverá de se
realizar uma democracia total, política, econômica e social.
O
solidarismo não se constitui de negações, de anátemas. Sua essência não é ser
anticapitalista ou anticomunista. Tem uma consistência própria, uma mensagem
própria. Ele é personalista e comunitário. Nesta sua mensagem reside a força de
sua dinâmica e esta é capaz de transformá-lo em movimento. Existem múltiplas
forças solidaristas em marcha. Muitos movimentos que se encaminham obscuramente
para um ideal solidarista. A tarefa do solidarismo não é tanto criar um
movimento novo quanto enfeixar, dar conteúdo e objeto às forças solidaristas
atuantes que se desconhecem.
Deflagrado
o movimento solidarista, nada poderá impedi-lo de criar estruturas comunitárias
que permitam a plena realização das pessoas humanas. O trabalho é árduo, mas
sua chance histórica é poderosa, é irresistível, porque o solidarismo é o ideal
a que confusa e inconscientemente aspiram todos aqueles que anseiam por um
Brasil realmente democrático e cristão.”
Fernando Bastos de Ávilacolaboração especial
FONTES: ÁVILA, F.
Neocapitalismo; ÁVILA, F. Solidarismo; TORRES, J. História; VILAÇA, A.
Pensamento.