TRATADO
INTERAMERICANO DE ASSISTÊNCIA RECÍPROCA (TIAR)
Assinado
pelas repúblicas americanas na Conferência do Rio de Janeiro (1947), esse
tratado de defesa hemisférica estabelecia basicamente que “um ataque armado por
qualquer Estado contra um Estado americano será considerado como um ataque
contra todos os Estados americanos”, ao mesmo tempo que definia os princípios,
obrigações e mecanismos que deveriam ser postos em ação em caso de necessidade.
O tratado procurava dar um formato permanente às afirmações de solidariedade
hemisférica estabelecidas em encontros interamericanos anteriores,
especialmente na Conferência do México, dois anos antes (1945).
Antecedentes
O
conceito de “defesa hemisférica” era conseqüência lógica da política de “boa
vizinhança” do governo Roosevelt para a América Latina. Se a “boa vizinhança”
pressupunha processos de consulta e ação comum entre as Repúblicas americanas,
dever-se-ia fazer também um esforço de defesa comum do continente; daí o
conceito de defesa hemisférica. Esse conceito esbarrava porém nas definições
estratégicas dos militares norte-americanos que, desde a década de 1930,
pensavam a defesa do continente como parte da defesa nacional dos Estados
Unidos e formularam planos segundo os quais as forças norte-americanas seriam
diretamente responsáveis pela defesa do território continental. Dentro dessas
definições estratégicas, os demais países americanos dariam contribuições
adequadas, que seriam celebradas mediante acordos bilaterais. Sobrava pouco
espaço para uma ação comum (multilateral) de defesa continental. Desse modo, os
esforços de criação de um Conselho de Defesa Interamericano, de caráter
multilateral, durante a guerra, nada mais eram do que uma fachada política
necessária à ação do Departamento de Estado, em seu esforço para conseguir uma
unanimidade de perspectivas em relação ao perigo representado pelo Eixo.
Quase ao final da guerra, durante a Conferência do México
(fevereiro/março de 1945), os Estados Unidos insistiram na aprovação da
resolução intitulada Assistência recíproca e solidariedade americana, que
dispunha sobre a defesa mútua contra a agressão externa ou interna. Àquela
altura, o inimigo — já praticamente derrotado — era o Eixo, e as relações entre
Estados Unidos e União Soviética eram de irrestrita colaboração. A menção à
“agressão interna” era claramente dirigida à Argentina, cuja política de neutralidade
na guerra conflituava-se com a política internacional dos Estados Unidos e cujo
nacionalismo, inspirado em parte nos modelos fascistas europeus, significava
uma ameaça aos interesses do grande capital norte-americano. De outro lado, a
inexistência de perigo de agressão externa acentuava a intenção de solidificar
a unidade continental e ipso facto a liderança dos Estados Unidos, ao restaurar
a possibilidade de intervenção em um dos Estados-membros. A forma definitiva da
“assistência recíproca e solidariedade americana”, acordada no México, deveria
ser estabelecida na conferência seguinte, a se reunir no Rio de Janeiro, no
mesmo ano de 1945. No entanto, o conflito político entre Estados Unidos e
Argentina, agravado com a eleição de Perón para a presidência da República,
levou a conferência a sucessivos adiamentos até 1947.
Nesse meio tempo, EUA e URSS delineavam-se como duas
superpotências e sua colaboração durante a guerra esvaía-se rapidamente, com a
“reversão das alianças” operada no imediato pós-guerra. A colaboração entre os
dois países se transformou em competição e rivalidade e essa mudança produziu
reflexos imediatos na política norte-americana para a América Latina. Tornou-se
perceptível desde 1946 que os objetivos de Washington no continente americano
consistiam em “consolidar uma frente anti-russa, eliminar centros de propaganda
antiamericana e organizar politicamente a defesa hemisférica”, segundo o
embaixador brasileiro em Washington. No plano militar, os esforços
norte-americanos de coordenação do continente fizeram-se através de acordos
bilaterais com cada Estado latino-americano. Desde 1945 começaram a se
estabelecer modelos norte-americanos de organização e treinamento militar na
América Latina, assim como um processo de padronização de armamentos, segundo
as matrizes dos Estados Unidos. Do ponto de vista de Washington, essas
iniciativas de colaboração militar bilateral deveriam criar “um flanco estável,
seguro e amigável” de países alinhados, com a finalidade de “promover a
segurança nacional dos Estados Unidos”, de acordo com as palavras do secretário
de Defesa Patterson em carta e Dean Acheson de 17 de abril de 1947.
A Conferência do Rio
O mesmo propósito de manter “um flanco estável, seguro e
amigável” subjazia aos esforços multilaterais de “defesa hemisférica” na
Conferência Interamericana do Rio de Janeiro em 1947. O esboço original dessa
conferência proposto pelo Departamento de Estado em 1945 previa o
estabelecimento de uma agência militar interamericana. As dificuldades
encontradas na aceitação da idéia (mesmo que tal agência funcionasse mais como
fachada política do que como organismo de planejamento estratégico real)
levaram o governo dos Estados Unidos a abandoná-la e limitar a Conferência do
Rio à discussão sobre um tratado de assistência recíproca em caso de agressão
ou ameaça de agressão.
Entre
15 de agosto e 2 de setembro de 1947 reuniram-se em Petrópolis os delegados das
Repúblicas americanas para a discussão do tratado. Abandonou-se de saída a
antiga regra de unanimidade das decisões e adotou-se a da maioria absoluta (2/3
dos votos) para a adoção de resoluções, de modo a evitar que um único país
pusesse a perder as moções apresentadas. Ao final do encontro, tinha-se
redigido um tratado que incluía a reafirmação dos princípios básicos de
resolução pacífica de disputas entre os Estados americanos; obrigações no caso
de um ataque armado contra um Estado americano; consulta e medidas coletivas no
caso de outros perigos à paz continental; tipos de medidas que deviam ser
tomadas em cada caso e especificação de atos de agressão. A idéia básica do
documento era a de que “um ataque armado por qualquer Estado contra um Estado
americano será considerado como um ataque contra todos os Estados americanos”.
Não
havia porém, em 1947, qualquer evidência de agressão ou ameaça de agressão
contra qualquer Estado americano. Considerando-se porém a “reversão de
alianças” em curso no plano internacional desde o final da guerra, o único
inimigo potencial dos Estados Unidos era a União Soviética e esta desempenhou o
papel de ator oculto durante a conferência. Algumas delegações desejaram mesmo
discutir “medidas contra o comunismo” em nível continental, mas foram
dissuadidas pela posição das representações do México e dos Estados Unidos.
Marshall, que chefiava a delegação norte-americana, alegou que cada país
deveria cuidar das medidas contra o comunismo. Em realidade um debate sobre
atividades comunistas no continente tornaria claro o sentido encoberto da
conferência, isto é, a articulação do sistema de poder hegemônico dos Estados
Unidos no continente em contraposição ao sistema soviético, articulação da qual
a “defesa hemisférica” constituía uma excelente cobertura.
Conseqüências
O
sistema interamericano formalizou-se mais concretamente no ano seguinte, na
Conferência de Bogotá, de onde emergiu a Organização dos Estados Americanos
(OEA), e na qual se instituiu o Conselho de Defesa Interamericano. Do ponto de
vista dos Estados Unidos, solidificou-se nos anos seguintes a noção de que o
Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) deveria ser um
instrumento para garantir “a segurança do hemisfério ocidental e nosso [EUA]
acesso aos recursos do hemisfério, que sejam essenciais a qualquer projeção
transoceânica de um maior poder ofensivo dos Estados Unidos”, conforme o
relatório do secretário de Defesa ao Conselho de Segurança Nacional, em 31 de
agosto de 1949. De acordo com este relatório, o TIAR deveria ser um instrumento
dos objetivos estratégicos dos EUA para a América Latina. Estes incluíam primordialmente
a produção e o fornecimento de matérias-primas estratégicas essenciais, a
manutenção da estabilidade política e segurança interna de cada nação, a
cooperação mútua de todas as nações latino-americanas em apoio aos Estados
Unidos, a proteção de linhas de comunicação, o fornecimento de bases para uso
dos Estados Unidos em caso de necessidade e outros. O TIAR, desde seu
nascimento, era menos um tratado de defesa hemisférica e muito mais um canal de
articulação político-militar da hegemonia norte-americana no continente. A
aliança proposta pelos Estados Unidos à América Latina não visava a algum
perigo externo, mas antes à consolidação das partes e do conjunto de um sistema
de forças que fazia dos Estados Unidos uma superpotência ao final da Segunda Guerra
Mundial.
Gerson Mouracolaboração especial
FONTES: